Não tinha mais do que sete metros quadrados a sala branca e sem janelas em que o estudante carioca David Miranda ficou confinado nas quase nove horas em que permaneceu detido no Aeroporto de Heathrow, em Londres, no domingo 18. Em escala na capital britânica, Miranda voava de Berlim com destino ao Rio de Janeiro. Logo no desembarque, foi abordado por policiais. “Me levaram para essa sala onde não pude falar com ninguém”, disse à ISTOÉ (leia entrevista). O contato com um advogado só aconteceu oito horas depois. Àquela altura, seu companheiro, o jornalista americano Glenn Greenwald, com quem é casado há nove anos, já havia mobilizado o governo brasileiro por sua liberdade. Mais do que um repórter radicado no Brasil, Greenwald está por trás da série de artigos publicada, desde junho, pelo jornal britânico “The Guardian” e que revelou o amplo esquema de espionagem de cidadãos promovido pela Agência de Segurança dos Estados Unidos. Incapazes de calar Greenwald, os britânicos foram atrás de um alvo fácil com o lamentável propósito de intimar.

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LIVRES
David Miranda (à esq.) e Glenn Greenwald se
reencontraram no Rio: no Brasil, eles se sentem seguros

A justificativa usada para a detenção de Miranda foi “suspeita de terrorismo.” Para verificar isso, não seria necessário tanto tempo. Segundo balanço do próprio governo britânico, 97% das pessoas detidas sob o artigo 7 da lei de terrorismo, de 2000, são interrogadas por menos de uma hora. No período em que ficou sob as ordens de seis agentes, Miranda diz que foi “questionado sobre tudo, menos terrorismo”. Entre os temas que interessavam aos britânicos, estava sua relação com Greenwald, com a documentarista Laura Poitras e com o ex-técnico da CIA Edward Snowden. Laura, indicada ao Oscar pelo filme “My Country, My Country” sobre a ocupação do Iraque, trabalha há quase dois anos num documentário sobre espionagem e ajuda Greenwald na divulgação dos documentos secretos entregues por Snowden. Era com ela que Miranda tinha ido se encontrar em Berlim. “Se eu fosse americano, isso não aconteceria”, diz o estudante. O brasileiro também foi perguntado sobre os motivos dos protestos no Brasil. É difícil imaginar um cenário em que um americano fosse questionado, por exemplo, sobre as raízes do movimento Ocupe Wall Street, que tomou as ruas dos EUA em 2011. O porta-voz da Casa Branca negou qualquer envolvimento com o caso, mas disse que o país foi avisado com antecedência.

Embora a viagem tenha sido paga pelo “The Guardian” e Miranda trouxesse na bagagem arquivos que ajudariam no trabalho de Greenwald, o papel do estudante nas revelações que irritaram os EUA e a Europa é ínfimo. Estudante de marketing, Miranda diz ajudar nas estratégias de divulgação das reportagens e de livros escritos pelo americano. “Ele é meu companheiro e, como tal, apoia tudo que faço”, diz Greenwald. “Mas acho que nunca viu nenhum documento.” Na tentativa de se livrar das ameaças de prisão por falta de cooperação, Miranda entregou computador, celular, pendrives, smartwatch, HD externo, videogame e cartões de memória, junto com todas as suas senhas pessoais. O material apreendido ficará com a polícia até o dia 30.

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DRACONIANO
O primeiro-ministro britânico, David Cameron, ordenou ao jornal
"The Guardian" a destruição dos arquivos sobre espionagem

Restam poucas dúvidas de que o caso foi um constrangedor abuso de poder, com repercussão até no parlamento britânico, que abriu um comitê para estudar as circunstâncias da detenção. David Anderson, ombudsman da lei antiterrorismo da Grã Bretanha, achou o caso “incomum” e pediu uma investigação para considerar se “os poderes foram utilizados de forma legal, adequada e humana”. Também causa estranhamento a tímida reação do governo brasileiro. Oficialmente, o Itamaraty disse que “se trata de medida injustificável por envolver indivíduo contra quem não pesam quaisquer acusações”. O governo convocou ainda o embaixador do Reino Unido, Alex Ellis, e manifestou insatisfação diretamente ao ministro britânico das Relações Exteriores, William Hague. E foi só. Diante do histórico da arbitrariedade de uma polícia que, em 2005, assassinou o mineiro Jean Charles de Menezes, a reação do Itamaraty e a falta de efeitos práticos de suas medidas soam ingênuas. “É preciso agir para que isso não aconteça com nenhum brasileiro nunca mais”, diz David Miranda.

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TRIÂNGULO
O ex-espião Edward Snowden (acima) é quem forneceu os documentos
sigilosos para Greenwald e a documentarista Laura Poitras (abaixo)

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Na semana passada, o editor-chefe do “The Guardian”, Alan Rusbridger, aproveitou a tentativa de intimidação de Glenn Greenwald para revelar que, há dois meses, uma autoridade do governo inglês exigiu a devolução ou destruição do material sobre espionagem em posse do jornal. Identificado pela agência Reuters como Jeremy Heywood, chefe de gabinete do primeiro-ministro David Cameron, o funcionário disse que agia em nome de Cameron e ameaçou entrar com uma ação judicial contra a publicação. “O tom era frio, mas havia uma ameaça implícita de que outros dentro do governo eram favoráveis a uma abordagem mais draconiana”, escreveu Rusbridger. Em outra ocasião, o recado foi mais claro: “Vocês tiveram sua diversão. Agora queremos tudo de volta.” A história acabou com a destruição de arquivos digitais “que poderiam interessar aos agentes chineses” no porão do “The Guardian”, em Londres. Alheias à ausência de fronteiras da era digital, as autoridades acharam que esse seria o fim das incômodas reportagens. Mas Greenwald, que continua vivendo no Rio de Janeiro, a milhares de quilômetros de Cameron, já está escrevendo a próxima – ainda mais agressiva.

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