É bem provável que João Gilberto, aos 68 anos, seja o brasileiro vivo de maior prestígio internacional, depois de Pelé e Oscar Niemeyer. Alçado ao posto de um dos pais da bossa nova – rótulo que, aliás, ele despreza, preferindo dizer que o que faz é samba -, além da irrefutável condição de músico irrepreensível, João também é constantemente lembrado pela sua personalidade, digamos, peculiar, característica que tem servido de combustível para alimentar a lenda em torno dele. Em julho de 1999, João Gilberto, a esfinge impenetrável, convidou Caetano Veloso para produzir o sublime João voz e violão, que chega às lojas nesta semana e é seu primeiro disco de estúdio desde 1991, quando lançou o álbum João. Durante as gravações tudo correu bem. Para surpresa geral, registrou as dez faixas do CD em apenas dois dias. Em compensação, a longa indecisão do cantor entre colocar orquestra e arranjos ou optar só por voz e violão deixou Caetano completamente estressado. Num determinado momento, à beira de um ataque de nervos, sua mulher, Paula Lavigne, entrou em cena com a habi-tual determinação. Bateu na porta do apartamento do guru de todos e, tão logo apareceu, disparou: “João, olha o que você está fazendo com o Caetano. Está acabando com ele.” Com crueldade calculada, João retrucou, simulando perplexidade: “Eu! Eu não estou fazendo nada.” A história, destilada com ingredientes ainda mais venenosos, circula no Rio de Janeiro entre velhos conhecidos de João, que juram ter ouvido o fato da boca do próprio. É nestes momentos que surge o batido dilema: João Gilberto é um gênio ou um chato? E em se tratando dele, verdades se confundem com folclores.

Muitos afirmam que todo o trabalho de orquestração feito pelo badalado maestro Jaques Morelenbaum tinha ido para o lixo porque João não havia aprovado. Não foi bem assim. Morelenbaum conta que Caetano havia sugerido a ele fazer os arranjos de cordas para o disco. Mas nem chegaram a ser esboçados. “João gostou só da voz e do violão e não quis arranjo. Eu ouvi o CD e achei lindo, bom do jeito que está. Nunca cheguei a escrever uma nota.” Um dos trunfos do álbum é a redescoberta de canções quase perdidas da música popular brasileira – Caetano deu sua contribuição neste sentido -, que só o mito parece arquivar na sua memória prodigiosa.

Um disco de João Gilberto, o mundo musical sabe, é um evento que vem sempre cercado de histórias curiosas. Como diz o amigo Nelson Motta, ele “só faz o que quer, e paga um preço por isso”. Na verdade, contam os chegados, ao longo dos anos João abdicou da sua vida pessoal para dedicar-se com radical integridade à música. Baden Po-well define bem esta característica. “João é um relógio suíço. Ele e o violão são uma só pessoa. Só um músico consegue ter uma percepção total, os leigos gostam dele por outras razões”, opina o virtuoso violonista. Não à toa João virou lenda.

Seu contato com o mundo externo se reduz ao telefone e à televisão, que permanece quase sempre ligada, mas sem som. Nas raras vezes que se prende diante da telinha, assiste a jogos de futebol, qualquer um, desde que tenha qualidade. Detesta ver os jogadores errando os passes. Como na música, o jogo não pode desafinar. Esquisito, liga para os amigos de madrugada para engrenar animadas e aleatórias conversas nas quais fala de tudo. Quando o assunto é futebol, costuma fazer imitações hilariantes dos locutores esportivos histéricos. É de chorar de rir, os amigos garantem. Pelo telefone, também faz charme a inúmeras mulheres, ainda que com a maioria mantenha uma relação platônica. Em casa, João se recusa terminantemente a lavar pratos ou talheres, temeroso de machucar as mãos num acidente doméstico.

O cidadão João Gilberto Prado Pereira de Oliveira leva uma vida modesta. Seus rendimentos, em boa parte, vêm dos direitos autorais recolhidos mensalmente na Europa e nos Estados Unidos. Ninguém sabe quanto. A vida pes-soal é um mistério maior ainda. Foi casado com a cantora Miúcha por quase dez anos. Ela assegura que não repetiria a experiência. “O compromisso do João é com a música. Ele tem uma inquietação muito grande, mas é voltado para dentro. Eu não, eu como a vida aos pedaços”, diz a cantora, com os olhos faiscantes. Segundo Miúcha, o músico vive num permanente “estado febril” de criação. “João despreza a opinião alheia. Às vezes fica ouvindo, prestando a atenção, mas na verdade está conversando com ele mesmo. O que as pessoas falam não tem importância.” Depois do episódio do Credicard Hall, em que ele se irritou com o som, mostrou a língua para a platéia desatenta e foi vaiado, João chateou-se, mas logo em seguida saboreou os louros da travessura. O compositor e cantor Jards Macalé conversou com ele sobre o assunto e ouviu do outro lado da linha: “Que escândalo hein!”, seguido de um riso bem maroto.

Como se vê, João Gilberto tem bom humor. O difícil é aguentar seus caprichos. Durante quase 30 anos, foi assessorado informalmente pelo advogado e empresário paulistano Krikor Tcherkesian, que se aproximou do intérprete de O pato nos anos 60, quando ele via dificuldades até para receber cachê. “Eu o aconselhei a pegar o que lhe davam e depois brigar pelo resto.” Hoje, a cada espetáculo costuma ficar dez dias se preparando, cuidando da alimentação e da voz. Não bebe, a não ser um cálice de vinho do Porto depois das apresentações, e detesta cigarro. No entanto, segundo os mais próximos, foi um famoso apreciador de fumaças não convencionais.

Grande entendedor do assunto – mas para não desfazer a aura nem nas horas mais relaxadas -, quando fu-mava seus cigarrinhos artesanais em turma preparava um cigarro para cada um da roda. “Ele não gostava daquela babação no baseado”, entrega um amigo. Incomum na sua rotina, João Gilberto pode ficar acordado dois dias seguidos perseguindo um acorde perfeito ao vio-lão e dormir outros dois dias. Tcher-kesian o reputa como um escravo de seu trabalho. O músico se mantém numa cruzada pessoal de preservação do melhor do cancioneiro popular brasileiro. São músicas antigas que ele interpreta com técnica impecável que nenhum possível herdeiro ousou se apossar.

Mas nem só de relíquias vive seu violão Di Giorgio de fabricação nacional. De vez em quando, cisma com canções moderninhas como quando gravou Me chama, de Lobão. Antes, porém, ligou várias vezes para o ex-roqueiro dizendo-se impactado com “a profundidade da canção”. Lobão lembra: “Ele me perguntava sobre o significado da letra e o estado emocional que eu me encontrava quando a escrevi.” O interrogatório chegou ao clímax numa madrugada, quando telefonou dizendo que havia feito oito versões de Me chama. O Grande Lobo foi escutando, mas não conseguia diferenciar as tais versões. Como João insistia para que escolhesse uma, resolveu chutar. “Eu gostei da quarta”, disse. “Vamos, então, ouvir a sexta”, rebateu João. No desespero, o compositor percebeu que o papa do perfeccionismo tinha suprimido o verso principal, “nem sempre se vê mágicas no absurdo”, justamente o que originou toda a música. “Ele disse que não tinha entendido o significado da frase e eu fiquei puto. Reduziu 50% da capacidade dramática, mas o resto ficou maravilhoso.”

Recentemente, João se dispôs a mostrar a Macalé o segredo da mítica batida e ficou repetindo um mesmo acorde por horas seguidas. “Para ele a música tem que ter a precisão de um golpe de karatê. Seus tempos musicais são precisos, sempre cabendo espaços para o silêncio, daí a marca pessoal e intransferível”, explica o compositor de Gotham city. Nelson Motta conta que o amigo ama o silêncio. “É capaz de ficar vários dias em silêncio”, diz o jornalista. “Ele é extraordinariamente inteligente, engraçadíssimo, originalíssimo, carinhoso e sensível. Já me flagrei com medo dele e depois achei ridículo.” A mística à sua volta, às vezes inibe os interlocutores. O fotógrafo Dario Zalis, que assina as fotos da capa e do encarte de João voz e violão, com Camila Pitanga como modelo, lembra que quando o fotografou pela primeira vez, há nove anos, para o disco João, ficou muito nervoso. “Comprei uma câmera especial, uma Leica supersilenciosa, estava preocupado com tudo que me diziam dele. Mas ele é uma pessoa fantástica, tem muito humor, adora falar abobrinha.”

Há quem já tenha presenciado um João menos cândido. Às vezes, quase despropositadamente, briga com os amigos. Fica tempos sem falar com eles e de repente volta a ligar como se nada tivesse acontecido. Entre os mais próximos está o ex-ator Otávio III, que dirigiu o teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, entre os anos de 1987 e 1990. Convivem há 40 anos. Embora seja quase tão reticente quando o próprio, discursa apenas para apoiá-lo. “É um homem alheio à vontade do sistema, da mídia, das emissoras de televisão e só se defende dos que querem invadir sua privacidade”, diz. Fiel escudeiro, Otávio III sempre é questionado como é que há tanto tempo suporta a companhia de uma figura tão complexa. A resposta vem na ponta da língua. “Ele é quem me aguenta, nunca me dei-xou na mão.” Trata-se de uma imagem que se altera com focos variados e talvez por isso mesmo faça de João Gilberto uma pessoa tão instigante. É como já disse Caetano Veloso na canção Vaca profana: de perto ninguém é normal.