Enquanto gesticula sem parar, as mãos calejadas denunciam o sofrimento de dona Raimunda Ferreira da Costa, 62 anos, pelo menos 50 deles vividos no roçado, carregando sacos de algodão e plantando vegetais que insistem em não crescer na terra rachada pela seca. Habitante da pequena São Pedro do Potengi, município no agreste do Rio Grande do Norte, com seis mil habitantes distante 58 quilômetros de Natal, a cada cinco minutos ela interrompe o tom hospitaleiro da conversa para reclamar do reumatismo que provoca dores insuportáveis "nos espinhaços". Mas, mesmo com tantos dissabores, não esconde a alegria. No final de abril, dona Raimunda aposentou o balde que retirava água do reservatório de sua casa e experimentou a sensação de abrir uma torneira e ver jorrar o líquido. "Levantava de madrugada e ia abrir a torneira para ver se era verdade. Isso é um sonho", comemora. Com a estranheza de quem está lidando com algo revolucionário, ela somou-se a outras 250 mil pessoas no Estado que já se beneficiaram, com séculos de atraso, do bem natural mais farto e essencial do planeta: a água.

Iniciado só em 1995, o programa de adutoras do Rio Grande do Norte prevê levar em 1.300 quilômetros de tubulações, até o fim do ano 2000, água tratada a um milhão de moradores de 52 municípios. As adutoras partem de imensas barragens no interior do Estado que vinham sendo subutilizadas. Das seis grandes adutoras previstas no projeto, duas estão concluídas e a terceira funciona parcialmente, atingindo 28 cidades. Geralmente, essas cidades eram abastecidas por açudes construídos em solo cristalino, deixando a água, além de barrenta, com teor de salinidade bem acima do apropriado para o consumo humano. Quando os açudes secavam, só restavam duas alternativas. Uma era comprar água dos caminhões que vinham de Natal e vendiam quatro galões – o suficiente para apenas um dia – de R$ 1 a R$ 1,50. A segunda opção era consumir a água da chuva armazenada em cisternas. "Agora posso tomar banho sempre que sinto calor ou tenho crise nervosa", conta dona Raimunda, mostrando os encanamentos e o chuveiro que comprou em penosas prestações de R$ 15, durante seis meses, bem antes da chegada do H2O encanado. "Me chamavam de louca, diziam que a água nunca ia chegar."

Comparado a outros investimentos de grande porte, o programa de adutoras no Rio Grande do Norte tem um custo viável. São R$ 210 milhões, em recursos dos governos estadual e federal e do Banco Mundial. O retorno é imediato. "Para cada real que se aplica em água, economizam-se três em saúde pública", diz o secretário de Recursos Hídricos, Rômulo Macedo Vieira. Em Angicos, onde a água tratada chegou em maio de 1997, os casos de crianças e adultos com diarréia diminuíram drasticamente. "A mortalidade infantil caiu 25% em um mês", anuncia o monsenhor Expedito Medeiros, vigário de São Paulo do Potengi (a 78 quilômetros de Natal), que há 56 anos luta contra a indústria da seca. Nas comunidades rurais, onde a baixa demanda inviabiliza a aplicação do projeto de adutoras, foram construídos poços artesianos com dessanilizadores. "Antes a gente encontrava lagartixa e cobra morta na cisterna", lembra Evellyn Alícia do Nascimento, nove anos, enquanto brinca no distrito de Lagoa de Fora.

Se causa espanto saber que existem municípios inteiros sem uma única torneira no Nordeste, difícil é imaginar como viviam os moradores de Lajes, a 125 quilômetros de Natal. Quando o apito da maria-fumaça ecoava na cidade, os vagões cheios de latas de água, as filas começavam a se formar na estação ferroviária, em plena madrugada. "Não adianta dar incentivo a indústrias e modernizar portos se a população não tem água para beber", afirmou a ISTOÉ o governador Garibaldi Alves Filho (PMDB). Apesar de a água do programa das adutoras ser para o consumo humano e de animais, algumas empresas resolveram lubrificar as máquinas. Em São Paulo do Potengi, uma indústria local aproveitou a oferta de água, cavou outros poços artesianos e está investindo R$ 3 milhões no beneficiamento da castanha de caju e extração da polpa da fruta. Até o final deste ano, a promessa é de que serão criados cerca de 300 novos empregos.

Nas localidades onde as adutoras têm data certa para chegar, a expectativa confunde-se com a desconfiança. Na isolada Lagoa de Velhos (a 97 quilômetros da capital) que possui apenas um poço artesiano, o lavrador Luís Justino de Souza, 28 anos, já faz planos para setembro. "Vou plantar a minha horta com pimentão e tomate", sonha ele, sem saber que a água das adutoras não é suficiente para irrigação. São sonhos de uma vida inteira, irrealizados, castigados por décadas de promessas em vão. O aposentado Miguel Ferreira da Silva passou incólume pelas estiagens do Rio Grande do Norte por 85 anos. Casado pela terceira vez, não lembra quantos filhos tem. Com a ajuda da esposa, Helena, arrisca que "devem ser 14". O casal pode ser considerado "privilegiado" em São Pedro do Potengi. Ambos ganham um salário mínimo de aposentadoria, que gastam com parcimônia, mas sem dispensar os objetos de louça colecionados por Helena, todos expostos na sala empoeirada. Miguel fala com sabedoria: "O Nordeste tem dois grandes problemas. Um é a água, e este aqui foi resolvido, graças a Deus." Então se cala, reflete um pouco e ameaça continuar. Aproveitando a titubeada do marido, Helena se antecipa e afirma, imponente: "O outro problema é a falta de dinheiro. Esse aí não tem solução." E sorri novamente, conformada com a realidade do agreste nordestino.

 

Monsenhor das águas

Magricela e falativo, o monsenhor Expedito Medeiros é uma lenda viva no agreste do Rio Grande do Norte. Aos 82 anos, já batizou e casou três gerações de fiéis na paróquia de São Paulo do Potengi. Mas a eloquência de sua pregação vai muito além dos sermões para salvar os potiguares das chamas do inferno. Filho de agricultores, monsenhor Expedito comovia-se na infância com o povo tomando água barrenta dos açudes e o gado morrendo de sede. Decidiu enfrentar a indústria da seca e tornou-se um personagem emblemático da luta pela água. "Os políticos sabiam que a água do açude dava lombriga e traziam caminhões-pipa para se beneficiar eleitoralmente", acusa.

Na década de 50, o padre organizava cursos para ensinar as donas de casa a fazer filtros de barro. Todos os projetos para erradicar a sede morreram no nascedouro, mas ele não desanimou. "O fio da meada do programa de adutoras é a luta do monsenhor", reconhece o governador Garibaldi Alves Filho. Depois de 56 anos de reuniões, promessas e cobranças, no mês passado a água tratada finalmente substituiu a salobra nas torneiras do município de São Paulo do Potengi. "As pessoas pegavam a minha mão e diziam: ‘Olha, monsenhor, como o meu cabelo está lisinho!’", conta o religioso, com a simplicidade de quem não tivesse feito mais que a obrigação.