Eu apenas cumpri meu dever com meu país e meu povo." A frase do presidente sul-africano, Nelson Rolihlahia Mandela, surpreende pela modéstia de quem pode ser considerado o último grande estadista do século e um dos poucos no mundo a deixar o poder no auge de seu prestígio político. O reconhecimento público de seus compatriotas se manifestou de várias formas na quarta-feira 2, quando os sul-africanos foram às urnas na segunda eleição democrática de um país que viveu 46 anos sob o tacão do apartheid (o regime de supremacia branca). Primeiro, o clima pacífico em que o pleito foi realizado, contrastando com os sangrentos conflitos que marcaram as primeiras eleições democráticas, em 1994. Depois, a previsível eleição para presidente do herdeiro político de Mandela, o atual vice Thabo Mbeki, 57 anos. Mas o mais importante foi a consagração do Congresso Nacional Africano (CNA, partido de Mandela e Mbeki), que obteve nada menos que 66% dos votos, que devem lhe garantir dois terços dos assentos na Assembléia Nacional (Parlamento) de 400 cadeiras, suficientes para promover mudanças constitucionais. Em segundo lugar, bem distante, ficou o Partido Democrático (branco antiapartheid), com 10,2% dos votos. Já o Novo Partido Nacional (NPN), sucessor da organização que implantou e governou sob o regime de minoria branca, teve apenas 7,5% dos votos, abaixo da porcentagem obtida pelo belicoso Partido Inkatha da Liberdade, da minoria zulu (8,3%). "É uma experiência maravilhosa. Posso me retirar tranquilo", disse Mandela, que passou 27 de seus 80 anos na prisão (1963-1990).

 

Herança Mas o cenário pós-Mandela da África do Sul está bem longe de ser idílico, como o clima eleitoral poderia sugerir. É verdade que, com sua autoridade moral, Mandela conseguiu a proeza de afastar o espectro da guerra civil que pairava sobre o país – não apenas entre a minoria branca e a maioria negra, mas também entre etnias negras como os chosas e os zulus. Seu governo acertou as contas com o ancien régime através da Comissão de Reconciliação e Verdade, formada em 1995, que terminou seus trabalhos ano passado com um extenso relatório sobre as violações de direitos humanos pelo regime racista, mas que não esqueceu as arbitrariedades cometidas durante a luta antiapartheid por setores do CNA (como o liderado por sua ex-mulher Winnie Madikizela). O presidente também soube conquistar a confiança do empresariado branco, o que evitou uma fuga maciça de capitais. Mas não teve como impedir que a economia da África do Sul sofresse os efeitos da crise financeira internacional. No ano passado, por exemplo, o PIB sul-africano teve crescimento zero, o déficit público cresceu e o rand (moeda local) sofreu desvalorização de 16%.

Mas é na questão social que se localiza o calcanhar-de-aquiles do primeiro governo democrático da África do Sul. Embora setores como educação, saúde e saneamento tenham melhorado sensivelmente nos últimos cinco anos, entre 30% e 40% dos negros ainda permanecem analfabetos e apenas 33% das casas da população negra têm água encanada. Pior: o índice de desemprego da África do Sul é um dos mais altos do mundo (30% da força de trabalho, sendo que 40% recai sobre os negros e apenas 4% sobre os brancos). A consequência visível foi o crescimento exponencial da violência urbana. As mulheres negras são as principais vítimas de estupro (cerca de 150 por dia). Já os casos de furtos, roubos e assassinatos têm como vítimas preferenciais os brancos. Outro campo minado é a questão da distribuição das terras. Mais de 87% das propriedades rurais – as melhores e mais produtivas – continuam nas mãos dos fazendeiros brancos. "Todos esses problemas de ordem econômica e social estão fundidos ao apartheid social. Não se pode entender um sem o outro", disse a ISTOÉ Leila Leite Hernández, professora de História da África da USP. "Atenuar esses efeitos da segregação racial pode levar cerca de 50 anos. Isso com muita vontade política de reverter esse processo", conclui.

 

Esfinge Para complicar a equação, o futuro presidente, Thabo Mbeki, é considerado uma incógnita, talvez uma esfinge. Para muitos, é tido como autoritário, centralizador e oportunista. Setores liberais temem que, sob sua liderança, o CNA possa cair na tentação totalitária. Apreciador de cachimbos e de poemas de W. B. Yeats, Mbeki foi menino pobre que cresceu numa aldeia do Transkei (Leste), entrou no CNA aos 14 anos, e, aos 20, foi estudar Economia na Universidade de Sussex (Inglaterra). Subiu na hierarquia do partido e obteve o controle da máquina depois de afastar lideranças poderosas como o ex-sindicalista e atual empresário Cyril Ramaphosa. É certo que Mbeki não terá o papel protagonista que Mandela desempenhou no cenário nacional e internacional. "Foi em cima da universalidade dos direitos humanos que Mandela fez todos os acordos", afirma a professora Leila Hernández. E Mbeki, pelo menos em campanha, deu maior ênfase à maioria negra que à idéia de reconciliação nacional. E isso pode fazer a diferença num momento delicado quando a minoria branca ainda se sente insegura diante do novo presidente.

Colaborou Kátia Mello