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ALVO
Da esq. para a dir., os ministros Celso Amorim (Defesa), José Elito (Segurança
Institucional) e Paulo Bernardo (Comunicações) deixam reunião que, na
terça-feira 9, discutiu como o Brasil deve reagir às denúncias de espionagem

A maturidade do sistema de defesa cibernética de um país pode ser avaliada por meio de um índice chamado CMMI, referência do setor de tecnologia. Segundo um estudo recente realizado por especialistas na área de segurança, o Brasil recebeu nota “1 menos”, em uma escala que vai de 1 a 6. Significa, portanto, que o País está perto da nota mínima, mas ainda não atende todos os requisitos para merecê-la. Entre as nações em desenvolvimento, a Índia aparece com índice 2,5 e os Estados Unidos, numa posição próxima de 5. Numa comparação simples, é como se nosso Brasil fosse um recém-nascido incapaz de resistir a uma gripe – muito menos a uma pneumonia. Com exceção de grandes empresas e bancos, os poderes públicos e os indivíduos que residem no País vivem à mercê da espionagem alheia. Em novo capítulo de suas denúncias contra a Agência de Segurança Nacional (NSA) americana, Edward Snowden, um antigo técnico da CIA que prestava serviços de consultor ao serviço secreto americano, acusou o governo dos Estados Unidos de monitorar bilhões de ligações telefônicas, mensagens e atividades de brasileiros em redes sociais. A denúncia apontou ainda para a existência de uma base de espionagem em Brasília, coração político do País.

Embora não tenham sido divulgados detalhes, como nome de pessoas espionadas, números de telefones ou o conteúdo de e-mails, a ação invasiva dos Estados Unidos não é uma novidade, o que não significa que deva ser tolerada. Em conversas fechadas, a presidenta Dilma Rousseff refere-se ao caso como “bisbilhotice”. Mas a cobrança por explicações tem razão de ser. Os países admitem que nações amigas enviam agentes de informação a seus territórios. A maioria desembarca no estrangeiro sem esconder a própria condição, definida no jargão diplomático como “agentes de segurança”. Com o passar do tempo, muitos são identificados pelo governo anfitrião e mantêm uma postura de colaboração em função de objetivos comuns aos governos dos dois países. A operação denunciada por Snowden, porém, não tinha essa natureza. O ex-técnico da CIA apontou para uma atividade ilegal – a possibilidade de acesso a informações reservadas, prática que não é reconhecida por tratados internacionais nem prevista em eventuais acordos paralelos entre Brasil e Estados Unidos. O debate reside aqui. Em depoimento no Senado, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, disse que o governo brasileiro “está convencido” de que as agências de informação tiveram acesso ao conteúdo das mensagens monitoradas. Numa postura considerada insatisfatória pelo governo brasileiro, os diplomatas de Washington, ao menos até agora, sustentam que as mensagens foram monitoradas – mas sem acesso ao conteúdo.

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BIG BROTHER
Em Paris, manifestantes carregam cartazes contra o governo
americano, acusado de espionagem pelo ex-agente Snowden

O aspecto político não esconde o abismo tecnológico que separa os dois países, diferença que deixa o governo americano numa imensa vantagem para conhecer os segredos de parceiros em todo o planeta. Na vanguarda do conhecimento tecnológico mundial, seja pelo vigor único de suas pesquisas, seja pelo volume dos recursos que foram capazes de mobilizar, os Estados Unidos construíram a internet – essa maravilhosa rede que conecta bilhões de cidadãos e empresas de todo planeta – como uma “colônia americana”, conforme definição crua do jornal “The New York Times”. A ausência de um sistema eficiente de defesa no Brasil e em outros países é a contrapartida de uma história tímida no campo das pesquisas autônomas e da produção própria.

Conforme vários especialistas ouvidos por ISTOÉ, a ação de espionagem é apenas a ponta de um iceberg. Em caso de conflito grave, a ausência de uma proteção digital eficiente coloca em risco, por exemplo, o funcionamento de hidrelétricas, linhas de transmissão, plataformas petrolíferas, oleodutos, aeroportos e metrôs, como experimentaram países que enfrentaram confrontos internacionais em posição desvantajosa, como ocorreu recentemente com o Irã e seu programa nuclear. No governo Fernando Henrique Cardoso, quando duas multinacionais disputavam a concorrência para os radares do sistema Sivam, da Amazônia, vários segredos do governo brasileiro foram interceptados. Nada garante que, de lá para cá, a situação geral tenha se modificado, como admitiu o ministro da Defesa, Celso Amorim, em depoimento ao Senado. “A situação em que a gente se encontra hoje é de vulnerabilidade”, admitiu o ministro, assegurando que, na falta de proteção tecnológica eficiente, procura resguardar-se de forma singela: evita escrever e-mails importantes em seu computador. No depoimento, Amorim recordou os contratos “por trás da porta” de empresas americanas com o governo de seu país. Mantendo uma relação de grande proximidade, que torna difícil enxergar onde termina a instituição privada e onde começa o Estado, esses acordos permitem o acesso indevido a informações privadas. Os documentos liberados por Snowden sugerem um caso de colaboração estreitíssima entre a Microsoft e a NSA. Conforme a denúncia, a Microsoft auxiliava a agência a quebrar o sistema criptográfico que protegia seus usuários.

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Uma semana antes das revelações de Snowden, autoridades do Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência) se reuniram em Brasília, preocupados com a entrada de empresas estrangeiras na área de segurança e inteligência dos aeroportos brasileiros. Presente ao encontro, um coronel alertou para a entrega do aeroporto internacional de Brasília ao consórcio Inframérica, liderado por um grupo argentino. “Eles terão acesso ao controle do espaço aéreo brasileiro. É uma temeridade”, disse. De acordo com os documentos vazados por Snowden, a base de operações da NSA no Brasil teve acesso ao tráfego de dados dos satélites da Embratel, de propriedade do mexicano Carlos Slim, e ainda dos cabos submarinos de fibra óptica, nas mãos da Global Crossing, do grupo Level 3, multinacional com sede no Colorado, nos Estados Unidos. Facebook, Skype, Microsoft e Google também são frequentemente acusados de abrir dados privados de seus usuários para a NSA, atividade que todas negam.

“É prática corrente nos Estados Unidos o governo implantar um representante ou mesmo uma célula da NSA nas empresas que são concessionárias de serviços estratégicos como a telefonia”, diz o analista de segurança nacional Salvador Raza. Autor do estudo sobre maturidade da segurança cibernética no Brasil, ele integrou o grupo de especialistas que desenhou o atual modelo de defesa digital dos Estados Unidos. “Não há como grampear telefones e e-mails, saber de seu conteúdo, sem autorização das empresas de telefonia”, garante Raza. Em sua opinião, uma das primeiras medidas para mitigar essa fragilidade estrutural é criar um órgão específico de segurança digital. A administração pública federal possui 320 redes de computadores, incluída aí a de uso restrito da Presidência da República. A segurança dessas redes é feita por um pequeno departamento do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). O Exército também possui um núcleo de defesa cibernética, criado há apenas dois anos e cuja atividade ainda é incipiente.

Na semana passada, o embaixador americano Thomas Shannon foi recebido por Antonio Patriota, ministro das Relações Exteriores. Na audiência, Shannon confirmou a fama de diplomata bem-humorado. Referindo-se à sua saída do posto em Brasília, lembrou que sua passagem ficará marcada por episódios ligados a informações confidenciais. “Cheguei no caso do WikiLeaks e vou embora com as denúncias de espionagem”, disse Shannon, que não ofereceu nenhum esclarecimento que pudesse aliviar o mal-estar entre os dois países. O episódio pode se transformar num trunfo para a diplomacia brasileira. Ao lado da Índia, o Brasil tem se mobilizado, em organismos internacionais, para a produção de acordos capazes de criar regras destinadas a equilibrar duas forças antagônicas – a liberdade que todos apreciam na internet com o controle sobre atividades criminosas, como a espionagem, que pode ser cometida através da rede.

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Antes da denúncia de Snowden, o governo americano recusava toda tentativa de interferência na internet, com a alegação de que tinha condições de manter a situação sob controle, sem sacrificar a liberdade dos usuários. Agora, esse argumento perdeu força. Até porque a denúncia não se limita ao Brasil. Revelações de espionagem americana se tornaram assunto quente na campanha eleitoral alemã, deixando o governo de Angela Merkel na desconfortável posição de oferecer explicações. O chanceler Antonio Patriota anunciou que pretende recorrer à ONU, a fim de buscar uma definição sobre normas de comportamento para os países quanto à privacidade das comunicações.

Os antecedentes mostram que não se trata de uma iniciativa simples. Aprovada em 2005 pelos países da União Europeia, a Convenção de Budapeste prevê o chamado “acesso transfronteiriço”, pelo qual um Estado membro pode acessar diretamente informações em servidores localizados em outro país, sem autorização prévia. É uma ideia que até faz sentido num continente que se vê como uma realidade supranacional e possui uma moeda própria. Mas teria difícil aplicação em outras partes do mundo, onde as nações travam uma competição encarniçada pelo conforto de suas populações.

Foto: ANDRE COELHO/Agência O Globo
Foto: KENZO TRIBOUILLARD/afp


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