O fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger passou anos estudando os laços que unem o Brasil, mais especificamente a Bahia, com a África. Seu trabalho é tão exuberante que serve de referência para vários estudiosos, e ainda mais para curiosos. O diplomata Carlos Fonseca, historiador de formação, resolveu revisitar uma das regiões africanas a que Verger mais se dedicou. Fez as malas e foi para Benin, república espremida entre a Nigéria e o Togo e onde, no passado, a população era capturada e mandada para o Brasil como mão-de-obra escrava. Hoje, nesse país, entre os seis milhões de habitantes, existem netos, bisnetos e trinetos dos escravos que libertos do cativeiro no século XIX retornaram à nação de origem. Esses descendentes de afro-brasileiros são conhecidos como agoudas e foi interessado no quanto eles ainda resguardam do Brasil que Fonseca dirigiu seus esforços. Foi assim que ele se sentou à mesa com um nobre, na verdade um chachá.

É na origem do povo agouda que se encontra o controvertido personagem Francisco Félix de Souza, o primeiro chachá, título usado à época para designar o vice-rei. Sua vida foi objeto de inúmeras pesquisas e de pelo menos um romance e um filme, o Cobra verde, do cineasta alemão Werner Herzog. Nascido na Bahia, esse misto de aventureiro, político e comerciante inescrupuloso foi um dos maiores traficantes de escravos que se instalaram na costa africana. De acordo com seus biógrafos, Francisco Félix chegou em 1788 ao local que hoje é o Benin. Com o tempo, seus interesses, no entanto, começaram a chocar-se com os do então rei Andandozan da cidade Abomé, e o soberano mandou prendê-lo. Como era tabu matar um branco, o rei decide mantê-lo alguns dias em tonéis de índigo para escurecer sua pele. Sua fortuna e influência fizeram que o irmão do rei, Guenzo, que tinha interesse na coroa, propusesse uma aliança com o baiano. Guenzo o libertou, e ele o ajudou a destronar Andandozan. Por volta de 1820 Guenzo lhe concede o título de nobreza, que foi passado de geração a geração entre os descendentes de Francisco Félix. Hoje em Uidá, vive o oitavo chachá que guarda em sua casa os retratos de seus antepassados. Na casa de Honoré Feliciano de Souza é que são ministradas as aulas de português para os agoudas interessados em manter viva a herança brasileira. O diplomata Fonseca se entusiasmou com o nobre Souza, o herdeiro do mitológico traficante que, para aprender os fundamentos da língua com 35 descendentes de escravos, se veste com uma capa de veludo e faixa verde-amarela, cores que considera serem do seu "verdadeiro país".

Os agoudas formam uma comunidade singular. Do português, pouco resta. Algumas palavras sobreviveram aos 68 anos de colonização francesa: copo, camisa, saia, além de moyo que quer dizer molho, bem diferente do sauce francês. A principal manifestação da brasilidade dos agoudas é a festa de Nosso Senhor do Bonfim que acontece no terceiro domingo de janeiro, organizada pela Associação dos Descendentes de Brasileiros, na capital, Porto Novo. Esse é o maior patrimônio cultural dos agoudas e obedece ao ritual das festividades baianas. Começa com uma missa, segue com a procissão e termina com a dança, o bourian, uma adaptação africana do bumba-meu-boi, a "burrinha" baiana. Há três anos, a Associação dos Descendentes copiou uma bandeira brasileira de uma revista de esportes. Hoje, ela é ostentada com orgulho na festa do Senhor do Bonfim. Durante a apresentação do "bumba-meu-boi africano", os agoudas fazem coro às canções brasileiras que eles não fazem a menor idéia do que significam. "A apresentação do bourian é o ponto alto das festividades do Bonfim. É o momento em que os agoudas se sentem mais brasileiros e cantam com orgulho essa brasilidade em ritmos de samba e marcha", comenta Carlos Fonseca. São letras que falam do dia-a-dia das iaiás nas casas-grandes brasileiras. "Minha mãe quero me casar, minha filha diga com quem…"

 

Meios-irmãos Não se sabe ao certo quantos são os agoudas em Benin. Por isso Fonseca contou com a ajuda do funcionário da embaixada brasileira na Nigéria, Abraham G Bosa, e do motoqueiro-guia Hilaire Crinot Pereira para percorrer as ruas de Porto Novo e Uidá à procura dos brasileiros de Benin. "Nas casas desses meios-irmãos, éramos recebidos em festa. A visita de um branco é sempre um evento na maioria dos países africanos. Havendo entre eles um brasileiro autêntico, a emoção era maior ainda. Referiam-se a mim como o ‘nosso antepassado’. A coisa tinha sua graça quando era recebido por uma bisavó de 90 anos", conta.

Foi a partir do encontro com essas famílias que Carlos Fonseca teve a idéia de pedir a eles que escrevessem mensagens para seus parentes distantes do Brasil. "Essa identidade em pedaços, que encontrei presa à teimosia de um ou à curiosidade de outro, rapidamente se construía diante da perspectiva de conhecer o passado. A possibilidade de se comunicar com o Brasil alentava e encantava", descreve Fonseca. Em pouco tempo a notícia se espalhou e as famílias agoudas esperavam a visita do brasileiro na porta de suas casas com papel e lápis na mão. A maior parte das mensagens foi escrita em francês, mas algumas famílias pediram ajuda para escrevê-las em português. O próprio diplomata sabe que o resgate efetivo das origens dessas famílias é uma tarefa improvável. Afinal como restabelecer laços de Souza ou Silva de Benin que nem sequer imaginam quem são seus parentes com os milhares de Souza e Silva do Brasil? "Talvez seja melhor manter esse vínculo na esfera do mito. Os brasileiros do Benin não são, afinal, parentes apenas de nossos Souza e Silva. São parentes da nossa história", conclui.