O ministro da Fazenda, Pedro Malan, chegou por volta de 9h ao Banco Central na agitada manhã da sexta-feira 15 de janeiro. Ainda antes de o mercado abrir, Malan seguiu direto para o 20º andar e se instalou no gabinete da Diretoria de Política Monetária, onde passou a discutir com o presidente indicado do BC, Francisco Lopes, o atual secretário-executivo da Fazenda, Amaury Bier, e o então diretor da área externa do banco, Demosthenes Madureira de Pinho, o que fazer da política cambial. A ininteligível banda diagonal endógena acabara de ser implodida e uma nova expressão virou moda entre os técnicos da equipe econômica, o "risco de crise sistêmica". Decidir se o dólar flutuaria livremente passava por uma questão crucial, saber quantos bancos e de que porte poderiam quebrar nessa fase de transição. No mesmo andar do prédio, Chico Lopes intercalava as discussões com Malan com outra reunião na qual dava o retoque final à operação de socorro aos bancos Marka e FonteCindam. Funcionários do BC contaram a ISTOÉ que, se não tivesse tomado conhecimento antes, Malan soube ali o que estava acontecendo com os dois bancos pegos no contrapé pela mudança cambial em suas transações na Bolsa de Mercadorias & Futuro. Naquele momento, o ministro da Fazenda poderia ter abortado a operação que causou um prejuízo aos cofres públicos de R$ 1,4 bilhão e poupou o patrimônio pessoal dos banqueiros Roberto Salvatore Cacciola, do Marka, e Luís Antônio Gonçalves, do FonteCindam. Ainda que autorizado na quinta-feira 14 de janeiro, o salvamento só foi concretizado na sexta-feira, apesar de a área técnica do BC ter aconselhado a simplesmente fechar os bancos e pagar os credores com as garantias da Bolsa e os bens dos dois banqueiros.

Malan ficou na sede do BC durante toda a manhã. Para piorar sua situação, segundo o depoimento na CPI dos Bancos prestado pelo consultor jurídico do BC, Manoel Loiola, por volta das 10h também estava no prédio o banqueiro Salvatore Cacciola. Loiola encontrou o dono do Marka numa reunião no Departamento Jurídico, no 11º andar, na qual o banqueiro recebeu a confirmação de que seria usado dinheiro público para salvar seus investimentos pessoais. O consultor jurídico do BC ainda contou em seu depoimento um fato mais estranho. Foi comunicado formalmente de que a ajuda ao Marka seria estendida ao FonteCindam numa reunião às 10h30 na sala de Chico Lopes. Trata-se do gabinete da Diretoria de Política Monetária, aquele mesmo do 20º onde Malan decidia os rumos do País. Passados quatro meses, o ministro ainda não contou os detalhes de suas conversas naquela manhã na sede do Banco Central.

 

Dez anos depois Se dependesse do governo, Malan não contaria o que sabe nem dez anos após sua morte. O receio do Palácio do Planalto é de que um eventual envolvimento do ministro nesse enredo nebuloso acabe respingando no presidente Fernando Henrique. Na tarde da mesma sexta-feira, Malan se encontrou com o presidente no Palácio da Alvorada, antes de embarcar com Chico Lopes e Amaury Bier para Washington, onde foram acertar com o FMI os detalhes da nova política econômica. Entra aí outro ato obscuro do enredo: Chico Lopes voltou às pressas dos EUA, rompido com o ministro. O envolvimento de Malan já faz parte do inquérito da Polícia Federal. Um funcionário do BC disse em seu depoimento que o ministro não só tomou conhecimento antecipado da ajuda aos bancos como participou da "decisão". Se Malan ainda tenta fugir da CPI, certamente não escapa de dar esclarecimentos à PF, que já tem elementos para indiciar Chico Lopes e toda a diretoria do BC. O motivo do indiciamento é a polêmica carta da BM&F, que consta da ata da reunião do BC do dia 14, embora só tenha sido escrita no dia 15.

Com tantas histórias para esclarecer, bastou que alguns senadores da CPI cogitassem de chamar Malan para o Planalto montar uma ampla operação para manter o núcleo do poder longe dos holofotes. Além de explicar o seu papel durante a curta e desastrada gestão de Lopes no comando do BC, Malan poderia prestar um serviço valioso à CPI e ao País. Precisa apenas detalhar os episódios que o levaram a alertar FHC de que havia vazado a demissão de Gustavo Franco, o que precipitou a troca de cadeiras no BC e a mudança na política cambial. A preocupação no governo é de que, se a CPI chegar a Malan, poderá colocar em xeque a gestão econômica e atingir o presidente. "É óbvio que o presidente Fernando Henrique sabia da operação", disse o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), integrante da CPI. Além de Malan, Fernando Henrique estendeu a rede de proteção das investidas da CPI ao ministro-chefe da Casa Civil, Clóvis Carvalho, e ao ex-ministro Mendonça de Barros. "O presidente é um homem íntegro. Temos de evitar que a crise moral venha a atingi-lo", exortou o presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães.

Operação de guerra Até a sexta-feira 30, FHC procurava não demonstrar maiores preocupações com os rumos da CPI dos Bancos. Naquele dia, dois fatos o convenceram a mudar de atitude. Um foi a entrevista do relator da comissão, senador João Alberto (PMDB-MA), admitindo a convocação de Mendonção. O outro foi uma conversa com o senador Jader Barbalho (PMDB-PA), patrono da CPI, na qual ouviu uma avaliação sobre a possibilidade de as investigações chegarem a colaboradores íntimos. Mesmo tendo tentado tranquilizar o presidente, Jader deixou Fernando Henrique com uma pulga atrás da orelha. FHC, então, acionou o ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, que mobilizou governadores e senadores do PSDB, e pediu ajuda a ACM. Ao mesmo tempo que montava uma verdadeira operação de guerra com tucanos e pefelistas, o presidente ameaçava rachar o PMDB. Na terça-feira 4, a cúpula do PMDB teve um almoço de trabalho na casa do presidente da Câmara, Michel Temer. Entre uma garfada e outra, os dirigentes do partido tomaram duas decisões: apressar as investigações e dar apoio integral a Jader para que ele continue a dar as cartas na CPI.

Mesmo com o PMDB jogando a favor, PFL e PSDB ainda tentaram dar uma rasteira em Jader. Aproveitaram o pânico que tomou conta do governo com a possibilidade de o deputado Aloísio Mercadante (PT-SP) detonar no palanque da CPI uma bomba contra o Planalto para tentar assumir o controle da comissão. Além dos boatos que circulavam nas Bolsas e nos corredores do Congresso, envolvendo até Paulo Henrique Cardoso, filho de FHC, que sempre teve bom trânsito entre banqueiros, o comando governista estava convencido de que Mercadante estaria sendo abastecido de informações por técnicos do BC. Na noite da terça-feira 4, Fernando Henrique reuniu a bancada tucana no Palácio da Alvorada para dar um recado. Se o seu governo, que está despencando nas pesquisas de opinião pública, ficar ainda mais fraco sob a mira das investigações no sistema financeiro, serão os tucanos quem vão pagar a conta nas urnas. Cobrou empenho total da bancada para evitar que Mercadante fizesse seu show no dia seguinte. Pimenta da Veiga e o líder do PSDB no Senado, Sérgio Machado (CE), saíram do Alvorada dispostos a atender o presidente.

 

Briga de aliados À revelia de Jader, tucanos articularam com a cúpula do PFL que seria secreta a reunião da CPI para ouvir Mercadante. O senador Eduardo Siqueira Campos (PFL-TO) discordou da estratégia e quase foi afastado da CPI. "Se você não se sente à vontade para votar conosco, escalaremos um suplente", chegou a ameaçar o presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen (SC). Jader soube da manobra e tentou evitá-la. Não teve êxito com os líderes dos partidos aliados. Foi conversar com ACM, que presidia a sessão do Senado e com quem tem dividido na prática o comando do Congresso nesses tempos de CPIs. Ouviu que a estratégia era mesmo de reunir a comissão a portas fechadas. Isolado, Jader telefonou da cabine do plenário do Senado para FHC. "Presidente, isso é uma imbecilidade. Só quem ganha é o Mercadante. Se ele tiver uma denúncia consistente, ela acabará amplificada. Se não tiver, valerá a versão que eles divulgarem." FHC aceitou a ponderação e orientou Pimenta a rever a operação. O depoimento de Mercadante, bem articulado, mas sem grandes novidades, fortaleceu a posição do líder do PMDB.

O Planalto e o Ministério da Fazenda insistem na versão de que Malan nada sabia sobre a operação de socorro ao Marka e ao FonteCidam. Se fosse verdade, não teriam motivo algum para evitar que o ministro fosse proclamar sua ignorância na CPI. Com essa tática, podem até livrá-lo da acusação de conivência com uma negociação suspeitíssima, mas acabam apresentando o ministro que comanda a economia brasileira como uma espécie de rainha da Inglaterra, incapaz de saber o que se passa na sala ao lado. Na sexta-feira, a assessoria do Ministério da Fazenda informou que Malan e o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, desistiram da viagem que fariam a Washington no sábado 8. A explicação oficial não cita o depoimento na PF. Diz apenas que a presença do ministro na comitiva de Fernando Henrique que explicará a banqueiros e empresários americanos a conjuntura econômica do Brasil não é mais necessária. Pelo jeito, Malan deixou de servir, agora atrapalha.