Na Sexta-feira Santa, o sargento da PM alagoana Rinaldo Lima estava de folga. Ele pretendia passar o dia em casa, no Vergel do Lago, um bairro pobre e violento na periferia de Maceió. Por volta das 16h, seu cunhado, conhecido como Nilton, tocou a campainha e o convidou para tomar vinho na casa de sua irmã, na mesma região. Rinaldo resistiu ao convite, mas, diante da insistência do cunhado, pegou sua arma e saiu. Ele a pé e Nilton de bicicleta. Quando passavam na rua Nova Esperança, foram abordados por cinco ou seis pessoas. Começou o bate-boca e Nilton deu um soco em um dos provocadores. Confusão armada, Rinaldo nem sequer teve tempo para usar sua arma. Recebeu três tiros de revólver calibre 32 nas costas e caiu morto com a arma na mão. Nilton conseguiu esfaquear um dos agressores e fugiu. Quatorze dias antes, por volta da 1h, o ex-prefeito de Batalha (AL) José Miguel Dantas e sua mulher, Matilde Ferreira, trafegavam na estrada que liga Maceió a Jaramataia quando de um outro carro quatro pessoas começaram a dar tiros contra o casal. José Miguel perdeu a direção e capotou. Seus perseguidores executaram Matilde e em seguida disparam 11 tiros de pistola 380 e espingarda calibre 12 contra o ex-prefeito, que morreu segurando um terço. Há algo comum aos dois crimes além da exagerada violência. Os assassinatos foram cometidos no período em ganham novos rumos as investigações sobre as mortes de Paulo César Farias, o ex-tesoureiro de Fernando Collor, e sua namorada, Suzana Marcolino, ocorridas em 23 de junho de 1996. José Miguel e, principalmente, Rinaldo teriam muito a dizer sobre o que aconteceu na casa de praia de PC há quase três anos. Ou seja, coincidência ou não, as pessoas que poderiam ajudar a encontrar o assassino de PC e de Suzana estão sendo mortas. "É muito estranho o assassinato dessas pessoas nesse momento", diz Edmilson Miranda, ex-delegado da Polícia Federal e atual secretário de Segurança de Alagoas.

Rinaldo foi segurança de PC Farias. Ele era irmão de Reinaldo, o chefe da equipe que dava proteção a PC e que até hoje trabalha para a família. Tanto o Ministério Público como a Justiça de Alagoas consideravam Rinaldo uma das testemunhas mais importantes para esclarecer o crime. Ele estava de plantão na noite em que o homem que conhecia todos os segredos da turma collorida foi assassinado. O promotor Luiz Vasconcellos sabe que do telefone celular do segurança foram feitas diversas ligações naquela madrugada. "Todos os que estavam na casa serão interrogados", diz o juiz Alberto Jorge Lima. "Com certeza eles sabem muito mais do que disseram à polícia." Em 1996, os seguranças afirmaram que nada viram ou ouviram, embora a perícia tenha constatado que os tiros que vitimaram Suzana e PC foram perfeitamente audíveis. Além da relação com os Farias, chama a atenção da polícia a forma como Rinaldo foi assassinado. "Pelo que sabemos, o Rinaldo era um homem que não costumava se meter em encrencas e um policial bastante esperto. É estranho que tenha caído numa dessas", diz o delegado Alcides Andrade, que investiga a morte do sargento.

 

Crime sobrenatural – O ex-prefeito de Batalha José Miguel tinha o perfil do que se pode chamar de um autêntico coronel. Um homem temido. Era o pai de Cláudia Dantas, a moça que em 1996 foi apresentada pela polícia de Alagoas como o pivô das mortes de PC e Suzana. Na época, tanto a polícia como a família Farias sustentavam a versão de que PC fora morto por Suzana que se suicidara em seguida. Um crime passional, pois Suzana teria sido trocada por Cláudia e não admitia perder o namorado rico. Cláudia, na ocasião, confirmou a história, mas nenhum amigo de PC sabia desse namoro. "Quem mandou matar o José Miguel é um coronel tão ou mais poderoso do que ele", afirma o delegado Roberval Davino, que investiga o caso. "Todas as hipóteses devem ser consideradas para que se apurem as mortes de Rinaldo e de José Miguel, mas de maneira nenhuma essas mortes irão inibir a apuração sobre os assassinatos de PC e Suzana", avisa o secretário Miranda. Se depender do currículo do secretário, sua recomendação deve mesmo ser considerada. Com 25 anos de Polícia Federal, ele já trabalhou em casos tão polêmicos quanto os de PC. Foi ele, por exemplo, o responsável pelas prisões de Darly e Darci Alves, os assassinos de Chico Mendes. "Agora vamos investigar para valer a morte de PC. Vou escolher um delegado a dedo para conduzir esse inquérito, alguém que não esteja ligado a grupos políticos e acompanharei pessoalmente cada passo da investigação."

A versão do crime passional ruiu definitivamente junto com o laudo pirotécnico elaborado pelo legista da Unicamp Fortunato Badan Palhares. Fotografias comprovam que Suzana era cerca de dez centímetros mais baixa do que dissera o legista. Com isso, tudo o que Badan produziu caiu por terra. Não há como caracterizar o suicídio de Suzana nem como afirmar cientificamente que PC fora morto na posição em que foi encontrado. "Com certeza, PC estava em pé quando recebeu o tiro, levou cerca de 15 minutos para morrer e Suzana foi executada depois de sofrer algumas agressões", diz o legista alagoano George Sanguinetti. A essas mesmas conclusões chegaram os especialistas liderados por Daniel Muñoz, da Universidade de São Paulo, que elaboraram um laudo desmentindo a versão de Badan e considerado como definitivo pelo juiz Alberto Jorge Lima. Para que a tese da polícia, da família Farias e de Badan fosse verossímil, coisas sobrenaturais teriam que ter ocorrido na madrugada de 23 de junho de 1996. A pessoa que atirou em PC deveria estar flutuando sobre a cama. O empresário, depois de baleado, teria se deitado, puxado o lençol e morrido bem-arrumadinho. Suzana, por sua vez, teria atirado em PC, vestindo luvas, atirado contra o próprio peito em pé sobre a cama, tirado e escondido as luvas, lavado o revólver e depois deitado para morrer ao lado do namorado. "Precisamos partir para os interrogatórios. Quem esteve no local do crime tem muito a esclarecer", avalia o juiz Lima.

De fato, passados quase três anos, o promotor Luiz Vasconcellos já tem informações suficientes para concluir que o cenário do crime foi alterado e que se tentou validar uma farsa para justificar um cômodo crime passional. E, como costumam dizer o juiz Lima e o próprio promotor, se houve uma armação, alguém armou com algum objetivo. É por aí que se pode chegar ao assassino. Tão logo a polícia tomou conhecimento da morte de PC, diversos policiais foram à casa na praia de Guaxuma. Várias pessoas já se encontravam no quarto onde estavam os corpos, entre eles o deputado Augusto Farias, irmão de PC, e o então secretário de Segurança, coronel Amaral, que comandava a cena, determinando como e o que ser fotografado pela perícia. Um dos peritos, Nivaldo Cantuária, permaneceu pouco tempo no local e foi mandado para a sede do Departamento de Criminalística a fim de produzir um primeiro laudo técnico, que apontou para o homicídio seguido de suicídio. Outro perito que permaneceu no quarto desconfiou do cenário. Entendia não ser possível PC ter morrido na posição em que se encontrava e acreditava que o empresário teria recebido o tiro em pé, próximo à porta. Como o chão da casa é de tábua corrida e estava muito limpo, esse perito pegou um palito de fósforo e tentou passá-lo entre as tábuas. Dessa maneira, mesmo que o piso tivesse sido lavado, poderia haver algum vestígio de sangue. As autoridades presentes pensavam diferente e mandaram o perito embora. O delegado João do Marques de Menezes, que estava de plantão na delegacia da área e deveria atender a ocorrência também foi barrado. O chefe dos seguranças de PC, Reinaldo Lima, não deixou o policial entrar alegando ter recebido ordens do coronel Amaral. O delegado ficou raivoso. Voltou para a delegacia e dispensou toda a equipe que estava de plantão.

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Hoje, o Ministério Público tem conhecimento dessas histórias e sabe que o laudo de Cantuária não tem credibilidade. Aliás, ele poderá ser processado por falsa perícia por causa de um outro caso. Em 28 de outubro de 1996, o coordenador de arrecadação fiscal da Secretaria da Fazenda de Alagoas, Silvio Viana, foi assassinado. Na época, o delegado Cícero Torres, o mesmo que presidiu as investigações do caso PC e que hoje responde a processo por tráfico de armas, tentou incriminar o cabo da PM Sandro Duarte. O delegado entregou a Cantuária a arma que teria sido usada no crime e pediu um exame. O perito foi fazer o exame na Bahia e voltou com um resultado positivo. O Ministério Público, porém, pediu nova perícia, feita em Pernambuco, e o resultado foi negativo. Diante da contradição, os promotores pediram a realização de um terceiro exame em Brasília, que confirmou o resultado negativo. Chamados para esclarecer o caso, os peritos da Bahia disseram que o próprio Cantuária havia redigido o primeiro laudo e pedido para o chefe do setor assinar, aproveitando-se da boa relação que mantinha com os técnicos baianos. O legista alagoano Gérson Odilon também está em situação difícil. Foi ele quem entregou as fotos para que Sanguinetti elaborasse o primeiro parecer contestando a versão oficial. Por causa disso, foi chamado pelo coronel Amaral que o ameaçou com a abertura de um inquérito policial caso não afirmasse publicamente que Sanguinetti havia roubado as fotografias. O ex-secretário também o induziu a assinar o laudo feito por Badan. Hoje, o promotor Vasconcellos tem conhecimento de que Odilon sempre foi contra o suicídio de Suzana.

 

Mentiras – Os promotores de Alagoas também têm informações de que há diversos depoimentos mentirosos no inquérito. Entre eles ganham destaque o do chefe dos seguranças, Reinaldo Lima, e do deputado Augusto Farias. Reinaldo disse que comunicou o crime a Augusto por telefone, pois o deputado estaria em seu carro com a namorada rumo ao interior. Versão confirmada pelo parlamentar quase um mês depois. Agora, o promotor tem ciência de que tão logo foi feito o disparo que matou PC, Reinaldo foi para o apartamento do deputado. Recebeu do porteiro a informação de que Augusto não estava, pois teria saído com a namorada. Reinaldo, então, foi para a casa da namorada de Augusto e lá comunicou que PC estava morto. "Essas coisas precisam ser esclarecidas e desses esclarecimentos poderá se chegar a um resultado concreto", diz o juiz Lima. A mesma convicção tem o secretário Miranda. Como policial veterano, ele sabe que uma das máximas de qualquer academia de polícia ensina que quanto mais passa o tempo, mais difícil fica para se encontrar um assassino. Mesmo assim, o secretário não desanima. Ele argumenta que a polícia civil alagoana mudou e que hoje trabalha em conjunto com a PM e sem ingerências políticas. Quanto aos quase três anos da data do crime, Miranda mostra-se um otimista. Ele lembra que trabalhou no chamado Crime da Mandioca e que prendeu na Bahia, o responsável por um homicídio ocorrido 13 anos atrás.

 

A queda de um mito

A comprovação de que o laudo de Badan Palhares sobre o assassinato de PC Farias carrega erros grosseiros desbanca definitivamente a tese do crime passional e expõe uma face pouco conhecida do legista da Unicamp. Em julho de 1996, ele desembarcou em Maceió com a fama de um técnico infalível. Hoje, Badan é um homem acuado, incapaz de dar respostas às falhas encontradas em seu trabalho e às voltas com problemas na própria Unicamp. Na quinta-feira 1º, ele se internou em um hospital de Campinas com stress agudo e pediu afastamento por 40 dias de suas atividades. Dias antes, veio a comprovação, por intermédio da fita gravada pelo próprio legista, de que durante a exumação dos corpos de PC e de sua namorada, Badan cometeu erros primários, como a contaminação da pele das mãos de Suzana, o que impossibilita afirmar com certeza científica se ela fizera ou não algum disparo com arma de fogo. No início de maio, o legista deverá dar explicações à Justiça de Alagoas. "Ele será intimado para explicar essas falhas", diz o promotor Luiz Vasconcellos.

Sem esclarecer coisa nenhuma, Badan resolveu atacar. Afirmou que a fita jamais poderia ter saído da Unicamp. O problema é que o diretor do Departamento de Medicina Legal, Ricardo Molina, verificou que a fita em nenhum momento permaneceu nos arquivos da universidade. "Curiosamente, não só a fita, mas nenhum outro material relativo ao caso PC foi entregue à Unicamp", diz Molina. Os problemas de Palhares com a Unicamp não se resumem ao caso PC. Há pelo menos dois laudos sendo contestados, acusações de retardar perícias importantes como as que poderiam identificar algumas vítimas do regime militar e um mais grave, que fere o Código Penal. Na Comissão Processante da Universidade e na Polícia Civil correm uma investigação que coloca o legista em situação vexatória. No final do ano passado, Molina descobriu que o Departamento adquirira, em 1989, um microscópio Nikon de aproximadamente US$ 50 mil, mas esse aparelho nunca esteve na universidade. Depois de longa pesquisa, ficou comprovado que durante mais de nove anos o microscópio permaneceu no laboratório particular de Badan. O legista argumenta que levou o aparelho autorizado pelo ex-diretor do departamento Nelson Massini. "Isso jamais ocorreu", afirma Massini.

Perguntas sem respostas
As dúvidas levantadas por ISTOÉ


 

1 Como explicar a ausência de impressões digitais no revólver usado para matar PC e Suzana?

2 Por que não foram colhidas digitais nas cápsulas não detonadas?

3 Por que não foi feito exame residuográfico nos seguranças e nos demais funcionários presentes na casa no momento do crime?

4 Se Suzana se matou, como explicar a posição da arma – próxima a seu joelho esquerdo e distante de suas mãos?

5 Por que Augusto Farias só foi oficialmente ouvido pela polícia 20 dias depois do crime, uma vez que ele foi o último a ver PC com vida e o primeiro familiar a encontrá-lo morto?

6 Por que rasgaram as assinaturas dos documentos de Suzana?

7 Como explicar o fato de os seguranças de PC não terem ouvido os tiros, se todos os jornalistas os ouviram quando o legista Fortunato Badan Palhares fez dois disparos na casa da praia de Guaxuma?

8 Por que desapareceu o celular de Suzana?

9 Como o IML de Alagoas afirmou que PC e Suzana morreram entre 7h e 9h se, para fazer os exames de temperaura, os legistas não dispunham sequer de um termômetro?

10 Por que não há vestígios do sangue de Suzana na parede e na cabeceira da cama, se o tiro disparado no peito saiu pelas costas?

11 Por que em menos de 72 horas a polícia de Alagoas liberou a casa e a família Farias imediatamente queimou o colchão e os lençóis onde estavam os corpos?


12 Por que a sala onde PC e Suzana teriam brigado foi arrumada e dela nada foi recolhido pela perícia?

13 Por que a equipe de Badan Palhares não usou um aparelho para medir o nível de som durante o teste de acústica feito na casa de praia de Guaxuma?

14 Como explicar as trajetórias dos tiros em PC e em Suzana se o local do crime foi alterado?


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