Novembro, 1993. O presidente Itamar Franco está no poder há um ano, após o conturbado processo que levou ao impeachment de Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito após a ditadura. A sociedade brasileira clama por transparência. A Câmara dos Deputados e o Ministério da Justiça enviam um ofício à Marinha pedindo esclarecimentos sobre 11 desaparecidos políticos no período dos anos de chumbo (1964-1985), entre eles o deputado Rubens Paiva. É a primeira vez que um chefe de Estado coloca a instituição contra a parede para dar explicações do assunto – e ela afirma que os tais guerrilheiros estão “foragidos”.

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DISCURSO
Heloísa Starling, da Comissão da Verdade: papéis mostram que
em 1972 a Marinha sabia que guerrilheiros estavam mortos,
mas em 1993 disse que eram foragidos

O Brasil descobre agora, 20 anos depois, que as Forças Armadas mentiram em plena democracia. Na semana passada, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) revelou estar de posse de documentos oficiais inéditos que dão uma nova versão sobre o destino desses desaparecidos políticos. Segundo a pesquisadora Heloísa Starling, o órgão de informação da Marinha (Cenimar) elaborou um prontuário, em 1972, no qual mostrava que essas pessoas estavam mortas. Trata-se, portanto, de falsidade ideológica. Um informante entregou a papelada, que tem 12.072 páginas no total, para a equipe que Heloísa coordena no CNV no final do ano passado. Tanto a íntegra quanto o nome de quem entregou, no entanto, são mantidos em sigilo pela equipe que está analisando o material. “Não divulgamos tudo para não perder a chance de descobrir outros documentos”, diz Heloísa, professora doutora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O fato de que começam a surgir informantes capazes de esclarecer esse passado sombrio é uma grande notícia. As assinaturas e os carimbos do Cenimar foram analisados por historiadores independentes, que comprovaram sua autenticidade.

Em comunicado oficial, a Marinha negou as contradições e revelou ter enviado os dados requisitados em 1993. Rosa Cardoso, coordenadora da CNV, declarou que poderá recorrer à Justiça com um mandado de segurança para obrigar a abertura dos arquivos das Forças Armadas. A resistência em assumir os fatos não é novidade – vide as ossadas do Araguaia. “Eles podiam mudar de postura, fazer uma autocrítica em relação às práticas passadas, adequar-se à democracia”, afirma Marcelo Zelic, do grupo Tortura Nunca Mais. “Ou vão ficar com cara de tacho a cada prova que vier à tona.”

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O direito às informações precisas do passado é coletivo, não só das famílias dos desaparecidos. Para Flávia Piovesan, professora doutora de direito constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), esse conhecimento tem a ver com a construção da identidade nacional. “A omissão dolosa da Marinha viola o acesso à história do País”, afirma. “O que garante que esse caso dos 11 não é apenas a ponta do iceberg?” Já era tempo de os gargantas profundas da ditadura começarem a aparecer. Talvez através desses novos informantes o Brasil possa, finalmente, discutir sua história.