Ouça a gravação:

 

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Em frente ao hotel Eden, na pequena Oruro, cidade a 3.700 metros de altitude, distante 230 quilômetros da capital boliviana, La Paz, há uma arborizada praça, a Plaza 10 de Febrero. Lá, em uma tarde ensolarada do mês passado, o advogado Jorge Ustarez Beltrán, figura de renome na cidade graças aos serviços prestados a senadores e ministros da Bolívia, colocou as cartas na mesa para o advogado brasileiro Sérgio de Moura Ribeiro Marques, contratado pelas famílias para defender os 12 brasileiros presos há três meses em Oruro. Os torcedores foram apontados como responsáveis pela morte do adolescente boliviano Kevin Beltrán Espada, de 14 anos, alvejado por um sinalizador quando assistia a uma partida de futebol entre Corinthians e San José em fevereiro. “Estou consciente de que os 12 não são culpados”, disse Beltrán, tio de Kevin que assessora juridicamente a família, ao advogado brasileiro.

Na praça, a conversa entre os advogados se desenrolou por cerca de uma hora. Nela, o tio de Kevin insiste para que ele e o colega brasileiro trabalhem juntos para libertar os torcedores do Corinthians. Dias depois, em mais uma hora de diálogo, agora em um restaurante, Beltrán abre o jogo de vez e pede dinheiro para contribuir com a soltura dos brasileiros. “Doutor, te digo com muita sinceridade. Se estamos buscando libertar os 12 torcedores, o caminho não é esse que estamos seguindo. Não é pela pressão política, não é um tema diplomático”, afirma. “Se não trabalharmos juntos, não iremos solucionar nem o problema da família de Kevin nem libertar os 12. Praticamente, o que propomos a vocês é acabar de vez com esse processo. Os familiares (do adolescente morto) buscam uma reparação material, civil, e isso poderia ser assumido pelo Corinthians.” Ou seja, ele deixa claro que o caminho a ser trilhado para a libertação dos torcedores não é o da Justiça, mas o do dinheiro.

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ISTOÉ teve acesso aos diálogos mantidos nos dois encontros e que foram gravados por Marques sem que Beltrán soubesse. Neles, os dois advogados costuram o seguinte acordo: o tio de Kevin, segundo Marques, produziria uma petição na qual declararia, entre outros pontos, a inocência dos 12 brasileiros presos pela morte de Kevin. E – mais importante – revelaria que o adolescente boliviano encontrava-se de costas para o campo quando foi alvejado pelo sinalizador. Além de Beltrán, Beymar Jonathan Trujillo Beltrán, primo de Kevin e única testemunha ouvida (em uma declaração de apenas cinco linhas) sobre a morte dele, assinaria o documento que seria incorporado ao processo de investigação. Por ser uma declaração contundente de uma nova testemunha intimamente ligada ao adolescente morto, seria aberta uma grande possibilidade de libertação para os brasileiros. Apesar de não ter se pronunciado legalmente ainda, o tio de Kevin estava no jogo Corinthians e San José.

A contrapartida do testemunho custaria US$ 220 mil – cerca de R$ 400 mil – a serem entregues à família de Kevin (conforme consta da anotação manuscrita por Beltrán acima) e que deveriam ser levantados pelo advogado Marques em 20 dias, assim que ele retornasse ao Brasil. “Esse é o momento adequado (para solucionar o caso), doutor. Mais para a frente, fica complicado… uma vez que se produz a acusação, aí não poderemos introduzir nenhuma prova que não as que o investigador já tenha determinado”, insiste o advogado Beltrán, como revelam as gravações (leia mais à pág. 74). A confissão sobre a real posição de Kevin na arquibancada poderia mudar o rumo da investigação e culminar com a libertação dos brasileiros, de acordo com o perito Ricardo Molina, da Universidade de Campinas. “Considerando-se que os torcedores corintianos estavam à direita de Kevin, se for verdade que o adolescente boliviano estava de costas para o campo, seria impossível que o sinalizador que entrou pelo olho direito e saiu pela jugular esquerda dele partisse da posição onde se encontrava a torcida brasileira”, diz ele.

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REUNIÃO
À esq., o presidente do Corinthians, Mário Gobbi, com familiares dos presos.
Eles não têm ajuda financeira do clube para resolver a questão jurídica.
Abaixo, o advogado Sérgio Marques (em destaque) e o procurador
boliviano Alfredo Canavari (no centro) durante oitiva do menor H. A. M.

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De volta ao Brasil, o Corinthians foi comunicado sobre a possibilidade de fechar o acordo com o tio de Kevin. “Fui informado sobre o fato. Mas o Corinthinas não dará dinheiro em troca de um depoimento do tio”, diz Luís Bussab, diretor do departamento jurídico do clube. O advogado Marques também comunicou o fiscal da promotoria de Oruro, Alfredo Canavari. O promotor boliviano esteve no Brasil no início do mês para uma oitiva com o menor brasileiro H. A. M., que assumiu ter lançado o sinalizador que aparece em algumas imagens na direção dos torcedores bolivianos. “Canavari concordou que eu fizesse o acordo. Ele me disse que, se fosse fechado, o ajudaria a tirar a pressão que vem sofrendo (das autoridades bolivianas)”, afirma Marques.

O depoimento contundente de um parente de Kevin em troca de dinheiro para a família do adolescente morto, juridicamente falando, pode até não significar a soltura imediata dos torcedores. Mas a revelação de que familiares da vítima tentam negociar a morte de Kevin, além de chocante, demonstra desinteresse em que se ache o verdadeiro culpado. “Um sujeito que propõe um acordo e negocia a imagem do parente morto antes de os fatos serem esclarecidos mostra que ele pode ter se omitido em relação à verdade anteriormente”, diz o advogado dos detentos brasileiros. Na gravação, o tio de Kevin diz não ser preciso tornar público o acordo financeiro. “Não necessito que o Corinthians diga que está compensando a família civilmente… tem de fazer um documento de solidariedade, comovido (com a situação financeira dos pais de Kevin), assumindo sua responsabilidade social e (os) repararia”, sugere Beltrán. Procurado por ISTOÉ e questionado se em alguma oportunidade chegou a pedir dinheiro em nome da família de Kevin a algum emissário dos torcedores presos, o tio do adolescente boliviano respondeu: “Formalmente, não.”

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Marques não conseguiu avançar na negociação dos recursos com o Corinthians ao retornar ao Brasil. Pelo contrário, diz que passou a sofrer pressão política por parte do governo brasileiro e do clube paulista para que o escritório Maristela Basso advogados, do qual é sócio, fosse afastado do processo. É o que ele afirmou em entrevista exclusiva à ISTOÉ online na sexta-feira 10: “Querem que nós sejamos destituídos do caso e o governo colha o mérito da possível soltura dos torcedores.” A maioria dos familiares, porém, é contra a saída do advogado. Uma mãe e uma avó de um dos presos disseram que hipotecariam suas casas, se preciso fosse, para pagar os honorários do escritório. Os recursos passaram a ser bancados via empréstimos às famílias pela torcida organizada Gaviões da Fiel, mas por conflitos nos rumos da defesa os pagamentos cessaram.

Membro da Comissão dos Direitos Humanos da OAB/SP, o advogado Sérgio de Moura Ribeiro Marques, ex-professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), aceitou trabalhar para os familiares dos presos gratuitamente por viver um drama semelhante. Pai solteiro de Tales Porchat de Moura Ribeiro, 11 anos, ele possui a guarda do filho, mas há cerca de três anos concordou com a vontade do garoto de viver um breve período com a mãe, no interior de São Paulo. Desde então, Marques diz sofrer alienação parental e não consegue ter contato com Tales. No dia em que pediu ao pai para ir morar com a mãe, o menino revelou que havia decidido ser corintiano. Marques disse às famílias que sabe quanto é dolorido ter um filho longe e pediu um pagamento inusitado. Ao final do processo, quer que cada torcedor diga ao garoto: “Obrigado, Tales, pois seu pai ajudou a nos tirar de uma situação difícil e ele o fez porque o ama muito.”

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As sérias divergências na condução do caso dos corintianos presos em Oruro podem protelar – e até mesmo complicar – uma possível libertação deles. Na oitiva com o adolescente H. A. M., realizada no início do mês no consulado boliviano em São Paulo, o advogado do menor, Ricardo Cabral, que também trabalha para a Gaviões, não queria que o seu cliente respondesse ao procurador boliviano se sabia onde o sinalizador disparado por ele teria caído, segundo o advogado Marques. Cabral defende a tese de que o menor brasileiro seria o responsável pelo disparo do sinalizador que alvejou o adolescente boliviano. Porém, usar H. A. M. como bode expiatório pode ser um tiro no pé. “A lei penal da Bolívia prega que uma pessoa que tenha participado de um crime, mesmo que não intencionalmente, é julgada como cúmplice”, diz Marques. Ou seja, apenas o fato de um dos corintianos carregar a mochila onde estava o sinalizador, mesmo não sabendo seu conteúdo nem conhecendo H. A. M., já seria indício de cumplicidade aos olhos das autoridades locais.


Para o procurador de Justiça e deputado estadual Fernando Capez, que participou da oitiva no consulado boliviano, há dúvida quanto à trajetória do sinalizador disparado pelo adolescente brasileiro e não é possível afirmar que aquele artefato acertou mesmo Kevin. “A investigação é uma vergonha, não prova nada”, diz ele, que se diz indignado com a postura do Itamaraty. “Sinto que eles estão omissos, não fazem nada de concreto. Tem de fazer pressão diplomática.” Procurado por ISTOÉ, Cabral, o advogado do menor brasileiro, preferiu não se manifestar. Na oitiva, depois de muita insistência, H. A. M. informou que o seu sinalizador teria caído na área verde da arquibancada, a mesma onde ele se encontrava, só que mais adiante. Os assentos do estádio Jesús Bermúdez, em Oruro, estão divididos em três faixas: a mais perto do campo é verde, depois vem a amarela e por fim a vermelha – Kevin estava nesta última. Se isso puder ser comprovado, o depoimento dado pelo menor brasileiro ao procurador boliviano o isenta da culpa da morte de Kevin e, por tabela, os 12 torcedores detidos. “Aquele vídeo que mostra um sinalizador sendo lançado da torcida corintiana não prova nada, nem mesmo que o disparo foi feito pelo menor brasileiro. Se estão usando o vídeo como prova, é chute”, diz o perito Molina.

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SEM PRAZO
O ministro Antonio Patriota, do Itamaraty:
morosidade do governo para libertar os brasileiros

Se o projétil que acertou o olho direito de Kevin e saiu pela sua jugular esquerda partiu da posição onde H. A. M. se encontrava no estádio, Kevin teria de estar agachado e com a cabeça levemente virada para a direita, de acordo com Molina (leia mais no quadro ao lado). Segundo o perito, esta seria a única possibilidade, considerando-se a posição do autor e da vítima, que estava quase protegida por uma tribuna. “É possível que isso tenha acontecido? É. É seguro que tenha ocorrido? Não. Se Kevin estivesse olhando para o campo ou para cima, o projétil teria de vir do alto”, diz Molina. “Não existe exame de necropsia para saber a trajetória do projétil na cabeça da vítima e não se sabe que tipo de sinalizador foi disparado, a força de propulsão e o curso que ele faz. A posição da cabeça do Kevin é determinante para saber a trajetória do sinalizador que o acertou. Não tem como resolver esse caso apenas com os elementos que existem no momento.”

Em resumo, o caso dos brasileiros presos na Bolívia não tem solução técnica. Sem ela, fica a dúvida sobre a autoria do disparo do sinalizador que matou Kevin. E, se não há como provar a culpa dos 12 torcedores do Corinthians, eles têm de deixar a prisão em Oruro. Passou da hora de o governo brasileiro arregaçar as mangas de verdade e, livre de interesses paralelos, priorizar uma solução rápida para a prisão arbitrária de 12 de seus cidadãos que, na Bolívia, vivem dias de criminosos sem sequer terem sido acusados legalmente.

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