O juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto, ex-presidente do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, mobilizou gente graúda do governo, ministros de Estado, parlamentares, magistrados e funcionários do Tribunal Superior do Trabalho que formavam uma eficiente equipe de lobistas para sua obra superfaturada e inacabada. O resultado foi o desaparecimento de R$ 169,5 milhões que saíram dos cofres públicos e foram parar em contas das construtoras Ikal, de Fábio Monteiro de Barros, do Grupo OK, do senador cassado Luiz Estevão e até em bancos de paraísos fiscais como Suíça, Panamá e Paraguai, onde Lalau tem contas. Além de contar com a ajuda privilegiada do ex-ministro Eduardo Jorge Caldas, seu maior lobista com gabinete no Planalto, o juiz tinha uma espécie de coordenador que o ajudava a traçar o desvio das verbas: o diretor-geral do TST, José Geraldo Lopes de Araújo. Segundo um dos integrantes do esquema, Geraldo era o braço direito de Fábio Monteiro.

Amigo de Nicolau há mais de 20 anos, José Geraldo ocupa o cargo desde 1984 e sempre foi o principal contato do juiz em Brasília. Apesar da falta de dinheiro para a ampliação das instalações do Tribunal Superior, em 1994 José Geraldo conseguiu transferir R$ 3,5 milhões do TST para o fórum paulista. No ano seguinte, mais uma transferência. José Geraldo conseguiu ratear R$ 2,7 milhões de três tribunais regionais e do TST. Em 1996, mais uma operação: o diretor do TST, junto com Lalau, conseguiu convencer oito diretores de tribunais regionais a dispensarem quase R$ 5 milhões, transferidos para a construção do TRT-SP. Ao todo, foram R$ 11,2 milhões a mais canalizados do orçamento da Justiça trabalhista para a obra de Lalau. “Para nós, era fundamental concluir São Paulo para começar a nossa sede. Eu repassava a verba para o tribunal e não para ele pessoalmente”, justificou José Geraldo a ISTOÉ. O Tribunal de Contas da União não gostou de tanta generosidade e concluiu que as transferências de dinheiro de outros tribunais e do TST para a obra de São Paulo desobedeceram o Manual de Despesa da União. “Os créditos não foram utilizados em despesas pertinentes aos programas de trabalho vinculados às atividades das unidades que efetivaram o provisionamento”, concluiu o TCU.

Um amigo do peito

 

 

ISTOÉ – O sr. conhece o juiz Nicolau, é amigo dele?
José Geraldo
– Lógico que sou amigo. Conheço ele desde o tempo em que era corregedor, há 20 anos. O que não quero é misturar as coisas.

ISTOÉ – Levantamento da CPI mostra que o sr. recebeu muitos telefonemas do juiz.
José Geraldo
– Recebo muitos telefonemas por dia. Qual é o problema de o juiz Nicolau ligar para minha residência? Mas não era com a mesma frequência que ele ligava para meu gabinete. Eu acredito que não. Eu não repassava nada a pedido dele.

ISTOÉ – O sr. conhece o Fábio Monteiro?
José Geraldo
– Conheço, claro, e me dou bem com ele.

ISTOÉ
– Aparece na lista da CPI inúmeras ligações do Fábio para o sr.
José Geraldo – Isso não deve ser muito, não. Aqui para o tribunal tem. Até porque, veja bem, eu não posso proibir que ninguém ligue pra mim.

Leonel Rocha

José Geraldo estava mesmo empenhado em ajudar o amigo Lalau e Fábio Monteiro. A lista de telefonemas do juiz, analisada pela CPI do Judiciário, mostra a profunda intimidade dos três. Foram mais de 450 ligações entre eles. Inclusive bem longe do local de trabalho e fora do horário de expediente, como a ligação feita nas primeiras horas da madrugada do sábado, 23 de janeiro de 1999, quando o juiz foragido telefonou da sua casa de praia para o apartamento do diretor, em Brasília. Os dois conversaram por 17 minutos. “Sou amigo do Nicolau, me dou muito com ele, mas não quero misturar as coisas”, explica o diretor. O empenho de José Geraldo com a obra do TRT paulista era tão grande que ele tratava do assunto diretamente com o empreiteiro Fábio Monteiro de Barros, responsável pela construção do prédio. Segundo levantamento feito por ISTOÉ no programa de cruzamento de telefonemas da CPI, as ligações do empresário para o diretor foram feitas entre 1993 e 1998. No dia 23 de novembro de 1998, por exemplo, José Geraldo, pouco antes da meia-noite, conversou por 13 minutos com o construtor. “Sou amigo do Fábio Monteiro, não posso negar”, admitiu. José Geraldo recebeu, pelo menos, 451 telefonemas da dupla Fábio-Lalau. Nos últimos sete anos, os dois não pouparam interurbanos para autoridades em Brasília. Hoje, José Geraldo mantém estreita ligação com Fábio Monteiro e Nicolau. Eles “conversam”, através de familiares e advogados, via Internet com muita frequência.

Comitê eleitoral – Ao contrário do que explicou inicialmente, o ex-ministro Eduardo Jorge não tratava com o TRT de São Paulo apenas nomeações de juízes classistas. A lista de telefonemas do empreiteiro mostra três chamadas do empresário para a Secretaria-Geral da Presidência da República, cargo que Eduardo Jorge ocupou até 1998, quando assumiu a coordenação da reeleição de FHC. Em seu gabinete no comitê, Eduardo Jorge trocou telefonemas com o juiz. Fora do governo, ele continuou mantendo contatos com Nicolau. Entre junho de 1998 até fevereiro de 1999 eles se falaram pelo menos 13 vezes pelo telefone.

Análises mais profundas nas contas telefônicas de Nicolau comprovam a comunicação entre o juiz e o ministro do Planejamento, Martus Tavares, que em 1996 era secretário-executivo do Ministério do Planejamento. Há, pelo menos, cinco chamadas de Nicolau para o gabinete de Martus. Duas ligações no dia 8 e outras três no dia 11 de novembro de 1996. Há ainda uma ligação de quatro minutos para o fax de Tavares, no mesmo dia 11. Na gravação da conversa de Nicolau divulgada por ISTOÉ no último número, ele afirma que costumava se encontrar com o ministro. A assessoria de Martus diz que os dois primeiros telefonemas de Nicolau foram atendidos pelo então chefe da assessoria econômica Amauri Bier, hoje secretário-executivo do Ministério da Fazenda. Quando Lalau falou com Martus e Bier, o pedido de crédito suplementar de R$ 25,7 milhões para a obra já havia sido enviado por Martus e pelo presidente Fernando Henrique ao Congresso. A verba estava em plena tramitação na Comissão de Orçamento. O relator, senador Odacir Soares, que recebeu pelo menos 43 ligações de Fábio Monteiro, avalizou o crédito sem pestanejar. “A orientação do governo era para aprovar tudo. Não tenho notícias de alguém da base relatar nada contra o governo”, justifica-se o senador. Odacir Soares considera natural receber tantos telefonemas do empreiteiro de uma obra pública. Ainda mais quando se trata de uma “figura carimbada” no Congresso. Soares revela que cansou de ver Monteiro no plenário da Comissão de Orçamento. “Eu vi e quem disser que não viu não está falando a verdade.”

A quebra do sigilo telefônico do juiz Nicolau mostra que ele falava com o senador Romeu Tuma (PFL-SP). Foram, pelo menos, 86 ligações. A comunicação entre ambos foi interrompida em março de 1999, quando esquentava o debate sobre a CPI do Judiciário. Fábio Monteiro ligou quatro vezes para o gabinete do senador Tuma. Outro senador constantemente acionado pelo empresário era Romero Jucá (PSDB-RR). Recebeu 35 chamadas. Nicolau, segundo a CPI do Judiciário, também ligou para os ex-senadores Élcio Álvares (PFL-ES), 15 vezes, e Carlos Wilson (PPS-PE), 13.

 

Na Câmara dos Deputados, os lobistas se organizaram. Lalau conseguiu que 20 deputados de São Paulo se reunissem no gabinete do falecido deputado Franco Montoro (PMDB-SP) para tratar das verbas do fórum paulista. Na ocasião, os maiores defensores da liberação de mais dinheiro para a obra já denunciada como superfaturada foram o ex-deputado Hélio Rosas (PMDB-SP), coordenador da bancada, que recebeu 30 ligações de Monteiro, e Ricardo Izar (PMDB-SP), acionado por Lalau e Fábio 23 vezes. Izar negou que tivesse conversado com a dupla. Ao tomar conhecimento da lista da CPI, ficou sem explicação. “É um absurdo, não conheço estas pessoas e estranho as ligações para meu gabinete”, reagiu Izar. “O Executivo é cúmplice e o Congresso é conivente com a criminosa construção desse tribunal”, protesta o deputado Giovanni Queiroz (PDT-PA), o primeiro a denunciar irregularidades na obra e a defender o cancelamento das verbas.

Outro lobista famoso do juiz Lalau foi o então presidente do TST, Ermes Pedrassani. Chamado insistentemente pelo amigo e colega de São Paulo, em junho de 1998 Pedrassani visitou os Pedros Malan (Fazenda) e Parente (Planejamento) em busca de verbas suplementares para o TRT paulista. No encontro, o então presidente do TST defendeu mais dinheiro para o prédio de Lalau, justificando que a obra estava em fase final e não poderia parar. Os dois ministros ficaram de estudar o pedido. Pedrassani passou uma tarde visitando a construção e fez um relatório, em reunião administrativa do tribunal, defendendo a continuidade da construção. O cruzamento das listagens da CPI com alguns dos telefones do então presidente do TST revela que ele recebeu pelo menos oito ligações de Nicolau. O ex-deputado Beto Mansur (PPB-SP), atual prefeito de Santos, também falou com os dois. Foram 38 ligações entre os anos de 1993 e 1996 quando estava na Câmara, incluindo o período que ocupou a segunda vice-presidência. Hoje o prefeito estranha as chamadas e questiona o levantamento da CPI, atribuindo as chamadas ao amigo Fernando Bozza, um ex-juiz classista do TRT-SP que virou diretor-jurídico da prefeitura de Mansur. “Nunca falei com os dois cidadãos”, disse. Outro deputado paulista mobilizado por Lalau foi Nelson Marquezelli (PTB-SP). Ele nega ter conversado com o juiz, apesar das 12 ligações de Lalau para o seu gabinete. “Nunca falei com ele”, afirmou.

Até mesmo no Ministério Público Lalau estendeu seus tentáculos. Dez procuradores entraram na Justiça com pedido de investigação de seus colegas Washington Bolívar de Brito Junior e Delza Curvello, do Rio de Janeiro. Entre as razões do pedido está a decisão dos dois procuradores de liberar R$ 23,2 milhões para a obra do TRT.

Washington chegou a receber um cheque de US$ 51 mil da Construtora Ikal, além de vários telefonemas de Nicolau e de Fábio Monteiro. As operações realizadas pela dupla Lalau e Fábio serão descobertas caso o juiz, uma vez preso, revele as perigosas ligações com o alto escalão do governo de FHC, do Judiciário e da Câmara.

 

Na lista dos procurados

 

O que os procuradores do Ministério Público Federal, no Rio de Janeiro, temiam, aconteceu. Depois de passar 37 dias na carceragem do Ponto Zero, em Benfica, subúrbio do Rio, o ex-banqueiro Salvatore Alberto Cacciola conseguiu um habeas-corpus e desapareceu. O habeas-corpus foi concedido liminarmente na sexta-feira 14 pelo presidente interino do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio Mello, primo do ex-presidente Fernando Collor. Cinco dias depois, o presidente do STF, ministro Carlos Velloso, aceitou o argumento do procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, de que a liminar não poderia ter sido concedida pelo STF. Mas já era tarde. Quatro equipes de policiais federais iniciaram busca ao ex-banqueiro no Rio de Janeiro, mas até a noite da quinta-feira 20 Cacciola continuava fora do alcance da polícia.

Para conceder o habeas-corpus, o ministro Marco Aurélio Mello desqualificou a escuta telefônica que serviu de base para o pedido de prisão feito pelo MP. Os procuradores identificaram nas conversas gravadas uma tentativa de Cacciola de influenciar membros da Procuradoria-Geral da República. O ex-dono do Banco Marka, liquidado ano passado, logo após a farra da desvalorização do real, é acusado de favorecimento na ajuda de R$ 1,5 bilhão dada pelo Banco Central às entidades financeiras que apostavam na manutenção da política cambial. O advogado Raimundo Faoro admite que se Cacciola deixou o Brasil “a extradição será difícil, pois ele tem passaporte italiano” e a Itália não extradita seus cidadãos. A juíza Denise Frossard disse que a situação do Brasil lembra a frase dita pelo advogado Ruy Barbosa há cerca de 80 anos: “De tanto ver a impunidade triunfar o homem honesto terá vergonha de ser honesto.”

Hélio Contreiras