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Em entrevista à ISTOÉ, o advogado e membro da Comissão dos Direitos Humanos da OAB/SP Sérgio Marques, sócio do escritório Maristela Basso advogados, afirma que o Itamaraty, o Corinthians e a Gaviões da Fiel o pressionam para que ele deixe de defender os doze brasileiros presos em Oruro, na Bolívia.

O grupo está detido desde fevereiro, quando o torcedor do clube Kevin Espada foi morto por um sinalizador supostamente disparado pela torcida do Corinthians durante uma partida contra o San José.

Dias depois, no Brasil, um menor de idade assumiu a autoria do disparo, mas as autoridades bolivianas se recusam a liberar os brasileiros presos.

ISTOÉ – Há mesmo um movimento de pessoas para que o escritório Maristela Basso advogados, do qual o senhor é sócio, não defenda mais os 12 brasileiros presos em Oruro?

Sérgio Marques – Se o governo, a embaixada, os políticos, permitissem e me deixasse trabalhar lá, eu soltaria os doze. Mas ficar dando murro em ponta de faca é idiotice. Talvez seja melhor para os doze o nosso escritório sair, já que não nos querem no processo. Por outro lado, familiares nos procuram para pedir para não sairmos do caso. O Ricardo Cabral (advogado do menor H. A. M. e da Gaviões da Fiel) disse, em um e-mail enviado ao escritório, que a Gaviões não nos reconhece como advogados dos presos e não vai mais desembolsar dinheiro.

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ISTOÉ – Era a Gaviões quem os pagava? 

Marques – Não. A Gaviões adiantou um dinheiro para os familiares e eles me pagavam. Eu recebia das famílias dos encarcerados. Mas na semana passada, o Mario Gobbi (presidente do Corinthians) chamou as famílias para uma reunião no clube. Ali, segundo me contaram alguns parentes, foi pedido para que os familiares nos destituíssem do caso. Aí, quando os parentes disseram que nós não seríamos afastados, o Gobbi se levantou, saiu da reunião e deixou as pessoas ali (a avó de um dos parentes presente na conversa confirmou o inconformismo de Gobbi e a sua atitude de deixar a reunião naquele momento). Depois, em entrevista para a imprensa, o Gobbi diz que os familiares o procuraram para pedir ajuda para soltar os doze presos. Mentira, foi o contrário! Bom, o Gobbi, agora, não repassa mais dinheiro para as torcidas e elas não podem mais pagar as custas do processo para as famílias.

ISTOÉ – Por que dessa pressão toda?

Marques – Sofremos uma pressão política muito grande, do governo brasileiro, do Corinthians. Os governistas vêm pressionando o Corinthians por meio da Caixa Econômica, com quem o clube ainda não renovou o patrocínio. E o fazem para que nós sejamos destituídos do caso para que o governo colha o mérito da possível soltura dos torcedores. Imagina quantos votos a soltura dos doze não valeria!? Os governistas querem receber os louros; pessoas que não fizeram nada para a soltura dos brasileiros querem receber os louros de uma possível libertação dos brasileiros. Se isso ocorrer, foi porque nós fomos lá e fizemos a coisa andar, colocamos dúvidas na cabeça do promotor boliviano, levantamos outras possibilidades para a morte do Kevin, como a que o disparo feito pelo menor brasileiro H. A. M. possa não ter sido o que matou o boliviano. Mas há ainda o que fazer, porém… E também já teve gente querendo assustar a doutora Maristela Basso, perseguindo o carro dela na rua. Chegou a esse ponto.

ISTOÉ –O sr. encontrou problemas para fazer o seu trabalho desde quando assumiu o caso?

Marques – Sim. Logo início, aqui no Brasil, pedi uma cópia do processo para o tal do Miguel Blancourt, advogado contratado pela embaixada brasileira lá na Bolívia. Esse Miguel dizia haver muita dificuldade por parte da promotoria em fornecer cópias para eu analisar o processo e formular estratégias. Uma hora era a copiadora que estaria quebrada; outra, o fiscal estaria viajando… Eu disse, então, que iria a Bolívia com uma copiadora e iria doá-la para o Ministério Público! Depois de tanto insistir, Miguel me disse que conseguira as cópias. Aí, a embaixada entra em contato com o meu escritório e diz que o envio delas custaria R$ 10 mil. A embaixada quis cobrar da gente R$ 10 mil por cópias do processo! E argumentou que precisaria mandar por DHL, uma empresa que daria garantia que as cópias do processo chegariam no Brasil intacto. Foi o ministro Eduardo Sabóia quem me disse isso, alegando que (as folhas) não poderiam ser perdidas e coisas assim. Esqueceu-se totalmente, ou não, que diariamente existe o malote diplomático justamente para isso, lacrado, ou seja, nada mais seguro. Claro que avisei que não pagaria nada! 

ISTOÉ – E o que você fez, então?
Marques –
Voei para a Bolívia; ficaria mais barato do que R$ 10 mil! No fim das contas, peguei as cópias separadas pela embaixada e as mandei para o Brasil via um dos familiares dos presos que retornava para o País. Aqui no nosso escritório, quando a Maristela Basso abre o pacote, descobre que 49% das cerca de 700 páginas estavam em branco! Uma total palhaçada! Logicamente, a partir daí a minha conversa com o Miguel, a embaixada, passou a ser péssima. Esse Miguel, depois vim a descobrir, recebia da embaixada e também da Gaviões da Fiel por ser uma espécie de braço boliviano do advogado brasileiro Ricardo Cabral. Só pelo fato de receber de dois lados já existe um problema de ética, certo?

ISTOÉ – A embaixada parece não ver com bons olhos o trabalho do senhor?
Marques – A embaixada ficou melindrada pelo fato de eu ter barrado uma reconstituição que estava para acontecer lá. O problema é que a reconstituição incriminaria os brasileiros na hora, porque eles seriam atores do evento. E eu não poderia permitir isso. Aí, pedi uma inspeção ocular, que quase não ocorreu porque a embaixada tentou barrar. Eles negam, mas tentaram. Na inspeção, os presos foram espectadores, juridicamente bem diferente. Essa inspeção foi importantíssima, entre outras cosias, para convencer o promotor a vir ao Brasil para ouvir o menor H. A. M., como de fato veio. 

ISTOÉ – Por que acredita que os doze presos foram recolhidos aleatoriamente e só quase no fim da partida?

Marques – Pense bem: como um sujeito dispara um sinalizador na direção da multidão, mata uma pessoa e os cerca de 20 policiais virados para a torcida, de frente para esse sujeito, não se mexe? Não fizeram nada porque o Kevin já tinha sido retirado do estádio; porque fora atingido antes do disparo efetuado pelo brasileiro! O jovem boliviano já tinha sido levado para o hospital, por isso os policiais não se mexeram. Pois bem: acaba o primeiro tempo e nenhum policial faz nada. O H. A. M., inclusive, foi à lanchonete, questionou um dos policiais para saber se houve algum dano provocado pelo sinalizador que ele soltou. Ouviu um não como resposta. Essa informação consta no processo. Aí, começa o segundo tempo e só no final dele é que um grupo de policiais caminha pelas arquibancadas e começa a escolher os doze torcedores. Depois da inspeção ocular, onde levantei outras hipóteses do ocorrido, o promotor passou a perceber que respeitávamos o trabalho do sistema boliviano, mas que havia outras possibilidades para o incidente. E isso possibilitou que ele conversasse com o promotor brasileiro que ouviu o H. A. M. aqui no Brasil e, depois, que ele pudesse vir ao País para ouvir o garoto. A embaixada, assim como tentou barrar a inspeção ocular, tentou barrar a vinda do promotor boliviano para o Brasil. Eu cheguei a dizer para a pessoa que trabalhava comigo lá na Bolívia para colocar o promotor no avião de qualquer jeito.

ISTOÉ – Por que o senhor esteve na Polícia Federal poucas horas antes de o promotor chegar ao Brasil?

Marques – Fui chamado para conversar com representantes do ministério das Relações Exteriores e da Justiça. O que parecia uma tentativa de aproximação do governo se mostrou uma tentativa de querer dar ordens de como gostariam que o encaminhamento do processo ocorresse. E isso eu não pude aceitar. Aceitaria desde que houvesse uma tentativa de ajuda para o processo criminal para o qual nosso escritório foi designado. Estiveram, também, na PF o advogado da Gaviões da Fiel e do H. A. M. Horas depois, o promotor desembarcou com dois investigadores e os levei para almoçarem em um restaurante renomado de São Paulo, onde comeram muito bem, tomaram uma cervejinha e se sentiram em casa. Entre brincadeiras e bate papo, conversamos e o promotor concordou que haveria outras possibilidades (para a morte de Kevin) e deixou que eu colocasse novamente a minha percepção sobre o caso. Foi quando comentei que acredito que o disparo do sinalizador partiu, sim, do lado direito do Kevin, mas que, talvez, poderia ter sido feito por algum conhecido do jovem. Arrisco a dizer que o primo de Kevin sabe quem foi (o autor do disparo). Não é possível que o primo do garoto declara ter sentido um rojão passando perto de seu rosto, queimando parte de seu sombrero, e ninguém tenha pedido para que ele passasse por exame de pólvora e balística. E por que somente brasileiros – e de forma aleatória – foram recolhidos da arquibancada? Havia uma má fé em quem não era de Oruro. 

ISTOÉ – Como foi a oitiva do garoto H. A. M. no consulado boliviano aqui no Brasil?

Marques – Foi um circo, uma palhaçada tremenda. Oito pessoas estavam inscritas para participar da oitiva de um menor de idade, cuja identidade tem de ser preservada. Mas havia 16 pessoas na sala. Apareceram dois deputados, Vicente Candido e Fernando Capez, tinha a filha do Vicente Cândido, que se dizia assessora ou secretária do pai, além do Ricardo Saad, da Polícia Federal, representante do ministério das Relações Exteriores e alunos de um dos advogados da Gaviões. O promotor boliviano assistia a tudo isso incomodado. O promotor brasileiro que lá estava não foi contra a presença dessas pessoas. E, no final da oitiva, algumas delas pediram cópias do processo. E conseguiram sair com isso, apesar de ninguém ali poder ter acesso ao processo. Somente quem é advogado das partes poderia ter acesso.   

ISTOÉ – Como foi conduzida a entrevista do H. A. M. na oitiva?

Marques – Vi que a oitiva estava direcionada. O advogado do H. A. M. não queria que ele respondesse a verdade, para seguir com a tese de que o menor brasileiro seria o responsável pela morte do boliviano. É uma ignorância querer usar o menor brasileiro como bode expiatório, além de uma antiética nojenta, para soltar os doze. É dar um tiro no pé, porque, dessa forma, os doze serão penalizados como cúmplices. A lei penal boliviana prega que uma pessoa que tenha sido partícipe, ajudado de alguma forma, mesmo que não intencionalmente, a um crime ocorrer é julgada como cúmplice e sofre uma pena em torno de 5 anos. O fato de um sujeito estar carregando a mochila do H. A. M., mesmo não o conhecendo ou saber o que havia dentro dela, para os olhos do fiscal, é cúmplice. Bom, eu insisti com o H. A. M. para saber se teria visto onde caíra o sinalizador lançado por ele. H. A. M. disse que foi na área verde da arquibancada, a mesma onde ele se encontrava, só que mais adiante. A arquibancada do estádio é dividida em três faixas: verde, a primeira; acima, a amarela, e depois a vermelha, onde estava o Kevin. O garoto boliviano estava a dez metros de uma tribuna, que avança sobre a faixa vermelha da arquibancada. Para o sinalizador do brasileiro, então, acertar o Kevin, ele, ao ser solto, deveria subir, desviar da tribuna e atingir um ângulo que acertasse o olho direito e saísse pela jugular esquerda. Pouco provável. Bom, na oitiva com o H. A. M., no consulado, o promotor boliviano fez um desenho do estádio colocando a tribuna para fora da arquibancada. Aí, eu tive de corrigi-lo para que a tribuna fosse desenhada no local correto, avançando a faixa vermelha. 

ISTOÉ – Fala-se que havia outros sinalizadores sendo soltos no estádio. 

Marques – Há fotos que mostram restos de sinalizadores ao lado de onde o Kevin foi retirado do estádio. Ou seja, havia pessoas em volta dele que estavam manuseando esse mesmo tipo de aparato. Outros artefatos estavam sendo soltos também. A primeira fiscal havia dito que aquele tipo de sinalizador não era comercializado na Bolívia. Mentira. Existe, sim, o comércio desse tipo de sinalizador na Bolívia. Isso foi dito pelo H. A. M. na oitiva no consulado, quando ele comenta que, em Cochabamba, eles trocaram de ônibus. E, nessa troca, outros torcedores, que não eram nenhum dos doze presos, compraram sinalizadores semelhantes. A promotoria tem com ela três sinalizadores não disparados, cada um diferente do outro em tamanho, marca e cor. Foram três sinalizadores apreendidos aleatoriamente no estádio. 

ISTOÉ – Qual era a posição de Kevin na hora que foi atingido?

Marques – Não se sabe. Não foi feito exame de necropsia para produzir corretamente a prova material. Não há prova de que Kevin estaria sentado de frente para o campo, tese essa que é trabalhada pela promotoria. Um tio dele estava no estádio, mas não prestou depoimento. O único que deu depoimento foi um primo que estaria ao lado direito do garoto. Havia centenas de pessoas no estádio, mas apenas o primo de Kevin testemunhou com um depoimento de apenas cinco linhas! Por que ninguém mais foi chamado para isso?  

ISTOÉ – Alguns políticos visitaram os presos em Oruro. 

Marques – Deputados que ganham salários estratosféricos vão lá e não deixam um real de ajuda a eles. Mas fazem questão de tirar fotos ao lado deles e dizem à imprensa que estão colaborando com os presos. Teve um deles que fingiu um choro, efetivamente caiu lágrima do fulano, na frente dos presos, na detenção. Ele dizia que havia trazido para a Bolívia o depoimento do menor H. A. M. e que isso os inocentaria e os tiraria da prisão em dez dias. E seguiu dizendo o quanto foi trabalhoso para ele, Vicente (Cândido, deputado federal pelo PT) fazer isso. Uma mentira tamanha. Eu, ali do lado, me levantei nessa hora e falei para parar com essa palhaçada. Porque eu quem havia trazido o documento e o protocolado dois dias atrás na promotoria! Como assim fazer esse teatro e dizer que trouxe o papel com muita dificuldade?! Ou o cara é maluco, ou é inconsequente. Em qual momento essas pessoas se esqueceram de que se trata de um processo de homicídio doloso? Os brasileiros acusados podem pegar de 30 a 50 anos de cadeia. Há um histórico de brasileiros que já faleceram em cadeias bolivianas. Só no começo deste ano, quatro ou cinco presos brasileiros morreram nas mãos dos bolivianos. Entre os doze, tem gente em estado grave. 


ISTOÉ – Quem? 

Marques – O Rafael e o Tadeu estão totalmente desestabilizados. O Rafael, para dar uma resposta para si mesmo sobre o porquê de estar passando por essa injustiça já há quase três meses, começou a tatuar no corpo a razão que o fez estar lá: o amor pelo Corinthians. Então, começou a escrever o nome, as iniciais do Corinthians, o símbolo do clube, no braço, no pescoço, na perna e por aí vai. Ele pega um prego, molha na tinta e vai cortando a pele. É triste. 


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