A cada instante que havia uma sombra, uma nuvem um pouco mais escura no horizonte, o senhor ministro da Fazenda se apressava em tranquilizar os brasileiros. Estava tudo sob controle. Pois bem, sentado aqui ouvi o ministro da Fazenda fazer uma exposição que parecia universitária. Uma descrição que não coincide com o que ele disse em vários momentos da história brasileira recente. Agora sim, cheia de preocupações e de pontos de dúvida. Mas falava como se ele fosse alguém que não o ministro da Fazenda: as coisas acontecem. De repente os juros subiram, de repente houve a crise. E nós? Não há quem tenha responsabilidade por essa estratégia? E não é melhor e mais fácil para o entendimento assumir a responsabilidade e dizer: errei?"

Trecho de um discurso inflamado de algum parlamentar do PT ou do PDT reclamando do ministro Pedro Malan? Nada disso. Essas palavras duras foram pronunciadas no apagar das luzes do regime militar, em março de 1983, pelo atual presidente Fernando Henrique Cardoso, então senador do PMDB por São Paulo. Está nos arquivos do Senado com tantas outras frases de uma época em que FHC pensava bem diferente do que tem agido agora. A crise era outra, provocada pelo aumento dos preços do petróleo no mercado internacional. E o ministro da Fazenda que tentava se explicar em plenário era Ernâne Galveas. Junto com seu colega do Planejamento, Delfim Netto, Galveas negociava um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O senador e brilhante sociólogo discordava da receita amarga imposta pelo Fundo, que acabou levando o País a um período de recessão, juros altos e desemprego, sem impedir que, mais tarde, sobreviesse o aumento da inflação. Dezesseis anos depois, o crítico de outrora, que já pediu que esquecessem o que escreveu, parece estar pedindo para esquecerem também o que falou. Por imposição do FMI, elevou as taxas de juros para 40% ao ano, impôs cortes brutais no Orçamento, novos impostos e contribuições até mesmo para aposentados com uma recessão que pode chegar à queda de 4% do PIB.

Fernando Henrique talvez esteja vivendo o seu pior momento político. As contradições entre o discurso social-democrata do passado e a prática neoliberal de seu governo – por mais que ele esconjure esse termo – ficaram dramaticamente evidentes depois que aceitou incondicionalmente o receituário do FMI para enfrentar a fuga de dólares e o colapso do real. O resultado foi um estrago na sua popularidade detectado até mesmo pelas pesquisas de opinião do Palácio do Planalto. O senador Pedro Simon (PMDB-RS), que esteve na segunda-feira 8 com o presidente na residência oficial do Alvorada, acredita que ele ainda pensa da mesma forma que antes. A explicação de Simon para a mudança de comportamento de FHC são as más companhias. "Acho que ele mantém seus ideais. É um homem digno e sério. Mas cercou-se desses novos notáveis economistas e por esse seu chefe da Casa Civil (Clóvis Carvalho) que é um homem frio, não tem sentimento, não vê cheiro de gente. Foi por aí que foi-se afastando." A impressão que ele teve do presidente também não foi a melhor. Simon achou FHC "cansado, envelhecido e machucado". O humor continua o mesmo, a simpatia e a capacidade de raciocinar rápido também, mas o presidente, que recebeu Simon de bermuda, tênis sem meias e camiseta, se queixou: "Está vendo, eu não posso mais andar assim. Se vou para o sítio ou a São Paulo, infernizo a vida dos meus vizinhos. Nem posso entrar no mar sozinho que tem um cabo e um sargento ao lado. Eu não me mando", desabafou.

"Ele está chegando próximo do limite. Corre o risco de terminar com uma descaracterização muito grande das coisas que defendeu ao longo da maior parte da sua vida. Mas eu tenho esperança na transformação das pessoas. Não desisto de procurá-lo para tentar reverter suas diretrizes", alerta o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), que já fez campanha para Fernando Henrique quando ele se candidatou pela primeira vez ao Senado, em 1978. No dia 29 de janeiro, Suplicy encontrou-se com o velho amigo em uma solenidade. Lembrou que FHC havia prometido ao presidente de honra do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, que até o final daquele mês apresentaria uma proposta de agenda para discutir com a oposição mecanismos de superação da crise. FHC respondeu: "Ah, é mesmo!", e desconversou.

O presidente não admite que está deprimido ou estressado. "Quem tem a determinação de seguir adiante, sempre pensando no melhor para o povo, não tem por que desanimar", declarou no último dia 4, em discurso no qual atacou os "partidários da fracassomania". Para as taxas de juros, o FHC de agora tem uma visão bem diferente do sociólogo do passado. Em janeiro deste ano, soltou duas frases tripudiando seus discursos da década de 80: "Os nossos compromissos serão honrados e será mantida a taxa de juros alta para conter a especulação", e "a taxa de juros é um instrumento de defesa. Se eventualmente existir um momento de inflação preocupante, pode-se usar a taxa de juros. Isso se usa na Inglaterra, na França, na Argentina, na Conchinchina".

Mas as palavras do FHC de hoje não chegam a assustar quem o conheceu no passado. Para o ex-ministro Jarbas Passarinho, que foi líder do antigo PDS quando FHC era líder do PMDB, em 1986, o presidente nunca foi um radical. "Fernando Henrique mudou o posto de observação. Concluiu que não pode governar com o PSDB e virou refém do PFL. Quando se está na oposição age-se como estilingue. Depois, na situação, quem era estilingue vira vidraça. Sem dúvida ele mudou de horizonte, mas temos que levar em conta que as circunstâncias também eram diferentes", alfineta Passarinho.

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Colaborou Cláudio Camargo

O que disse FHC sobre…

JUROS
"(…) até mesmo os banqueiros com consciência histórica gritam que não é possível continuar a extorquir a atividade produtiva com juros tão elevados’’
abril de 1983

"(…) FMI não poderia pressionar países como o Brasil a aceitar (…) taxas de juros e em níveis considerados ilícitos
pelo Tribunal Mundial"
agosto de 1991

CAPITAL FINANCEIRO
"… esta terra tem dono, (…) o dono não há de ser o capital financeiro (…), e com a fome e o desespero do povo não se constrói caminho algum (…)"
abril de 1983

FMI
"Preferimos romper com o Fundo do que romper o País"
junho de 1983

DÍVIDA DOS ESTADOS
"Todos sabemos que os Estados também têm suas dificuldades e tentarão tirar do Tesouro o máximo que puderem. Ninguém há de negar, de boa-fé, a importância dos governadores; nem se oporá a que o presidente se entenda administrativamente com eles"
setembro de 1991

MORATÓRIA
"(…) o ponto de ruptura está à vista, (…) sem negociar, sem levar com vontade política firme aos banqueiros internacionais e ao Fundo a decisão do País, que é a decisão não de dizer ‘não pagarei’, mas sim ‘não posso pagar’, o que é diferente"
junho de 1983

RECESSÃO
"Para esse efeito sim, o corte salarial é útil: ele acelera a recessão e, ajudado pelas medidas tributárias e creditícias anunciadas, pode levar o País a tal ruína que, forçosamente, haverá saldos na balança comercial, como os 6 bilhões de dólares que se esperam para o ano em curso. Ainda assim, com todo o sacrifício social que o remédio recessivo impõe ao País, a dívida continuará impagável nas condições atuais"
novembro de 1983


ABERTURA ECONÔMICA
"Fala-se na abertura da economia. Ela é necessária. Mas onde está a política industrial e de desenvolvimento científico e tecnológico que evite o sucateamento da indústria? Onde estão as opções definindo setores de investimento preferencial que a possam tornar competitiva?"
setembro de 1991

EFICIÊNCIA ESTATAL
"E de nada adiantará a cantilena neoliberal de que o Estado está inchado e metendo-se onde não deve. Porque, mesmo onde ele deve, não pode meter-se e, quando se mete não tem eficácia, porque sua burocracia foi desmantelada, é mal-treinada, ganha pouco e está inchada (…) pelo clientelismo político"

PFL
"Na composição feita por Tancredo, quem mandava era o grupo do Tancredo e o PMDB histórico. A Frente Liberal vinha de acréscimo. Neste momento saiu do casulo uma mariposa chamada PFL. (…) Tudo foi invertido. Hoje quem é apêndice do núcleo de decisões é o PMDB"no Jornal do Brasil em 26 de fevereiro de 1986

CRESCIMENTO ZERO
"Me parece calamitoso que, num país como o nosso, se tenha como objetivo chegar no ano que vem ao magnífico índice de crescimento zero"
agosto de 1983

Covas busca saídas

Sob rigoroso controle médico, o governador paulista, Mário Covas, tem evitado os holofotes, mas trabalha como se estivesse em plena forma. Desde a desvalorização do Real, ele tem sido um privilegiado interlocutor do presidente. Foi o primeiro a conversar com FHC em 29 de janeiro, dia da corrida aos bancos. Naquela inquieta sexta-feira, no Palácio dos Bandeirantes, Covas sugeriu que o presidente não delegasse tarefas. Afirmou que credibilidade é coisa de pele, intransferível. De lá para cá, as conversas com FHC têm sido frequentes e, na pendenga do presidente com os governadores de oposição, Covas atua em sintonia com o Planalto.

Os governadores Zeca do PT (Mato Grosso do Sul), Ronaldo Lessa (Alagoas) e Olívio Dutra (Rio Grande do Sul) já ouviram de Covas o seguinte discurso: "Não participo de um bloco de oposição a um presidente do meu partido. Acho que é preciso pagar as dívidas e não há fórmula melhor para isso do que a que está colocada. Mas também acho que o governo federal deve compensar o esforço dos governadores com alterações na Lei Kandir, por exemplo." Mais do que discurso, Covas partiu para gestos concretos. Na segunda-feira 8, reuniu o secretariado e anunciou cortes. Também estuda taxar os inativos da previdência estadual.

Enquanto Covas articula uma saída negociada, o Grupo dos Sete, que reúne os governadores da oposição, se dividia sobre a melhor estratégia para arrancar uma renegociação do Planalto. A tendência é a radicalização por parte do governador de Minas, Itamar Franco, que não deve participar da reunião de FHC com os 27 governadores, após o Carnaval.

Mário Simas Filho


 

Alívio na recessão

nquanto os juros não caem, o governo decidiu aliviar a recessão e adotar uma série de paliativos para reduzir os efeitos da crise. A desgastante negociação com o FMI e o fantasma da inflação foram substituídos, na semana passada, por notícias menos dolorosas para consumidores e trabalhadores. O Ministério da Fazenda aceitou reduzir o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre automóveis para incentivar a venda nas revendedoras e a produção do ABC paulista, o que deve evitar novas demissões. Para estimular a produção de carros, o Banco Central autorizou a formação de consórcios para aquisição de veículos usados. Quem vender seu carro velho terá dinheiro para comprar um zero-quilômetro, estimulando a produção. Também ficou mais fácil a vida do turista que gastou dólares demais no Exterior e ficou sem dinheiro para pagar a fatura do cartão de crédito. O BC autorizou as administradoras a parcelar 40% da conta. O benefício vale até para quem já pagou o que devia. Na safra de boas notícias, a mais inusitada delas informou que a Caixa Econômica Federal vai pagar a multa de 40% do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) quando a empresa não indenizar o trabalhador em caso de demissão. O governo assume a conta e corre atrás do prejuízo.

Wladimir Gramacho


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