Na sua Ética, o velho e grande Spinoza diz que "não pode haver medo sem esperança nem esperança sem medo". Os brasileiros, diante da flutuação cambial, dividiram-se em dois conjuntos, nenhum dos quais atende à proposição do filósofo. Um deles tem medo sem esperança: defendeu a política cambial até o paroxismo e levou o País à situação atual. Agora diz que nada há a fazer a não ser dobrar, novamente, a taxa de juros! O outro tem esperança sem medo. Crê que o mercado deixado a si mesmo (isto é, sem nenhuma ajuda do governo) vai rapidamente resolver o problema dos fluxos e dos estoques das dívidas, interna e externa, restabelecer o fluxo exportador e reduzir o fluxo importador. É provável que nenhum deles tenha razão.

Não há garantia de que não sejamos confrontados com a necessidade de um duro entendimento com nossos credores internos e externos, mas também não há necessidade inevitável de que isso ocorra. A primeira coisa a entender é que num regime de câmbio flutuante a taxa de câmbio nominal pode variar largamente, ainda que em velocidade menor à do ajuste que estamos vivendo. O gráfico 1 dá uma idéia dessa variação nos EUA.

Nos EUA, no período 1977/80, o câmbio desvalorizou-se quase 25% e depois, no período 1980/85, voltou a valorizar-se quase 70%, para depois desvalorizar-se dramaticamente entre 1985/88. Naquela economia os juros são administrados pelo FED, o seu Banco Central, levando em conta as tendências inflacionárias, mas com um olho no nível de atividades. A sua situação cambial tem pequena relevância na política monetária. Entretanto, as consequências sobre a economia real de movimentos tão amplos e duradouros da taxa de câmbio nominal são profundas e também persistentes.

A lição desses movimentos é que flutuações da taxa cambial nominal de 20% a 30% podem realizar-se em função das diferenças de crescimento entre os países, das diferenças de taxa de inflação, das mudanças nas relações de troca, das diferenças de taxas de juros reais, das mudanças de expectativas, etc., mas não destroem o mercado, ainda que causem sérios problemas para os setores produtivos.

Que efeito tiveram tais flutuações sobre a taxa de inflação? A taxa de inflação americana em 1985 (no auge da valorização) foi de 3,6%. Em 1988 (depois de uma desvalorização de 40% no período) foi de 1,6%.

Pode-se suspeitar que isso só ocorre nos EUA que são uma economia muito forte e superdesenvolvida. Mas não é assim. O caso da Austrália, cuja taxa de câmbio depende fortemente dos preços das matérias-primas, é mostrado no gráfico 2. Ele revela uma escolha inteligente do mix de política fiscal e monetária. Privilegiando sua taxa de juros que caiu de um nível de 7,5% para os 5% atuais, ela impediu o crescimento do desemprego, deixando sua taxa de câmbio nominal desvalorizar-se quase 25% no período 1996/98. Sua taxa de inflação, que em 1996 fora de 2,7%, caiu para 0,9% em 1998.

Pode-se argumentar que a Austrália é um país de tradição anglo-saxônica! O gráfico 3 mostra que isso parece ter pouca importância. Ele revela a taxa de câmbio da Polônia, que é o caso mais bem-sucedido de transição do socialismo real para o capitalismo: ela vem crescendo 6% ao ano nos últimos cinco anos. A taxa de câmbio desvalorizou-se 40% entre 1995 e 1997, para depois permanecer relativamente estável (flutua dentro de uma "banda"). A taxa de juros real polonesa é hoje da ordem de 5,4% contra 10% em 1997. E o que aconteceu com a sua inflação? Ela foi de 18,5% em 1995 e caiu para 9,2% em 1998, como mostra o gráfico 3.

Finalmente temos o caso dos países asiáticos que foram empurrados para uma flutuação das suas taxas cambiais depois de terem, na vã tentativa de defendê-las, consumido as suas reservas. Os gráficos 4 e 5 sintetizam o movimento da taxa de câmbio nominal da Tailândia e da Coréia, respectivamente.

A Tailândia, que deu origem à "crise asiática" que contagiou as demais, deixou o câmbio flutuar em 2 de julho de 1997, o que significa que temos agora um ano e meio de experiência sobre como se comportaram aquelas taxas de câmbio. Vemos que o baht, a moeda tailandesa, se desvalorizou cerca de 100% em seis meses, para em seguida iniciar um processo de valorização de quase 60% nos seis meses seguintes. Na segunda semana de janeiro de 1999, o baht esteve cotado a 37,1 bahts/US$, contra 51,0 bahts/US$ na segunda semana homóloga de 1998, com uma valorização de quase 30% no período. A sua taxa de juro real passou de 10% em maio de 1997 para 17% em dezembro de 1997 e se encontra hoje em 3,75%.

O caso da Coréia é paradigmático. A taxa cambial nominal passou de 800 wons/US$ no momento da liberação do câmbio (outubro de 1997, quando o país não tinha mais reservas) para quase 1.800 no fim de 1997 e começou a declinar já no primeiro trimestre de 1998. A taxa de juros real de 7% em média de janeiro/setembro de 1997 (antes da crise) elevou-se fortemente de outubro em diante, chegando a 27% em dezembro de 1997. Caiu drasticamente já no mês seguinte para 16% e continuou em queda até atingir 3% em agosto de 1998. Está hoje em 4%, devido à redução da taxa de inflação.

Há um ano instalava-se na Coréia a liberação cambial e a taxa de câmbio sofreu, em poucas semanas, uma desvalorização de 125%, que corresponderia a uma imaginária passagem do real de 1,22 R$/US$ para 2,75 R$/US$. Hoje a cotação encontra-se em torno de 1.170 wons/US$, uma valorização de 35% em relação ao pico de 1.800 wons/US$. Insistimos sobre esses números porque eles mostram a profunda diferença entre a Coréia de dezembro de 1997, quando o mundo decretou a morte do "milagre coreano", e a Coréia de dezembro de 1998 com a previsão de inflação de 4% e de um crescimento de 3,5% em 1999.

Na última semana de janeiro, enquanto nos debatíamos numa dolorosa confusão com todo o governo se esforçando para restabelecer sua credibilidade, a Standard & Poor e a Fitch IBCA elevaram o rating da Coréia para a condição de "suficiente para prudente investimento". A principal justificativa da Standard & Poor foi exatamente a "forte ação governamental para superar a crise financeira do país". A "ressurreição" levou apenas um ano, depois de uma queda do produto de 6%! Pode parecer um paradoxo, mas o Banco da Coréia hoje enfrenta outra vez um "excesso" de entrada de capitais e tenta impedir que ele valorize ainda mais o won.

Vemos que todos eles obedecem ao mesmo tipo de movimento. Há uma desvalorização extremamente rápida após a flutuação cambial, com um característico overshooting. Num primeiro momento, eleva-se a taxa de juros real (mas em níveis muito inferiores às vigentes no Brasil nos últimos 48 meses). Como é evidente, quando se estabelece a percepção de que o câmbio vai valorizar-se a partir do ponto máximo de overshooting, acelera-se a queda da taxa de juros, o que aconteceu em todos os países.

O estudo atento do caso coreano traz importantes lições. Logo após a desvalorização de novembro de 1997, o governo coreano iniciou a renegociação para alongamento de parte de sua dívida externa e reduziu drasticamente as importações, obtendo superávits comerciais mensais de mais de US$ 2 bilhões a partir de janeiro de 1998. Em outras palavras, ele enfraqueceu o fator que pressionava a desvalorização do câmbio e fortaleceu o movimento na direção contrária. Com isso a taxa de câmbio passou a valorizar-se de forma consistente já a partir de janeiro, o que mostra que atitudes ativas por parte do governo coreano minimizaram o período de overshooting. Max Corden, importante especialista em Economia Internacional, concluiu em recente estudo que grande parte do sucesso da recuperação coreana foi fruto da capacidade gerencial do governo em administrar a crise.

E o que aconteceu com a taxa de inflação naqueles países que estavam em condições piores do que o Brasil quando flutuaram o câmbio (já não tinham reservas, seu sistema bancário não tinha supervisão, suas empresas e bancos estavam superalavancados)? A tabela abaixo mostra a sua evolução.

Como vemos, o efeito de desvalorizações fantásticas sobre a taxa de inflação foi relativamente pequeno. Na Coréia, as exportações físicas têm crescido à taxa de 18% ao ano e ela liquidou seus primeiros compromissos com o FMI. Nos dois países as reservas ou se estabilizaram ou cresceram e a atividade econômica dá claros sinais de recuperação com relativo equilíbrio externo.

Voltemos ao Brasil, onde se acabaram as ilusões. Fizemos o que não podíamos deixar de fazer, ainda que atrasados. Se tivéssemos feito há mais tempo, teríamos poupado a sociedade brasileira de tantos sacrifícios inúteis. E fizemos malpreparados, pois o déficit público estava no ponto mais alto dos últimos anos, devido aos efeitos das mudanças no processo eleitoral efetuadas em meados de 1997. A inversão das prioridades, isto é, o projeto de reeleição em lugar da verdadeira reforma fiscal (não apenas um ajuste fiscal!), impediu-nos de coadjuvar com segurança o caminho dos equilíbrios interno e externo da economia. Pior, não fizemos a flutuação comandada por nossa vontade. Fomos levados a escolher entre a livre flutuação ou a liquidação do restante de nossas reservas, o que nos empurraria, eventualmente, para uma tragédia ainda maior que seria a moratória.

Deveríamos, agora, inspirar-nos um pouco no exemplo coreano. Como é sempre problemática a renegociação da dívida soberana, o governo poderia garantir o pagamento integral da mesma com o empréstimo do FMI, por exemplo. Ao mesmo tempo, uma ação conjunta com os principais bancos estrangeiros poderia conseguir a rolagem negociada por alguns meses das dívidas privadas das empresas brasileiras e, principalmente, o restabelecimento das linhas de crédito comercial. Tal medida aliviaria em grande parte a pressão que no momento existe sobre o câmbio, possibilitando que o período de acomodação pós-desvalorização fosse reduzido e, consequentemente, uma baixa mais rápida da taxa de juros. Ao mesmo tempo, a garantia de pagamento da dívida soberana provavelmente provocaria a queda dos spreads de nossos papéis no Exterior, o que abriria mais espaço para quedas em nossos juros internos (pois as margens de arbitragem para fuga de divisas seriam diminuídas).

A liberação do câmbio após longo período de taxas administradas é sempre um pouco conturbada, como vimos nos outros países. Mas o que não se deve perder de vista é que ela fornece graus de liberdade antes inexistentes para a retomada do crescimento econômico. A questão então é fazer bom uso da liberdade adquirida e tomar atitudes para conseguir aquele objetivo. O inaceitável é comportar-se neste novo regime de forma passiva, como se ainda estivéssemos sujeitos às restrições do modelo anterior.

Se a política econômica readquirir credibilidade, mostrar absoluta coerência e se o FMI não exigir que se repitam os equívocos iniciais que impôs aos asiáticos, poderemos ter um cenário parecido ao seguinte, em 1999:

 

1. taxa de inflação em torno de 10%;

 

2. taxa de juro real média entre 10% e 15%;

 

3. taxa de juro nominal média do CDI acumulado no ano entre 20% e 25%; e

 

4. taxa de câmbio nominal em dezembro em torno de 1,65 R$/US$.

Nestas condições o dispêndio com juros ao longo de 1999 deverá variar entre 9,5% e 10,5% do PIB (supondo, pessimisticamente, uma redução de 2% do PIB real). Se realizarmos os objetivos fiscais já autorizados pelo Congresso, acelerarmos as privatizações, melhorarmos as condições dos contratos de exploração do petróleo, não formos lenientes com Estados e municípios e cortarmos ainda algumas despesas de custeio, não é impossível obter um superávit primário entre 2,5% e 3,0% do PIB, o que nos deixaria com um déficit nominal entre 7% e 8% do PIB, pouco menos do que o de 1998. A boa notícia é que há condições para que ele se reduza, paulatinamente, a 4% do PIB ao longo de 2000.

Como a relação Dívida Pública Líquida/PIB vai crescer, compreende-se o sentido de urgência da redução da taxa de juros para dar ao mercado a percepção de que ela vai mesmo estabilizar-se, no novo patamar, a partir do ano 2000.

O outro cenário seria a perda total de credibilidade da política econômica com a volta da inflação, o que levaria, abraçados, o Brasil e o FMI à bancarrota. Seria o único exemplo (fora a Rússia e a Indonésia que sofreram desarticulação política) de fracasso da passagem de um câmbio fixo valorizado para uma flutuação.

Os exemplos que examinamos percorreram o espectro de países totalmente diferentes. Eles mostram que:

 

1. quando se está num regime de flutuação cambial, ela pode ser substancial, mas isso afeta relativamente pouco a taxa de inflação (e, portanto, corrige o câmbio real);

 

2. quando se flexibiliza um regime de câmbio relativamente fixo e administrado com sobrevalorização, o movimento inicial do câmbio nominal é brusco: há um overshooting e é preciso manter altas as taxas de juros reais no momento inicial. Elas se reduzem rapidamente, tão logo se forme a percepção de que o câmbio nominal vai valorizar-se. Nosso problema é que as taxas de juros brasileiras nos últimos quatro anos de tranquilidade sempre foram maiores do que as dos países que flutuaram o câmbio no momento mais grave de suas crises!

 

3. a flutuação do câmbio nominal permite a escolha de um mix de política econômica que reduz drasticamente a necessidade de alta da taxa de juros real e, portanto, reduz a variabilidade da produção e do emprego.

Há, portanto, razões para que aceitemos a fatalidade de nossa crise cambial com algum medo, mas com suficiente esperança. Tudo vai depender: a) da nossa compreensão da situação; b) do nosso esforço interno para estabilizar definitivamente a relação Dívida Interna/PIB; c) de nossa capacidade de ampliar nosso apoio aos atuais e, principalmente, aos potenciais exportadores e controlar importações para gerar o mais cedo possível saldos comerciais que tranquilizem o mercado; d) da nossa capacidade de negociar o restabelecimento de nossas linhas de crédito comerciais; e e) da melhoria da capacidade gerencial do governo.

Com base nas experiências colhidas nos países que receberam assistência internacional nos últimos meses, parece que a economia brasileira tem a possibilidade de efetuar um ajuste mais rápido. Mas para tanto temos que recuperar nossa credibilidade, afastando o mais rapidamente possível a desconfiança que repousa sobre a possibilidade de estabilização de sua relação Dívida/PIB, o que só pode ser conseguido com a queda dos juros reais com a maior urgência possível. Temos de insistir em entendimentos visando o restabelecimento não apenas de nossas linhas de crédito comercial como até a negociação supervisionada da rolagem das dívidas de curto prazo (inclusive as privadas) por um período mais longo.

A sinalização mais segura só será proporcionada, entretanto, por resultados mais animadores nas contas de comércio. Existe espaço para uma temporária contração significativa das importações de produtos finais, dentro das regras da OMC, ao mesmo tempo que se poderia proporcionar condições para a rápida recuperação da oferta de bens transacionáveis, mediante a utilização da atual capacidade produtiva, que se encontra com elevado grau de ociosidade. Uma medida possível seria o ajustamento do prazo de recolhimento dos impostos com o recebimento do faturamento, de forma a proporcionar, generalizadamente, maior capacidade de respiro a custos baixos às empresas que temem um maior endividamento aos custos atuais. Isso feito, com cuidado, teria pequeno efeito sobre a receita pública.

Uma nova política econômica decorrente de um diagnóstico adequado e capaz de fornecer uma estratégia clara deve levar os agentes que operam no lado real da oferta a incorporarem os elementos de convicção que aumentam a credibilidade do governo. Esse é o primeiro passo para – juntamente com os incentivos que coordenem os seus interesses com os do País – estimulá-los a mobilizar os fatores de produção disponíveis na economia brasileira na direção de minorar o problema externo. É preciso restabelecer os setores destruídos pela valorização cambial e restabelecer as linhas de substituições de importações também destruídas pelo câmbio valorizado, pelas altas taxas de juros e pela ausência de financiamento. Isso reduzirá as tensões sociais internas pela diminuição do ritmo do crescimento do desemprego, usando os setores mais intensivos de mão-de-obra (calçados, têxteis, etc.).

Uma palavra final. Não existe nenhuma necessidade de aceitar a autolimitação imposta por um sistema de currency board, que transformaria a economia numa espécie de colônia do país soberano da moeda adotada como âncora. O Brasil merece a oportunidade de realizar as suas esperanças e tornar-se, com o tempo, um global player, mesmo que isso implique hoje algum medo…