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MAIS CARO
O custo de manter uma babá poderá subir
até 60% com o pagamento de horas extras

Foi uma semana rara no Senado. Por unanimidade, na terça-feira 26, os senadores aprovaram, em segundo turno, a Proposta de Emenda à Constituição que amplia os direitos dos empregados domésticos. A chamada PEC das Domésticas concedeu a esses trabalhadores os mesmos benefícios devidos aos demais desde a Constituição de 1988. A partir da próxima semana, quando as novas regras entram em vigor, todo patrão terá de pagar hora extra e respeitar o limite de jornada de trabalho semanal de 44 horas (leia mais à pág. 52). Embora o objetivo da medida seja louvável – eliminar uma injustiça histórica, resquício do nosso vergonhoso passado escravagista –, os parlamentares, na prática, equipararam os patrões a corporações. A classe média, já acuada com gastos com mensalidade escolar, plano de saúde e segurança, passou a semana fazendo contas. Os custos de manter um funcionário vão subir muito, de 21% a 60%, segundo cálculos de especialistas ouvidos por ISTOÉ, e vão pesar, sobretudo, para quem precisa de babá ou de cuidador de idosos. As consequências são muitas. A delicada relação entre empregador e empregado, construída com grande dose de informalidade, passará por um teste de fogo diante da exigência de uma profissionalização repentina, como a necessidade de controlar o ponto ou a previsão de pagamentos como seguro contra acidente de trabalho, por exemplo. A médio e longo prazos, o País passará por uma profunda revolução em sua sociedade.

De imediato, a PEC deve ter um efeito perverso justamente sobre o grupo que pretende beneficiar. Com o aumento dos custos, a informalidade tende a crescer e os patrões podem resolver abrir mão desse trabalhador. As agências já detectaram um interesse súbito por diaristas. Uma pesquisa recente feita pela ONG Doméstica Legal com 2.855 empregadores mostrou que, com a aprovação da PEC, 85% deles estavam dispostos a demitir funcionários. Extrapolando para o País, seriam 815 mil demissões, ou 12,2% do total de 6,7 milhões de domésticos em atividade hoje no Brasil. As estimativas do impacto da PEC na formalização do emprego no setor também não são animadoras. Segundo cálculos do presidente da ONG, Mário Avelino, a informalidade, que hoje está em torno de 70%, deve chegar a 82%. Para trabalhar fora, muitas domésticas também contratam, informalmente, babás para tomar conta de seus filhos. Dificilmente eles poderão arcar com as despesas previstas na lei.

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A questão não é se os domésticos devem ou não ter direitos trabalhistas, mas a forma com que isso está sendo feito. “A emenda exige do assalariado o que só se exige de uma empresa”, afirma Arnaldo José Mazzei, professor de sociologia do trabalho da Faculdade de Administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Por isso, é preciso que o Estado divida com o empregador de classe média, que não é uma empresa geradora de lucro, parte dos custos de incluir esses profissionais no sistema de proteção social. O poder público tem de promover compensações em favor da pessoa física, desonerar o cidadão empregador. Uma proposta é reduzir a contribuição patronal do INSS. Também é necessário desburocratizar o recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que era opcional e passa a ser obrigatório. Hoje, quem quer registrar um funcionário encara uma via-crúcis e é obrigado a adquirir um certificado digital no valor de R$ 110. Além disso, quando a legislação muda para as companhias, é comum que elas tenham meses para se adaptar. No caso da PEC, que afeta apenas pessoas, o prazo praticamente inexiste. Uma semana separa a aprovação da entrada em vigor da lei, embora vários direitos, como o próprio FGTS, ainda precisem ser regulamentados. Alguns, porém, como o auxílio-creche, chegam a ser esdrúxulos. Hoje, esse benefício é devido apenas por empresas que têm mais de 30 funcionárias com idade superior a 16 anos. Como a regulamentação irá adaptar essa regra à realidade de uma casa onde há apenas uma empregada?

“Os próximos meses serão de muita conversa e renegociação com as domésticas”, diz Ana Cristina Limongi França, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) especializada em gestão da qualidade de vida no ambiente de trabalho. “Serão conversas incômodas tanto para as patroas quanto para as empregadas.” Afinal, embora existam muitos empregadores que ignorem os direitos já devidos e não valorizem o trabalho doméstico, há também os que cultivam relações próximas, quase fraternais. Não descontam a parte do empregado do INSS nem vale-transporte, adiantam salários, pagam cursos e concedem empréstimos sem cobrar juros. É um funcionário com situação peculiar. Que empresa fornece alimentação sem custo? Na maioria das casas, as domésticas têm, sem pagar nada, ao menos as três refeições (café da manhã, almoço e jantar). Que companhia permite que o controle de ponto seja exercido pelo próprio trabalhador? As relações trabalhistas no Brasil têm de ser modernizadas, flexibilizadas. Cada segmento deve ser tratado de forma condizente com a realidade da sua profissão. A PEC, porém, apoia-se na anacrônica CLT. Agora, o relacionamento entre patrão e empregado tende a endurecer, o que traz benefícios e prejuízos para ambos os lados. A jornada de trabalho definida é uma garantia para a doméstica, mas, do ponto de vista do empregador, essas horas precisarão render mais do que nunca. “A capacitação das profissionais do setor, ignorada por muito tempo, deve voltar a ser exigida”, diz Ana Cristina, da USP.

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Num futuro próximo, ter um funcionário doméstico no Brasil será um luxo. Esta nova realidade trará grandes mudanças sociais. “Nas famílias de classe média com filhos, a ausência da empregada forçará um grande rearranjo de funções e responsabilidades”, diz Noêmia Lazzareschi, professora de sociologia da PUC-SP especializada em trabalho. Em lares onde marido e mulher trabalham porque dispõem de uma babá para cuidar das crianças, é possível que um dos dois tenha de abrir mão da profissão para dar conta dos filhos e da casa. Matriculá-los em uma escola ou creche em período integral pode ser uma opção, mas também vai pesar no bolso, pois o valor da mensalidade sobe 80%. “Mesmo com o preço mais alto, já recebi três mães apavoradas com a PEC procurando vagas”, diz Marina Barreto, presidente da Associação Brasileira de Ensino Infantil (Asbrei) e dona de uma escolinha no Rio de Janeiro. Como a mudança é súbita, muitas instituições, hoje, não têm vagas disponíveis. Mas é um imenso mercado que se abre. Marina espera um aumento generalizado na procura por esse tipo de serviço e aposta que as escolas e creches irão se preparar para atender à nova demanda. Com tantos custos, a opção pelo filho único deve ser cada vez mais comum. Outra mudança que se avizinha é a forma de cuidar dos idosos. Asilos e casas de repouso irão entrar no radar de quem não tem condições de arcar com um cuidador.

Aos que ainda acham a comparação das despesas com escola integral e casa de repouso com o custo de manter um funcionário doméstico exagerado, vale lembrar que o salário nesse segmento cresce, de maneira praticamente ininterrupta, há dez anos. Nos últimos 12 meses, o custo dessa mão de obra aumentou 11,83% e a inflação, no mesmo período, foi de 6,31%. Nas grandes capitais, onde a formalização é maior – em São Paulo 38,7% são registrados e em Belo Horizonte, 49,9% –, os salários de domésticas começam em R$ 1 mil e de uma babá em R$ 1.500, segundo agências de empregos. E ainda assim o número de profissionais disponíveis cai, enquanto a idade média delas sobe. As filhas das empregadas estão tomando outro rumo profissional.

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Para os mais otimistas, logo estaremos próximos da realidade dos Estados Unidos ou da Europa. Essa ideia embute alguma ingenuidade. Nesses lugares, a vida se organizou, durante décadas, para que as coisas funcionassem dessa maneira. Nos Estados Unidos, por exemplo, pais que trabalham e têm filhos dispõem de uma ampla rede de creches públicas, sistema de transporte eficiente e legislação trabalhista flexível. Lá, quando a criança adoece, o pai pode até pedir dispensa no trabalho. Não será uma canetada, ainda que bem intencionada, dos nossos parlamentares que reproduzirá aqui o que levou gerações para se estabelecer nos países desenvolvidos. É o começo para uma sociedade mais justa. Mas é preciso uma efetiva parceria entre Estado e empregador, como já acontece nas pequenas empresas, para que todas as domésticas passem a fazer parte da rede de proteção social.

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Fotos: Dado Galdieri/Bloomberg via Getty Images; F.L PÌton/A Cidade/Futura Press