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TORTURA
Em uma madrugada, seis brasileiros presos na Bolívia foram retirados
de uma espécie de solitária e obrigados a ficar nus no pátio da
prisão, a uma temperatura próxima de zero grau, por meia hora

Na Inglaterra do século XVIII, uma forma de tortura assombrava os prisioneiros. Quando nevava ou chovia forte, eles eram obrigados a passar as madrugadas ao relento, distantes uns dos outros para evitar que se aquecessem, e completamente nus. Na Bolívia do século XXI, seis brasileiros foram arrancados, durante a noite, de suas celas na Penitenciária de San Pedro, em Oruro, levados ao pátio aberto e forçados a tirar a roupa. Ficaram assim durante 30 minutos e a uma temperatura próxima de zero grau. Nos gulags, os campos de confinamento de presos políticos erguidos na União Soviética de meados do século passado, os detentos rebeldes eram trancafiados em um quarto escuro, sem janela e banheiro, e ali ficavam vários dias em meio a fezes e restos de alimentos. Na Bolívia do século XXI, alguns brasileiros foram levados para um cárcere – o “calabouço”, como os guardas chamam esse lugar – sem acesso a luz natural e desprovido de vaso sanitário, e lá permaneceram até que alguém achasse que o castigo era suficiente.

Tudo isso é grave, tudo isso é bárbaro, mas a afronta que remete a um passado sombrio é ainda mais repulsiva diante da quase certeza de inocência dos brasileiros. Eles são os 12 corintianos detidos sob a suspeita de participação na morte de Kevin Beltrán Espada, o adolescente boliviano de 14 anos que foi atingido, há pouco mais de um mês, por um sinalizador quando via uma partida de futebol. Provas inequívocas, porém, revelam que as suspeitas não têm cabimento. A polícia boliviana já possui elementos suficientes para confirmar a ausência de culpa da maioria dos corintianos presos em Oruro. Se é assim, por que eles continuam detidos? Por que estão sendo torturados? Por que foram abandonados pela diplomacia brasileira? Por que o Brasil virou as costas para eles?

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TRAGÉDIA
Kevin Espada (à esq.), morto ao ser alvejado pelo sinalizador disparado no meio
da orcida do Corinthians, e o brasileiro H. A. M., de 17 anos, que confessou o crime

A resposta para todas essas perguntas parece convergir para um único caminho: eles são desprezados porque são torcedores de futebol. Por mais que as torcidas organizadas tenham protagonizado pavorosos atos de violência nos últimos anos (e é lamentável a ineficiência da Justiça brasileira, incapaz de levar à cadeia criminosos travestidos de torcedores), não está certo deixar os corintianos à própria sorte apenas porque eles pertencem a grupos repudiados pela sociedade. É impossível dizer com certeza se algum dos torcedores presos já se comportou mal diante de fãs de times rivais (provavelmente sim), mas isso deveria dizer respeito a outra investigação. No que se refere à morte de Kevin, a maioria dos corintianos já provou ser inocente. Basta observar com atenção as imagens de vídeo gravadas no dia da tragédia.

No exato momento em que o sinalizador é disparado, alguns torcedores que mais tarde seriam presos pelos bolivianos tocavam tambores animadamente. Como poderiam ter usado as mãos para acender o artefato fatal se elas estavam, conforme revelam as gravações, ocupadas com instrumentos musicais? Outros que também foram arrastados para o presídio nem sequer tinham entrado no estádio quando o sinalizador foi disparado, informação que é confirmada pelos próprios policiais bolivianos. E há ainda o depoimento de um garoto de 17 anos que confessou o crime para as autoridades brasileiras (embora a autoria do disparo do sinalizador não tenha sido oficialmente confirmada pela perícia boliviana). Isso tudo só reforça a arbitrariedade das prisões e o absurdo da permanência dos corintianos no presídio de San Pedro. Por que, então, a diplomacia do Brasil não os retira daquele inferno? “O governo brasileiro tem feito gestões para garantir um tratamento humanitário aos cidadãos detidos em Oruro, mas não pode interferir no Judiciário boliviano”, diz Antonio Patriota, ministro das Relações Exteriores.

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Embora tenha acionado a embaixada em La Paz, o Itamaraty trata o caso de forma burocrática. Patriota chegou a telefonar para seu colega boliviano, David Choquehuanca, e comentou superficialmente sobre o caso em encontro recente com o presidente Evo Morales. Nos últimos dias, o assunto perdeu importância na agenda do chanceler e ficou restrito ao âmbito consular. O que significa isso? Certamente uma má notícia para os corintianos. Apenas profissionais de perfil técnico, que carecem de respaldo político, trabalham para tirar os torcedores da Bolívia. Em outras palavras: sem o peso de autoridades do alto escalão, a chance de os brasileiros se livrarem do cárcere diminui consideravelmente. Um diplomata declarou à ISTOÉ que o governo não tem se esforçado em defender os torcedores organizados do Corinthians porque teme o desgaste político que isso possa acarretar. Ninguém quer, nestes tempos pré-eleitorais, associar sua imagem com torcidas que possuem históricos de violência. O que o governo brasileiro não entendeu é que essa questão não tem nada a ver com futebol. Fossem os torcedores presos são-paulinos, flamenguistas ou palmeirenses, não faria diferença alguma. Se eles são inocentes, como é o caso dos corintianos em Oruro, devem ser libertados imediatamente. Mesmo se fossem culpados, torturas como a praticada nos calabouços bolivianos não são aceitáveis.

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Talvez as autoridades se sensibilizem ao ouvir o relato dos torcedores. O repórter Rodrigo Cardoso entrevistou, por telefone, seis dos 12 corintianos encarcerados (leia os depoimentos nos quadros desta reportagem). Ele conseguiu a façanha graças a uma aberração do sistema prisional boliviano. Dentro da cadeia de San Pedro há um orelhão. Basta discar o número do telefone – e ter a sorte de não ser maltratado pelo boliviano do outro lado da linha – para conversar com os detentos. Isso mesmo. Digamos que fulano tenha praticado um crime. Se você quiser falar com ele, é só telefonar. É assim que os familiares dos corintianos matam a saudade e colhem notícias do sufoco que os brasileiros estão enfrentando.

Nas conversas com os corintianos, sentimentos como tristeza, revolta e, principalmente, pânico revelaram-se à reportagem de ISTOÉ. “Ou a gente mata um ou a gente morre”, diz Danilo Silva de Oliveira, 27 anos. Sua maior preocupação são os presos bolivianos, que carregam facas e punhais sem serem importunados pelos policiais. Os brasileiros são odiados e temem um acesso de fúria dos outros presidiários, muitos deles usuários de drogas, que são consumidas ali mesmo, diante de todos. Danilo já foi quatro vezes para o hospital. A bronquite, que desde a infância não dava sinal de vida, reapareceu na Bolívia. Além disso, a dor provocada por uma infecção urinária, associada a diarreia, o impede de dormir direito.

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Danilo não é o tipo que costuma ser ligado a torcidas organizadas. Ele já trabalhou em empresas como Coca-Cola e Telefônica e hoje dá expediente como assistente de logística e com carteira de trabalho registrada, em uma companhia especializada em transportes. Em sua casa de classe média na zona sul de São Paulo, o quarto está recheado de símbolos do Corinthians – o travesseiro, o cobertor, os porta-retratos, tudo lembra seu time de coração. Os pais jamais aprovaram a paixão sem limites pelo Corinthians e tentaram convencê-lo a abrir mão da viagem para a Bolívia, que ele planejou por estar de folga no trabalho. “Meu filho é um menino carinhoso, que adora ficar em casa com a namorada e detesta briga”, diz Lucimar Silva de Oliveira. Nesse aspecto, ele parece mesmo fugir do estereótipo do monstro que, na visão das pessoas, frequenta as torcidas organizadas. Na certa, há muita gente nesses grupos que só pensa em violência e faz um mal danado para o futebol. Mas há pessoas que certamente não são assim.

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As famílias têm sofrido tanto quanto os torcedores presos. É triste ver a preocupação estampada na cara da cozinheira Joselita Neves, mãe de Fábio Neves, um dos torcedores que tiveram o azar de ir para o calabouço na Bolívia. “O Fábio não me conta tudo, mas sei por outras pessoas que ele está sofrendo muito”, diz dona Joselita, afundada no sofá amarelo de sua sala. Desde que soube que o filho está preso, ela passou a viver à base de calmantes. Nos últimos dias, tem enfrentado problemas financeiros. Quem mantém a casa é o próprio Fábio, que ganha entre R$ 300 e R$ 400 por semana para vender frutas em São Paulo. Sem o dinheiro dele, o aluguel de R$ 800 atrasou e o dono do imóvel não para de cobrar a fatura. Para piorar, dona Joselita recebeu na quarta-feira 20 a conta do celular: R$ 1,2 mil, resultado de seus telefonemas diários para a Bolívia. Quem vai arcar com a fatura? Ela não tem a menor ideia. “O Corinthians, o governo do Brasil, os políticos, ninguém me ligou para saber como uma mãe desesperada está se sentindo”, diz ela. Para a direção corintiana, a situação é complicada. Prestar ajudar significa assumir que eles são parte indissociável do clube – e, assim, assumir a responsabilidade pelos atos dos torcedores. Não fazer nada parece soberba e indiferença. É uma equação que não fecha e o Corinthians não sabe como resolver.

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PRISÃO AUTORITÁRIA
Alguns dos brasileiros presos na penitenciária, em Oruro (à dir.), dizem
que nem sequer haviam entrado no estádio quando o sinalizador foi acionado
(centro). À esquerda, manifestação, em São Paulo, pela libertação dos torcedores

O abandono dos torcedores corintianos só não tem sido maior pela ação isolada de algumas pessoas. No caso do Corinthians, dois diretores conversam com frequência com os presidiários na Bolívia. No Brasil, o deputado federal Walter Feldman (PSDB-SP) tem sido uma figura importante para ajudar os torcedores detidos. São-paulino de coração, Feldman, por razões eleitorais ou não, abraçou a causa. Há duas semanas, aproveitou uma viagem à Bolívia para visitar os corintianos e ficou estarrecido com o que viu. “Dentro do presídio, as condições são desumanas e está claro o risco de vida que os brasileiros correm”, diz Feldman, que criou um grupo na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional para tratar da libertação dos torcedores corintianos. Segundo ele, é certo que, no dia 4 de abril, uma comitiva de autoridades brasileiras irá à Bolívia para negociar com a Justiça local a transferência dos torcedores para uma prisão domiciliar. Em Oruro, os advogados de defesa dos torcedores se preparam para impetrar um pedido de habeas corpus. Essa é a nova esperança que alimenta os brasileiros presos. Quando esteve na Bolívia, Feldman foi alertado sobre o “conteúdo político” da prisão dos corintianos. Seria uma espécie de retaliação ao refúgio dado pela embaixada brasileira ao senador Roger Pinto, da oposição. O parlamentar, do partido de direita Convergência Nacional (CN), responde a mais de 20 processos na Justiça boliviana por acusações que vão de corrupção à chacina de indígenas.


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No filme “Expresso da Meia-Noite”, do cineasta inglês Alan Parker, um americano sofre o diabo em uma prisão turca, que aparece como o verdadeiro inferno na terra, dominada por assassinos, traficantes e gente que está disposta a tudo para fazer o mal a outras pessoas.  Os cárceres bolivianos não estão muito longe disso. Além dos maus-tratos aos presos e da prática abominável da tortura, os presídios do país mais pobre da América do Sul são controlados por uma intrincada rede de corrupção. Não é exagero dizer que, na maioria dos casos, só sai da cadeia quem paga – caro – por isso. Ou seja: se você, por um azar qualquer, for preso no continente americano, como os torcedores corintianos, o pior lugar para que isso aconteça é a Bolívia. Segundo relatos de diplomatas que acompanham o caso, os prisioneiros estrangeiros são usados, no país, como instrumento de barganha política e, na maioria das vezes, como fonte inesgotável de recursos. “De réus, os corintianos correm o risco de se tornar reféns de um sistema judicial corrupto e falido”, comenta um diplomata veterano.

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A senha foi dada na última audiência com a presença dos torcedores corintianos. À saída do tribunal, um diplomata brasileiro foi abordado por um homem boliviano que se identificou como advogado. “Ele me disse que poderia soltar os rapazes”, diz a fonte de ISTOÉ. “Era só uma questão de dinheiro.” Esse diplomata afirma que o sistema judicial da Bolívia funciona como um balcão de negócios. Para conseguir que um processo avance na Justiça, é preciso pagar US$ 100. Se o preso desembolsar US$ 400, dá para passar um fim de semana fora da prisão. A sentença mais barata sai em torno de US$ 15 mil, valor que seria cobrado para liberar cada um dos torcedores brasileiros. Uma conta rápida revela quanto custaria, de acordo com o assédio desse emissário boliviano, a soltura dos 12 brasileiros: US$ 180 mil. “Tenho certeza de que, se esse valor for pago, os brasileiros voltam para casa rapidinho”, afirma o diplomata. O sistema judicial da Bolívia é tão corrupto que virou piada. “A gente chama isso aqui de unboliviable”, diz um funcionário brasileiro, num trocadilho com a palavra americana “unbelievable”, que significa inacreditável.

Alheios às questões políticas e financeiras, os 12 corintianos esperam que as autoridades brasileiras façam o seu papel, que é o de proteger seus cidadãos enroscados em questões jurídicas, a despeito da inclinação ideológica ou do time para o qual torcem. Na quinta-feira 21, a reportagem da ISTOÉ percebeu como a prisão de pessoas inocentes é estúpida e como ela é capaz de causar estragos. J.V. é um garoto esperto de 4 anos, que não quer ir para a escola porque o pai, o motorista Marco Aurélio Nefeire, faz tempo que não aparece em casa. Marco Aurélio é um dos 12 corintianos presos na Bolívia. Ele está prestes a ter outra criança: sua mulher, Ivone Rodrigues, está grávida de oito meses. J.V. não é bobo. “Eu quero ir pra Bolívia”, diz o menino. “Tenho medo que meu pai nunca mais volte de lá. Se ele não voltar, eu vou pra lá.”

Fotos: Gabriel Chiarastelli; José Patrício/Estadão conteúdo
Fotos: Paulo Quintas; MARIO ANGELO /SIGMAPRESS; Aizar Raldes/AFP PHOTO
Fotos: arquivo pessoal; joão castellano ag. istoé; Aizar Raldes/AFP PHOTO


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