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IRMANDADE
Jesuítas noviços rezam em cemitério da Ordem, em San Jose, nos EUA.
Hoje, há 19 mil desses religiosos distribuídos em 112 países – 750 vivem no Brasil

O que duas palavras com o mesmo som mas sentidos diferentes, uma escrita com ss e a outra com ç, têm a ver com a eleição do cardeal jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio para o comando do Vaticano? Nada teriam a ver, não fosse ele jesuíta. Trata-se aqui das expressões “passo” e “paço”, bem-humorado, inteligente e didático trocadilho criado por aquele que é reverenciado, justamente, como um dos mais cultos jesuítas de todos os tempos, a quem o novo papa cita reiteradamente nas missas que celebra – padre Antônio Vieira, português de nascimento, mas brasileiro de criação, fé e missão, que aqui viveu e pregou no século XVII. Respondendo então à indagação acima, sim, as duas palavras têm tudo a ver com o atual momento da Igreja Católica no qual ela precisa estancar a evasão de fiéis e cativar novos seguidores. Em um de seus mais eloquentes sermões, intitulado “Sexagésima”, Vieira ensinou que “passo” é o “incessante caminhar”, é a função de missionário à qual todo jesuíta tem o dever “teológico e moral” de doar seu corpo e sua alma – acudindo os pobres para aliviar-lhes o desconforto e, ao mesmo tempo, atraí-los ao catolicismo. Vieira lutava, assim, pelo crescimento do contingente de fiéis. Já a expressão “paço”, que significa praça diante de igrejas ou palácios, para Vieira traduzia a “pretensa e a pomposa profissão de fé” que não sai da clausura nem dos gabinetes eclesiásticos, que não põe o pé na estrada – ou seja, o caminho mais curto para a Igreja se esvaziar. Vai-se resumidamente se refazer aqui, “passo a passo”, porque o início da jornada remonta há quase meio milênio, a viagem histórica dos missionários jesuítas, religiosos que se congregam na Companhia de Jesus.

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SACERDÓCIO
Jesuítas vão para a missa em Roma:
a celebração faz parte da obediência ao Vaticano

Não é mera coincidência, portanto, que esteja agora um jesuíta no posto máximo da hierarquia católica, reforçando e realçando ainda mais a sua jesuítica presença ao adotar o nome de Francisco – tão popular e globalmente ligado a missões e caridade como o de Santo Antônio se une ao matrimônio. Também não é coincidência que em sua primeira missa como papa Francisco tenha dito que “a Igreja precisa caminhar”. A Igreja Católica precisa deixar de encolher nessas primeiras décadas do século XXI… a Igreja Católica precisava deixar de encolher há exatos 473 anos, quando o tsunami da Reforma Protestante, liderada pelo teólogo Martinho Lutero, passou a atrair cada vez mais adeptos ao se insurgir contra o obscurantista e fechado poder dos papas (eis aí a política do “paço”) e a sugerir a livre interpretação dos textos bíblicos. Pouco antes, em 1534, um grupo de estudantes em Paris, capitaneados pelo até então nobre basco Íñigo López de Loyola (conhecido historicamente como Inácio de Loyola), fundou uma congregação e a chamou de Companhia de Jesus. Foi oficialmente reconhecida por bula papal e, desde então, estrutura-se essencialmente sobre dois pilares – rígida hierarquia e eterna renovação de missões. O nome, em si, diz tudo: companhia lembra guerreiros que arregaçam as mangas e vão à luta, e não pacífico rebanho. Atualmente com 750 membros no Brasil e aproximadamente 19 mil padres distribuídos em 112 países, os jesuítas seguem perseverando nos mesmos princípios de sua fundação. Para se ter uma ideia, a disciplina aos ditames do Vaticano ainda sedimenta-se no lema estabelecido por Santo Inácio de Loyola, “perinde ac cadáver” – latim que significa “disciplinado como um cadáver”. Mais ainda, e de novo de acordo com Loyola: “Acredito que o branco que eu vejo é negro, se a hierarquia da Igreja assim o tiver determinado.” À ISTOÉ, disse o jesuíta e teólogo mineiro João Batista Libanio, 82 anos: “A fidelidade ao papa e o ânimo missionário, estando nele o ideal do ensino por excelência, sempre nos nortearão.”

Ganhar fiéis, a missão

Os primeiros “passos” da nova Ordem no século XVI se deram rumo à América Espanhola e Portuguesa e à Ásia. No Brasil, os jesuítas, nossos primeiros missionários, desembarcaram em 1549 – mais pontualmente na Bahia, liderados pelo padre Manuel da Nóbrega e trazidos de Portugal pelo governador-geral da colônia Tomé de Souza. Contavam-se ao todo seis religiosos. O País era vasto demais para tão poucos missionários, e assim outros seis padres para cá vieram no ano seguinte. Três anos se passaram, e a Coroa novamente envia mais seis. “A Companhia de Jesus vai aonde dela precisam. Cumpre ordens”, diz o teólogo Libanio. Entre os que chegaram para a terceira missão havia um franzino sacerdote espanhol, a quem Deus, o que não deu de saúde, abençoou com a tenacidade da fé e do trabalho: José de Anchieta (hoje em processo de beatificação na Santa Sé). Até então, o trabalho desses religiosos se desenvolvia sobretudo na parcela costeira do Brasil, como, por exemplo, na costa do Estado do Espírito Santo. Com a presença de Anchieta tem-se a interiorização das missões, cujo marco será a fundação da Vila de São Paulo de Piratininga, nada menos que a atual São Paulo, a mais pujante capital do País e nascida de um colégio de jesuítas – ponto histórico conhecido como Pátio do Colégio. Na verdade, também agora no Brasil a missão catequizadora dos padres da Companhia de Jesus passa pela educação, e suas instituições são sinônimo de excelência no ensino das humanidades e do respeito às leis, à ética e à moral.

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A GRANDE MISSÃO
Pátio do Colégio: marco da fundação de São Paulo por José de Anchieta

Em meados do século XVIII a atuação dos missionários em terras das colônias portuguesas começou a ser criticada pelos reis das metrópoles. Motivo: estavam em jogo interesses econômicos. Os índios eram escravos dos colonizadores, que não viam com bons olhos a sua libertação e conversão ao catolicismo promovidas pelos jesuítas – sobretudo a valorização da figura da Virgem Maria, idolatrada desde a origem da Ordem, como se lê em registros da Companhia: um noviço teria contado com a sua ajuda para vencer tentações, e ela teria lhe dado “no conforto de seus seios” o próprio sangue de Jesus. Voltando-se ao campo da exploração econômica das colônias, os próprios padres, no entanto, careciam de mão de obra cativa e boa parcela da população indígena preferia deixar-se escravizar pelos “religiosos de batina negra” – é devido à cor da batina que se diz que os bispos jesuítas são “bispos negros” e, portanto, o papa Francisco é um “papa negro”. Ainda que os religiosos escravizassem os índios, o fato é que tal escravidão não implicava castigos físicos nem humilhações, e assim, à luz do enfoque histórico do início dos séculos XVI e XVII, mas jamais sob a ótica do Iluminismo do século XXI, tal servidão era, digamos, menos desumana – embora toda subjugação embuta a degradação. Para a Coroa, que se sentia lesada, a situação passara do limite em meados do século XVIII e o que se assiste é ao marquês de Pombal – todo-poderoso secretário de Estado do rei dom José I e responsável direto pela reconstrução de uma Lisboa que fora devastada por terremoto em 1755 – expulsar os jesuítas tanto de Portugal quanto das colônias. Do outro lado do mundo, para a Ásia, partira de Portugal 200 anos antes Francisco Xavier, braço direito de Loyola e um de seus principais missionários. Ele empreendeu missões como um “coletor de almas” para compensar o vazio causado pela Reforma, rodou o continente, morreu na China e tornou-se São Francisco Xavier. E é novamente a China, uma outra China potência mundial, que agora também um outro Francisco, o papa Francisco, terá de conquistar num movimento pendular: atrair gente que lá compõe uma seita católica paralela que não acata as determinações do Vaticano. A Companhia de Jesus ressurge sempre na Igreja nos momentos de estancar a evasão de fiéis.

Fotos: Margaret Bourke-White/Time Life Pictures/Getty Images; Donatella Giagnori/EIDON; Eduardo Anizelli/Folhapress