Acredite se quiser: numa área ianomâmi, em Roraima, militares hasteiam a bandeira do Brasil
diante de sede de ONG, onde
antes só havia o símbolo da Comunidade Européia

O ponto mais ao norte do Brasil, na fronteira da Venezuela com a Guiana, está em pé de guerra. Lá, em Roraima, fica a famosa Raposa Serra do Sol, um território de 1,7 milhão de hectares habitado por 15 mil índios de cinco etnias e por cerca de 700 não-indígenas. A área, demarcada desde 1988, está pronta para ganhar um novo status: o de Terra Indígena (TI). Para isso, resta apenas um gesto: a assinatura do decreto de homologação da área pelo presidente da República. Fernando Henrique Cardoso guardou o documento durante cinco anos. Luiz Inácio Lula da Silva o mantém engavetado. Isso porque o presidente vem recebendo alertas de serviços de informação das Forças Armadas, de especialistas em defesa nacional e de parlamentares que estiveram na região de que criar uma TI na instável fronteira tríplice, em pleno coração da Amazônia, poderá custar caro para o País. Eles defendem uma nova configuração para a reserva Raposa Serra do Sol, diferente da elaborada pela Fundação Nacional do Índio (Funai): querem preservar uma faixa da fronteira, que inclui a estratégica cidade de Uiramutã, sede do Sexto Pelotão de Fronteira do Exército, e as plantações de arroz.

Abacaxi – Lula está diante do dilema que divide o governo: ele tem a obrigação de fazer justiça com os índios. Mas o presidente não quer se precipitar e colocar em risco a segurança nacional. Há também pressões de políticos, empresários e produtores rurais, muitos dos quais invadiram a área depois da demarcação e ainda contaminam os rios, segundo a Funai e ONGs como o Conselho Indígena de Roraima (CIR). Trata-se de mais um abacaxi herdado por Lula. A inquietação no meio militar é grande. “Nenhum país do mundo concede soberania a qualquer povo, indígena ou não, numa área de fronteira. Sou totalmente contra a configuração de terras indígenas em fronteiras”, afirmou Geraldo Cavagnari, coronel da reserva e membro do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade de Campinas (Unicamp). O presidente da Funai, Mércio Gomes, contra-argumenta, lembrando que “historicamente os índios sempre defenderam as fronteiras brasileiras”. Segundo Gomes, dos 18.500 quilômetros de fronteira seca do País, 5.770 estão em reservas indígenas. “No ano passado, madeireiros peruanos invadiram a fronteira e os índios Ashaninka deram o alarme para os militares, que os expulsaram”, contou. “De fato, os índios sempre ajudaram na defesa do território nacional, mas hoje não é mais suficiente. Não vão fazer isso com arco-e-flecha”, observou Cavagnari.

Na mesa de Lula há 18 decretos de homologação de terras indígenas para serem assinados, e o mais explosivo é o da Raposa Serra do Sol. A homologação da área contínua divide opiniões entre os próprios índios: os matuxi, wapichana, ingarikó, taurepang e patamona. Boa parte deles quer viver na sua histórica área contínua, sem a companhia dos não-indígenas. Eles contam com o apoio de ONGs nacionais e internacionais e setores da Igreja Católica. Mas há os que desejam manter contato com as outras culturas e se recusam a viver isolados. Estes querem a homologação em ilhas, de forma a preservarem estradas, plantações de arroz e Uiramutã, com seus cinco mil habitantes.

O foco da atuação militar em defesa da soberania brasileira é hoje a gigantesca e esvaziada fronteira amazônica, com seus 11 mil quilômetros fazendo limite com sete países. Por estar desguarnecida, a fronteira tornou-se porta de entrada para narcotraficantes e garimpeiros de outros países, alvo fácil de guerrilheiros da Colômbia. Desde meados dos anos 80, as Forças Armadas voltaram sua mira para o Norte do País, procurando tornar a vulnerável fronteira mais “viva” através da presença de unidades militares e da população civil. “O Norte é a parte mais desguarnecida do País. Há um enorme vazio, de 1.600 quilômetros na fronteira amazônica, sem nenhuma presença do Estado”, observou o general Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, comandante militar da Amazônia em 1998 e em 1999, hoje presidente do Clube Militar. Um dos pontos mais estratégicos na região é justamente o Pelotão de Fronteiras, em Uiramutã. A presença do Exército no meio da Raposa Serra do Sol chegou a ser questionada nos tribunais pelo CIR, mas a Justiça decidiu pela permanência das Forças Armadas, por motivo de segurança nacional.

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Ichiro Guerra

“A Funai não tem condição política de avaliar se a criação de uma reserva atenta contra o interesse nacional” Lindberg Farias, deputado (PT-RJ)

Sapo – A demarcação de uma imensa área contínua na complicada fronteira com Venezuela e Guiana – onde vivem índios da mesma etnia existente no lado brasileiro – também deixou apreensivos estudiosos em defesa nacional. Até hoje os venezuelanos não engoliram o sapo de terem perdido uma boa fatia de suas terras para a ex-colônia britânica. “É um conflito não resolvido. Está em banho-maria. É preciso tomar muito cuidado na fronteira”, advertiu Braz Araújo, coordenador do Núcleo de Análise Interdisciplinar de Política e Estratégia da USP (Naippe). “A Venezuela quer morder dois terços da Guiana. Só não a invadiu até agora porque o Brasil não deixou. A presença militar ali é fundamental”, completou Cavagnari. Na última semana de março, a polêmica sobre a homologação da Serra do Sol nos moldes da demarcação feita pela Funai ganhou mais munição. O deputado federal Lindberg Farias (PT-RJ), da comissão que avalia a tensa situação local, elaborou um relatório que reafirma todos os temores militares e dos especialistas em estratégia de defesa. O relatório ainda está sendo debatido na Câmara e será entregue ao presidente Lula como mais um subsídio para que ele bata o martelo. Lindberg propõe que se exclua da reserva indígena uma faixa de 15 quilômetros na fronteira, onde possam permanecer índios e não-índios e onde as Forças Armadas, a Polícia Federal e a Receita Federal possam agir sem nenhum obstáculo. Ele defende ainda a exclusão da área da reserva das plantações de arroz, o que reduziria a área em 15%.

O relatório afirma que não se pode levar em consideração apenas aspectos antropológicos e considera imprescindível ouvir o Conselho de Defesa Nacional (órgão consultivo da Presidência da República) antes de homologar a área. “A questão da defesa nacional tem sido negligenciada no debate sobre a situação das reservas indígenas em faixa de fronteira. A Funai não tem condições políticas de avaliar se a criação de uma reserva indígena em determinada zona de fronteira atenta contra os interesses nacionais ou não”, afirmou Lindberg. O presidente da Funai, Mércio Gomes, reagiu: “É um projeto de um extra-terrestre. Há um lobby de políticos de Roraima contra essa demarcação porque eles querem manter as plantações de arroz e controlar as terras que são dos índios.” O deputado petista protestou: “O presidente da Funai deveria respeitar o Parlamento.” No Senado, há outra comissão que analisa as demarcações, presidida por Delcídio Amaral (PT-MS), que concorda com Lindberg.

André Dusek

"O projeto(daLindberg) é coisa de um ET, de um extra-terrestre", Mércio Gomes, presidente da Funai

A demora na homologação fez com que o Conselho Indígena de Roraima denunciasse o governo, no dia 29 de março, na Organização dos Estados Americanos (OEA). Advogada do CIR, Joênia Wapichana, ela própria índia nascida na área, lembrou que 21 índios já foram assassinados desde 1981 por conflitos de terra. A pressão sobre Lula cresce com a aproximação do 19 de abril, Dia do Índio. A expectativa era ganhar de presente a homologação contínua. Mas, no meio das pressões, o presidente tem preferido agir com cautela e bom senso. Afinal, o que está em jogo é a soberania nacional.


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