A cena lembrava a batalha de Mogadishu na Somália, em 1993. Na ocasião, 18 soldados americanos foram abatidos, e alguns corpos, desfigurados, arrastados pelas ruas. Na quarta-feira 31, um veículo com quatro americanos foi bombardeado por iraquianos, em Falluja, oeste de Bagdá. Os corpos retirados do carro em chamas foram arrastados pelo asfalto, surrados com paus, desmembrados e pendurados em postes, por uma população vibrando em comemoração. As informações do Departamento de Estado americano são de que os quatro cidadãos eram civis subcontratados pelo Departamento de Defesa. Um tipo de prestador de serviço cada vez mais requisitado que, apesar de eufemisticamente ser chamado de “soldado da fortuna”, é tradicionalmente conhecido como “mercenário”.

Estas foram baixas que não constam das estatísticas de soldados mortos em combate no Iraque, não aparecem para o público, mas que têm aumentado cada vez mais a carga de americanos que voltam para casa em sacos plásticos fúnebres. Exércitos que lutam por dinheiro estão sendo montados no mundo por centenas de empresas que prestam serviços a governos ou a interesses privados. Missões iraquianas são as que mais oferecem oportunidades de trabalho. Tanto que, na última semana, o Pentágono manifestou preocupação com a perda de contingentes de tropas de elite, que estão trocando as Forças Armadas por empreendimentos militares privados. No Afeganistão, no Congo e em Serra Leoa, o mercado para essa gente vive seu maior momento de alta.

Golpe de Estado – No dia 7 de março, um avião Boeing 727-100 foi apreendido ao pousar no aeroporto de Harare, no Zimbábue. Autoridades locais dizem que dentro do aparelho estavam 64 mercenários e considerável arsenal. Não se sabe ao certo qual seria o ponto final da viagem dessa tropa brancaleônica, nem seu objetivo. O governo da Guiné Equatorial diz que o contingente reforçaria rebeldes daquele país na tentativa de um golpe de Estado. Há também suspeitas de que os homens – angolanos, sul-africanos, britânicos e americanos – fizessem parte da equipe de segurança de minas no Congo, protegidas pela empresa Executive Outcomes. Caso se confirme essa última hipótese, seria uma péssima propaganda para essa empresa sul-africana, tradicional fornecedora de mercenários. E, numa época em que a competição na área é cada vez mais acirrada, uma missão fracassada pode representar a perda de futuros contratos milionários.

O recrutamento de funcionários aumentou cerca de 300%, desde 2001, de acordo com estimativas de Robert Brown, ex-tenente-coronel do Exército americano e veterano editor da revista Soldier of Fortune. “Com as guerras no Afeganistão e Iraque, as oportunidades para mercenários estão cada vez maiores. Em Bagdá tem gente ganhando US$ 250 mil por ano, mais verba para despesas. Isso é uma fábula para um soldado”, diz Brown. Mas o que faria um mercenário no Afeganistão? “Os guarda-costas do presidente afegão (Hamid Karzai) são todos mercenários, funcionários da empresa DynCorp, subcontratada pelo Pentágono para esta missão de segurança”, diz Brown.

Essa prática não é bem vista por todos. A deputada democrata Janice Schakowsky apresentou projeto de lei que proíbe o uso de forças privadas em atividades que devem ser exclusivas das Forças Armadas. “Os funcionários da DynCorp têm fama de cowboys. As Forças Armadas dos Estados Unidos estão privatizando suas missões para evitar controvérsias e escrutínios públicos. Escondem as body bags da mídia e protegem os militares da opinião pública”, diz Janice. Seus esforços para aprovar a lei, porém, têm sido barrados pelo domínio republicano no Congresso.

As estatísticas comprovam esta tese. Pegue-se apenas a DynCorp International, que hoje mantém forças policiais ou militares no Afeganistão, Timor-Leste, Iraque, na Bósnia e Colômbia. Neste último país, por exemplo, a empresa mantém 88 aeronaves e 307 funcionários. A missão declarada é a de pulverizar plantações de coca. E esse não é um trabalho limpo. Em 2001, um avião com herbicida invadiu o espaço aéreo do Equador e bombardeou com veneno uma aldeia indígena. Mataram não só as plantações de coca – que os nativos garantem que não possuíam – como também outros cultivos, e ainda animais domésticos e selvagens, homens, mulheres e crianças. Os sobreviventes entraram com uma ação numa corte federal americana reclamando indenização, mas o processo se arrasta em ritmo lento, a caminho do forno de pizza.

A busca por mercenários elevou os pisos salariais da categoria. No site da DynCorp, existe um link com oportunidades de trabalho (www. policemission.com). Um chefe de seção (leia-se: esquadrão) fatura US$ 153.600 por ano. Os contratos são anuais e com direito a apenas 18 dias de férias pagas. No Afeganistão, um segurança ganha US$ 78.076,92. Trata-se de pagamento minguado diante do fato de que o empregado arrisca a vida a cada minuto. Mas para um soldado este é soldo de oficial de alta patente. Quem se ferir receberá 75% do salário durante 30 meses. E só. Em caso de morte, os herdeiros levam US$ 160 mil.

“Quem esteve no Iraque recentemente pôde notar que as forças americanas estão concentradas dentro daquilo que é chamado Zona Verde, uma área fortificada e ultraprotegida onde está plantada a Administração Civil da Coalizão. “Por todo o país, quase não vi soldados americanos uniformizados. A segurança iraquiana está nas mãos de policiais locais e dos serviços privados contratados por empresas ou pelo governo americano”, diz o comentarista da rede CNN Tucker Carlson, que acompanhou uma equipe da Dyncorp em missão de supervisão de atividades em Bagdá. Em seu relato, Carlson revela que os “seguranças” agem como senhores da guerra e não há ninguém que coíba suas ações. A ponto de mercenários da empresa terem amealhado seu arsenal simplesmente saqueando armazéns de armas. Até mesmo rifles e revólveres que pertenciam a Saddam Hussein foram roubados de seus palácios pelos soldados particulares. Explica-se: não é possível enviar armas para o Iraque e, assim, o negócio é comprar os apetrechos no mercado negro ou roubar dos muitos que têm trabucos em casa.

Descontrole – “O problema com estes mercenários é que eles não obedecem às regras de conduta militares nem estão submissos às leis dos Estados Unidos. Ao contrário do que ocorre com os soldados alistados, não há quem verifique seu comportamento, suas ações e os condene por crimes cometidos. Trata-se de um bando com leis próprias”, diz a deputada Janice. Ou seja, não há Convenção de Genebra: globalizaram as milícias fascistas. É pena que o presidente George W. Bush, confessadamente, não seja adepto da leitura. Caso contrário, iria encontrar nas páginas de O príncipe, do italiano Niccòlo Machiavelli (1469-1527), a recomendação de que o regente não deve se fiar em forças mercenárias, mas sim criar um Exército Nacional. Impérios e assoldadados independentes não costumam forjar alianças felizes.