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FIM
Símbolo do poder papal, anel do agora emérito Bento XVI foi
destruído na quinta-feira 28, quando encerrou seu pontificado

Sai o pontífice claudicante, de gestos tímidos e olhar embotado, visivelmente desconfortável no cargo, e entra em cena o papa emérito, figura inédita na milenar Igreja Católica, que já declarou que irá continuar a servir ao rebanho, morando dentro do Vaticano, distante poucos metros do seu sucessor. Os efeitos práticos dessa situação na instituição mais sólida do planeta ainda não são mensuráveis, mas já se sabe que a vida do próximo líder católico será, no mínimo, incômoda, tendo seu antecessor passeando nos jardins do Palácio Apostólico. E sem nenhuma demonstração aparente de pretender abdicar do poder, apesar do discurso de “querer se esconder do mundo” e de prometer “obediência incondicional” ao eleito. Desde o fatídico dia 11 de fevereiro, quando anunciou sua decisão, pasmou a hierarquia cristã e desequilibrou a engrenagem da Santa Sé, Bento XVI, na sua melhor versão “Rottweiler de Deus”, fez nomeações estratégicas e declarações devastadoras, articulou a renúncia de um cardeal acusado de abuso sexual e planejou, pessoal e meticulosamente, seu futuro como aposentado. Joseph Ratzinger fez questão de manter o título Sua Santidade, assim como o de papa. Na despedida com os cardeais na Sala Clementina, na manhã da quinta-feira 28, continuou a disparar suas orientações para o conclave, que deve começar entre os dias 9 e 11: “Que o Colégio de Cardeais trabalhe como uma orquestra, na qual a diversidade sempre trabalhe para um acordo elevado e harmonioso”, afirmou o alemão, temendo uma eleição longa, que exponha ainda mais as chagas de sua Igreja. Diante de um grupo de 23 cardeais italianos divididos em facções, cresce a importância dos 11 votantes americanos, o segundo grupo em número, e aumenta a possibilidade de um nome de fora da Itália. Até de fora da Europa (leia quadro na pág. 80).

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ADEUS
Cardeais se emocionam durante despedida de
Bento XVI na Praça de São Pedro, na quarta-feira 27

O exemplo mais cristalino de que a sombra do pontífice emérito se manterá por sobre o próximo pontificado é a posição do arcebispo Georg Ganswein, 56 anos, secretário particular e fiel escudeiro de Bento XVI. Em dezembro, quando seguramente já havia tomado a decisão de se demitir, o então papa nomeou o religioso alemão prefeito da Casa Pontifícia, um posto estratégico na Santa Sé. Ocorre que Ganswein, que seguiu para Castel Gandolfo com o renunciante na quinta-feira 28, dia em que ele deixou oficialmente o trono de Pedro, continuará como secretário particular de Ratzinger, fazendo a ponte entre o velho e o novo comandante, dia após dia. “Ele quer ter contato com os cardeais e com o novo papa e isso pode representar uma interferência de autoridade perigosa”, diz o teólogo suíço Hans Kung, um dos maiores críticos dos dois últimos pontificados. Ainda no campo das nomeações, quando já era demissionário, Sua Santidade optou por interferir nos rumos do Banco do Vaticano (IOR), uma usina de escândalos nos últimos anos, e nomeou o alemão Ernst von Freyberg, presidente de uma companhia de navegação. Como o IOR estava sem um presidente havia meses, esperava-se que a escolha partisse do próximo pontífice. Na semana passada, sua última como papa em atividade, Bento XVI também aceitou a renúncia do cardeal Keith O’Brien, 74 anos, arcebispo de St. Andrews e Edimburgo, que iria participar do conclave, acusado de “comportamento inadequado” contra religiosos. Interferiu na composição do quadro eleitoral e manteve sua campanha de limpeza moral da igreja. Preocupado com a formação do corpo eclesial, passou horas debruçado sobre processos de todo o mundo para a criação de novos bispos. “Muitas vezes os enviava de volta às dioceses, pedindo outros nomes”, afirma o vaticanista italiano Marco Tosatti.

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MENSAGEM
Acima, a última aparição como papa, em Castel Gandolfo.
Abaixo, encontro com os cardeais na Sala Clementina

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Diante de um futuro ainda desconhecido, depois de séculos em que o ditado romano “Morto un papa se ne fa un altro” (se um papa morre, simplesmente se faz outro) se impôs, vaticanistas tentam entender em quais armadilhas pode cair o futuro papa. O que vai significar para ele, por exemplo, se seu antecessor não está em seu túmulo, mas gozando de plenas faculdades mentais e residindo a poucos metros de distância? Mesmo que Bento XVI cumpra o prometido e seja “apenas um peregrino”, como declarou em sua última aparição como papa, já em Castel Gandolfo, sua presença causará conflitos. Como a alta hierarquia católica irá se comportar se o novo pontífice tomar decisões polêmicas, conservadoras para uns, reformistas para outros, ou não se mostrar capaz de recompor e reformar a decomposta Cúria? Ou, ainda, não tiver forças para estancar os pecados da Igreja? Provavelmente olharão para o lado e buscarão conforto no pontífice emérito. Outra questão: o papa atual e o emérito irão se comunicar?

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Livre da coroa de espinhos que representou a sucessão de escândalos, das mais variadas ordens, que acometeram o Vaticano em seu pontificado, e com a renúncia anunciada, Ratzinger desfiou um rosário de declarações desconcertantes, principalmente para uma instituição pouco afeita a ter sua intimidade revelada. Ao falar sobre “golpes contra a unidade da Igreja” e “hipocrisia religiosa”, por exemplo, ele mostrou quanto está lúcido e forte para detectar problemas e apontar caminhos. O intelectual que domina dez línguas, considerado o maior teólogo da atualidade, pode não desejar estar sob os holofotes do escritório petrino, mas dá todas as pistas de querer ser um sinaleiro para o futuro comando católico. E quanto mais sua despedida formal se aproximava, mais a voz corajosa de Bento XVI se encorpava. “Houve momentos de mares turbulentos e ventos contrários, como em toda a história da Igreja, em que o Senhor parecia dormir”, desabafou, para 150 mil pessoas, na Praça de São Pedro, na quarta-feira 27. Diante de empertigados cardeais com olhos marejados, falou que não estava negligenciando a cruz, que não havia possibilidade de retorno ao privado e que amar a Igreja também significava fazer escolhas difíceis. Uma semana cheia de emoções, mas não imune aos escândalos que invadiram o Vaticano. Segundo a revista italiana “Panorama”, o cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado de Bento XVI e atual carmelengo, ordenou que se grampeassem correspondências, telefonemas, e-mails e até reuniões da Santa Sé, por causa do Vatileaks, escândalo de vazamento de documentos oficiais do Vaticano. A informação foi confirmada pela Cúria. E a publicação italiana “Fênix” levou às bancas um intrigante paralelo entre a renúncia de Ratzinger e o terceiro mistério de Fátima, que falava de um bispo vestido de branco, com andar vacilante, o que simbolizaria o fim da Igreja Católica. Recolhido em Castel Gandolfo até a reforma do Convento Mater Ecclesiae, Bento XVI agora não precisa mais se preocupar em responder a essas provocações que pontuaram seu pontificado. Ele permanecerá no meio da sua Igreja, mas não no centro dela. Pelo menos, assim era o combinado.

Fotos: Gregorio Borgia/AP Photo; Alessandro Bianchi/REUTERS


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