Volta e meia, a sociedade se estarrece com atrocidades cometidas por jovens bem-nascidos que, em tese, não têm motivos para expressar tamanha agressividade. Em São Paulo, a pancadaria em escolas e casas noturnas acaba diluída na grandeza
da cidade, mas, em outras capitais, os protagonistas desses episódios sangrentos
já foram classificados. Em Brasília, eles são reconhecidos por suas gangues e
no Rio ganharam o apelido de pitboys. E foi na capital carioca que aconteceu
o último episódio.

Na sexta-feira 19, um grupo de quatro amigos, saindo da boate Baronneti, na zona sul, provocou uma briga e espancou fortemente um rapaz só porque ele afirmou que a moça com quem eles mexiam estava acompanhada. O policial Túlio da Costa, que estava lá de folga, interveio e saiu da confusão com 40 pontos no rosto. Levado para a delegacia, o grupo foi autuado por lesão leve e dispensado. Dentro do carro, um dos garotos se despediu mandando beijinhos. A cena arrogante despertou indignação. A família de dois dos agressores, um com 18 anos e outro com 16, se mostrou surpresa com o tratamento e a importância que a mídia deu ao episódio. Alegou que os rapazes, comportados e estudiosos, saíram com amigos de infância para se divertir e não faziam parte de uma gangue de malfeitores.

Questões – O futuro dos rapazes será decidido pela nossa morosa Justiça e talvez, quando resolvido, eles tenham maturidade para pensar no que fizeram. Mas o fato é que quem tem filhos adolescentes e viu o semblante assustado dos pais dos garotos começou a olhar desconfiado para o lado, acossado por questões como: será que um dia posso ser surpreendido por uma ação tresloucada como essa cometida por um dos meus filhos? Na tentativa de entender essas explosões desmedidas de agressividade gratuita, surgem muitos pontos de análise. Desde a ebulição dos hormônios até a necessidade de auto-afirmação dentro de um grupo, da banalização da violência aos modelos de liderança valorizados pela sociedade. E, é claro, do modo de criação à transmissão de valores negligenciada pela família em nome do conforto e do sucesso.

Alie-se a tudo isso o sentimento de impunidade que permeia as relações na sociedade em geral e que a tutela paterna pode alimentar. É o que constatou a pediatra Marília Maakaroun, de Minas Gerais, que em sua tese de doutorado pesquisou a violência entre os adolescentes em classes sociais diferentes. “Os piores são os das classes privilegiadas. Eles se sentem poderosos, ou acreditam que seus pais detêm algum poder e podem arrancá-los dos perigos”, diz. Com poder ou sem poder, o fato é que os pais se esforçam para dar a melhor formação aos filhos e a dependência financeira se estende para bem depois dos 20 anos. Sob as asas da família, as chances de desenvolver o senso de responsabilidade são adiadas. “Nossos pais nos defendiam, mas também nos puniam, eram rígidos. Hoje, nós passamos a mensagem de que ‘estou com você e não abro’, tendemos a ser condescendentes, abrimos mão de regras por falta de tempo ou porque ficamos ausentes”, analisa o professor Lino de Macedo, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

O sociólogo, cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio, Geraldo Tadeu Monteiro, acredita também que a agressividade crescente entre os jovens é um problema urbano e contemporâneo. Ele estuda o comportamento de crianças e adolescentes há mais de uma década e diz que esse quadro tem origem num fenômeno mundial chamado “cultura jovem”. “Essas formações briguentas – turma, quadrilha, bando ou grupo – sempre existiram, mas envolviam grupos étnicos, políticos e religiosos”, explica ele. A violência juvenil coincide com o momento em que a sociedade de consumo passou a fazer diferença entre as gerações. “Antigamente, não havia roupa ou música só de jovem. Hoje, tudo se torna obsoleto rapidamente e o que é novo tem mais valor”, reflete.

O isolamento social trazido pela vida em condomínios e grupos fechados, a desintegração da família – segundo dados do IBGE, um terço dos jovens de hoje vive com apenas um dos pais – e a cultura narcisista amparam este tipo de comportamento. Entretanto, parece que alguns valores começam a ser resgatados. É isto que aponta o sucesso de venda do Larousse dos pais e filhos, que tem como marca a educação tradicional e já vendeu mais de dez milhões de exemplares no mundo. O best-seller francês, que acaba de ser lançado no Brasil, aborda a educação do zero aos 18 anos e conta com especialistas brasileiros na edição nacional. Um deles, o pediatra Leonardo Posternak, de São Paulo, diz que a confusão entre médicos, pedagogos e família é “esquecer que o adolescente começa a existir desde que nasce”. Posternak ouve pais dizerem que não gostariam que a filha usasse determinada roupa, mas, como as amiguinhas usam, não querem que ela fique diferente. Ele chama a atenção para a ação coletiva dos pais, que estão abrindo mão de pautar a educação dentro de seus próprios parâmetros.

Transformação – Como se não bastasse, há ainda as questões inerentes à idade. A adolescência é um período de fragilidade no qual a criança, em transformação, está em busca de sua própria identidade e de novas referências. “Ela procura se afirmar pelo que é valorizado pelo grupo e por isso pode fazer atos injustificáveis. Grande parte dos crimes cometidos nesta fase é associada à instabilidade adolescente. A Justiça o trata como uma personalidade em formação”, explica o defensor público e psicólogo Flávio Américo Frasseto, de São Paulo.

Mas a forma como esses jovens agridem não tem nada de pueril. “Surpreende a total falta de administração da violência”, analisa a professora Yvette Piha Lehman, do Instituto de Psicologia da USP. Quando uma pessoa se descontrola e parte para a agressão, ela bate com tudo, mas ao ver o efeito de seu ato há uma satisfação que abre espaço para a percepção da dor do outro. “Nos episódios atuais, há uma descarga descontrolada, como se estivessem batendo num saco de pancadas. O outro não existe”, diz Yvette.

 

Efeitos – Vários especialistas acreditam que o processo de percepção do outro começa na infância. A partir dos sete anos, a criança já organiza seus conhecimentos, estabelece relações e prevê acontecimentos. Mas ela ainda não percebe os efeitos de suas ações sobre os outros. Ela consegue classificar esse é alto, o outro é gordo. Esse período coincide com o início do estudo formal, produzindo aquelas cenas comuns de ridicularização do colega de classe por meio de apelidos e até de exclusão. Nessa idade, nota-se a formação de pequenos grupinhos, que depois dos 12 anos ganharão extrema importância. E é na fase tenra que é preciso trabalhar com a criança para que ela consiga olhar além de seu umbigo.

Uma palavra inglesa vem sendo aplicada na análise de agressividade entre crianças: bullying. Sem termo equivalente em português, bullying reúne traduções como intimidação, ameaça e agressão e traduz um fenômeno novo, da década de 90 para cá, que diferencia brincadeiras de humilhações. O recém-lançado livro Diga não para o bullying! (Abrapia), do pediatra Aramis Lopes Neto e de Lucia Helena Saavedra, ensina escolas e pais a identificar, prevenir e agir nessa situação. Uma característica, segundo Lopes Neto, é a repetição: “Não é uma agressão pontual. Há uma relação de violência, evidência repetida de poder de quem agride sobre quem é agredido”, explica ele.

Coordenador do Programa de redução do comportamento agressivo entre estudantes, dissecado no livro, Lopes Neto afirma que o bullying é o jardim-de-infância dos jovens agressivos. Uma pesquisa realizada em 2002 com 5,5 mil estudantes de 11 escolas do Rio de Janeiro – nove públicas e duas particulares – mostrou que há crianças violentas em todas as escolas e a crueldade é a mesma na forma de apelidar, excluir, agredir. No Brasil, o lugar onde mais ocorre bullying é dentro das salas de aula: 60,2%. A maioria dos algozes é do sexo masculino. Para evitar o problema, todos devem se mobilizar: diretores, professores, pais.

É dessa forma que o problema vivido pelo filho de dez anos da escritora carioca Georgina Martins, 44, está sendo encarado. “Ele foi chamado de ‘mulherzinha’ por não gostar de coisas masculinas, como futebol, e preferir desenhar ou estudar teatro”, explicou a mãe. Georgina elogia a escola Acalanto, onde o menino estuda, parceira na tentativa de resolver a questão. Autora de sete livros infantis e prestes a lançar Ética para criança (DCL), Georgina sabe o que é ser discriminada: “Eu sofri quando criança porque era dentuça. Sei o que um simples apelido pode causar.”

Em São Paulo, algumas escolas criam programas de promoção de valores e,
entre eles, alguns específicos para esse tipo de agressão. É o caso da Escola
da Vila, em São Paulo, que criou o Projeto Conviver, no qual os alunos discutem
em assembléias de classe atitudes e comportamentos. Todos escrevem frases como “Felicito quem ajuda os colegas em dificuldade” e “Critico quem cochicha na frente de outras pessoas”, e elas formam a pauta da reunião. Não é permitida a crítica a pessoas, e sim a atitudes. Depois da discussão, as crianças e os adolescentes estabelecem regras de convivência. “O objetivo é melhorar as
relações e o respeito ao outro. As assembléias não garantem que nunca mais
eles vão repetir uma ação desagradável, mas é um belo exercício”, informa a
diretora Sônia Barreira. Para Danielle Helene Corte Cardoso, 12 anos, que tinha
29 apelidos, entre eles o de Picanha, o recurso foi eficiente. “Eu ficava brava com
os apelidos. Quando coloquei na pauta, vi que muita gente sofria o mesmo que
eu. Falamos dos nossos sentimentos e o menino que gostava de inventar apelidos até chorou”, conta a menina. O colega Gabriel Saidon, da 6ª série, também pôs a boca no trombone. “Tinha um menino que brincava de socos e provocava. O mais legal é que nós resolvemos essas questões praticamente sozinhos, o professor
só acompanhou”, ressalta o garoto.

Cilada – Nem todas as diferenças, entretanto, são resolvidas a tempo. O estudante Caiuá de Frias Monteiro, 18 anos, teve seu nariz quebrado em sete lugares ao ser agredido por um ex-colega do Colégio Nossa Senhora do Morumbi, em São Paulo. Nos tempos de escola, Marcelo (nome fictício) não ia com a cara do melhor amigo
de Caiuá e o ameaçava. A mãe do garoto ameaçado contratou um segurança para protegê-lo. Mas Caiuá pagou o pato. No início do mês, aquele ex-colega se uniu a outro valentão e socou o garoto em pleno corredor da escola de inglês onde estudavam. “Meu filho estava no bebedouro e foi atacado por trás. No momento
em que ele olhou, o garoto acabou com o nariz dele. Foi uma covardia tremenda”,
diz a mãe, a artista plástica Maria Clara Fernandes. Indignada, ela abriu
processo contra os agressores.

Atitudes como essas devem fazer os pais refletirem. Ao ser chamados na escola,
o ideal é não ficar na defensiva e refletir sobre a educação dos seus filhos. “Alguns pais se preocupam quando há problemas com drogas, de aprendizagem ou
mesmo quando a criança está sendo estigmatizada. Se o filho é apontado como agressor, são raros os que procuram ajuda”, diz a psicopedagoga paulista Cíntia Constantino. Ouvir as queixas do outro, perceber sua dor e buscar uma forma conciliadora entre as partes é um exercício que ajuda a construir princípios. Para o psicólogo Ari Rehfeld, da PUC de São Paulo, é preciso internalizar princípios desde
a infância. “Ao se usar apenas as consequências dos atos ou a punição, sempre
que a pessoa tiver oportunidade de burlar o sistema, ela o fará – e com prazer”,
diz o psicólogo. O jeitinho brasileiro e a filosofia do “sabe com quem está falando”
são bons exemplos dessa tendência de quebrar regras. E a explosão de violência juvenil alerta que é bom pensar duas vezes antes de parar em local proibido só porque não tem ninguém olhando.