Numa casa perto da represa Billings, em São Paulo, os 31 membros do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partidão, encontraram-se, clandestinos, em novembro de 1973. A reunião era para discutir a implacável perseguição da ditadura ao partido. “As elites, quando usam a repressão para impor o caminho que escolheram, usam-na cercando e aniquilando os inimigos portadores de idéias que podem somar forças suficientes para derrotá-las”, discursou o dirigente Dinarco Reis. “Você quer dizer que nossa situação é de cerco e de aniquilamento?”, perguntou o dirigente Hércules Corrêa. Ouviu um “sim”. Hércules aproveitou a deixa e retomou outro assunto: a hipótese de infiltração de espiões da Forças Armadas e da CIA (o serviço de espionagem dos EUA) no Comitê Central. Nove meses antes, ele havia recebido de Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do partido, a missão de investigar o tema.

As suspeitas se basearam na bombástica entrevista concedida por outro dirigente, Adauto Freire, o agente “Carlos”, ao Jornal do Brasil, em 3 de dezembro de 1972. Pernambucano franzino, com seu inconfundível bigodinho, Freire era funcionário da Organização das Nações Unidas (ONU) e militante do PCB desde os anos 50. Mais tarde, passou a cuidar, ao lado de Prestes, das relações exteriores do partido.

Mas ao JB, cerca de uma década depois, revelou que trabalhava para a CIA infiltrado no PCB. E relatou com minúcias a hierarquia do Partidão e suas atividades. “Acho que ele se entregou para proteger os outros infiltrados, até mais importantes”, disse Hércules. Mas seu argumento não convenceu os demais. Eles mal podiam imaginar que a estratégia do regime militar até então, de liquidar guerrilheiros rurais e urbanos – definida numa reunião entre os generais Ernesto Geisel e Emilio Garrastazu Médici em maio de 1973, como revelou ISTOÉ na edição passada –, àquela altura já se ampliara para atingir também o PCB, mesmo o partido sendo contra a luta armada. A avaliação de Geisel e de seu grupo era de que o PCB – então a organização de esquerda mais bem estruturada no País e infiltrado no MDB – estava pronto para se tornar uma legenda de massa no caso de uma abertura política. Era preciso, portanto, exterminá-lo antes da volta ao regime democrático. Documentos e depoimentos obtidos por ISTOÉ mostram que a repressão tinha um plano especial para o Partidão.

Comandado pelo chefe do DOI (Destacamento de Operações Internas) de São Paulo, coronel Aldir dos Santos Maciel, o “doutor Silva”, um grupo ultra-secreto recebeu a missão de prender e executar os membros do Comitê Central do PCB, sem deixar pistas. Os assassinatos ocorreram em chácaras clandestinas, para facilitar a ocultação dos cadáveres. Os demais sobreviventes eram encaminhados pelo comando do II Exército aos delegados do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) José Francisco Setta e Alcides Singillo. Após serem torturados, nas dependências do órgão na rua Tutóia, em São Paulo, os militantes eram obrigados a prestar declarações de próprio punho sobre suas atividades. Dentro dessa estratégia se enquadram os casos do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho. Mas, brutalmente torturados, eles acabaram morrendo. Apelidada de “Operação Radar”, a caça resultou na morte
de 11 membros do Comitê Central. Além de destruir as gráficas clandestinas do partido, a repressão desmantelou seus diretórios nos Estados, em operações que prenderam 679 pessoas.

Filme – Obrigado a abandonar o País em 1975, Hércules aproveitou o exílio na então União Soviética para concluir suas investigações, em 1977. De volta ao Brasil, finalizou o texto do relatório sob o título Que merda é essa?, em 1998. Ele explica: “Foi essa a frase que pronunciei naquela reunião diante da atitude do Adauto Freire. E foi essa também a frase que o presidente dos EUA, Richard Nixon, pronunciou ao saber do sequestro do embaixador americano no Brasil Charles Elbrick.” As 82 páginas compõem um verdadeiro roteiro de filme de espionagem. Nem mesmo os mortos escapam da suspeita de serem agentes infiltrados da CIA e da repressão. Muitos dos dirigentes em situações duvidosas ainda atuam na política brasileira. No final do ano passado, Hércules entregou cópia do documento a ISTOÉ, trazendo a público a discussão sobre as circunstâncias em que o Partidão foi praticamente aniquilado.

Na fronteira – Fortemente armados,
agentes do DOI invadiram um apartamento
no bairro da Tijuca, no Rio, em agosto
de 1972, e prenderam o militante do PCB Aluísio dos Santos Filho. Em seus pertences, a repressão achou um documento precioso: uma carta indicando o local na fronteira
com o Uruguai por onde Fuad Saad, do
Comitê Central, regressaria ao País. O
alto-comando do partido sabia que a carta caíra nas mãos da ditadura. Mesmo assim, uma operação suicida foi desencadeada.
O motorista Célio Guedes, irmão do dirigente Armênio Guedes, foi buscar Fuad. O resultado não podia ser outro: Célio e Fuad foram presos. Torturado, Célio morreu.

Segundo o relatório, Aluísio havia mostrado a carta de Fuad a três dirigentes do Partidão: Jaime Miranda, Fernando Pereira Cristino e Dinarco Reis. “Ao saber da prisão do Aluísio, o secretariado fez uma reunião e decidiu abortar a missão de busca do Fuad. Mas, contrariando a decisão, o Givaldo Siqueira mandou o Célio buscar o Fuad”, acusa Fernando. Indignado, dispara uma acusação ainda mais pesada contra o ex-colega: “A atitude do Givaldo não me causou surpresa. Tínhamos um militante infiltrado na polícia da Guanabara e ele já havia avisado que o Givaldo trabalhava a serviço da ditadura. É também muito esquisito que ele nunca tenha sido preso, apesar de circular livremente pelo País.”

Apontado como uma das maiores lideranças do PCB de todos os tempos, Givaldo Siqueira atualmente é assessor
da liderança do PPS na Câmara. Ele
se defende das acusações e apresenta outra versão para a queda dos dois dirigentes. “Eu dei a ordem contrária. Não mandei buscar ninguém. Vieram porque quiseram”, garante Givaldo, que atuava no Departamento de Fronteira do partido. Mas o dirigente também é atacado por outro ex-colega, o jornalista Armênio Guedes, irmão de Célio: “Givaldo mandou meu irmão para a morte. O Comitê sabia da carta e mesmo assim foi feita a operação”, diz.

Respingos – Como num filme de espionagem em que todos os personagens são suspeitos, o relatório respinga até na vítima Fuad Saad. “Cabe notar que Saad defendeu a idéia de que Célio Guedes havia cometido suicídio. Ele assinou um depoimento, publicado pela revista Manchete, dizendo que não fora torturado, o que, segundo as informações, não correspondia à verdade”, afirma Hércules no texto. De acordo com o relatório, a reportagem da Manchete teria sido produzida por outro infiltrado, o jornalista Renato Mor, e assinada por um colega dele, também do partido, que estava no Exterior. Depois disso, Renato foi trabalhar no jornal Diário de Notícias, segundo Hércules, por indicação do SNI (Serviço Nacional de Informações). Aos parentes de Célio, Fuad deu outra versão. “Ele disse que, colocado frente à frente numa acareação com o agente Carlos no Cenimar (Centro de Informação da Marinha), meu irmão, vendo que ele era um infiltrado, partiu para cima dele, o que levou os agentes do DOI a executá-lo”, afirma Armênio Guedes.

Não menos intrigante foi outra operação descrita no relatório, realizada pelo Comitê Central para resgatar do Exterior o dirigente David Capistrano, em março de 1974. Segundo o texto, Capistrano, que havia passado vários dias na Checoslováquia, foi para a cidade uruguaia de Paso de los Libres, divisa com Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, onde pediu ajuda ao taxista Samuel Dib, militante do partido na região, para entrar no Brasil. Achando a travessia arriscada, já que Capistrano carregava malas com documentos do PCB, o taxista foi a São Paulo pedir orientação do partido. Enquanto esperava, Capistrano ficou dez dias “dando bandeira” em um hotel da cidade. De acordo com o relatório, com o aval de Givaldo, o taxista voltou num carro dirigido pelo militante José Roman. Às 23 horas do dia 18 de março, Roman pegou a estrada com Capistrano em direção a São Paulo. No meio do caminho, depararam, segundo disse a ISTOÉ o ex-sargento do DOI Marival Chaves, com um grupo de agentes do Centro de Informações do Exército (CIE), comandados pelo implacável “Doutor César”, o coronel José Teixeira Brant. Os dois dirigentes foram levados para o DOI de São Paulo. Documento obtido por ISTOÉ mostra que Capistrano chegou a prestar depoimento antes de ser executado junto com José Roman.

Sem regras – Ao investigar a queda dos
dois militantes, Hércules apurou também que Roman e um militante chamado Clóvis haviam montado uma imobiliária na capital paulista para servir como lugar de encontros clandestinos – o chamado “aparelho”. Clóvis foi expulso da suplência do diretório do partido por ter escondido dos companheiros uma abordagem que havia sofrido por parte da CIA (o serviço de inteligência americano). “No Caso Capistrano, várias regras de segurança foram quebradas: o fato de ele ter ficado dez dias numa cidade de fronteira com uma enorme bagagem – e o Rocha (codinome de Givaldo) admitiu isso como normal, apesar da experiência com o Célio Guedes. E José Roman não podia nunca ter ido à fronteira devido à ligação com Clóvis e pela falta de segurança nas ligações com seu filho, que estava estudando no Exterior”, avalia Hércules. Givaldo desmente: “Dei uma ordem contrária. Não autorizei que ele entrasse no País.”

O dirigente do PPS aparece também como personagem principal da incrível
história contada por Miguel Batista, ex-militante preso em São Paulo, em 1974. Pernambucano valente, o metalúrgico fez um pacto com ele mesmo ao ser preso: mesmo se tivesse de morrer, não forneceria nenhuma informação à repressão. Ex-vereador pelo PCB, quando este ainda estava na legalidade, ao sair da prisão, no Recife, Miguel enviou uma carta ao dirigente Dinarco Reis, levantando suspeitas sobre Givaldo. “Miguel conta que, após uma sessão de tortura, entrou no recinto um cidadão, protegido por capuz, aconselhando-o a não resistir e a responder afirmativamente o que a polícia queria, pois tudo já era do conhecimento dos serviços de segurança. Miguel Baptista dizia que o tal cidadão encapuzado era Givaldo porque a voz e a gesticulação eram as mesmas de Rocha”, afirma Hércules. “Tenho certeza que tinha um ou mais infiltrados no Comitê Central, porque as quedas do PCB são as únicas em que não aparecem quem entregou”, diz Miguel, hoje membro do diretório do PT no Recife. Mais uma vez, Givaldo desmente: “Essa denúncia é absurda.O Miguel só foi preso porque não seguiu minha orientação de não sair de casa.” O presidente do PPS, Roberto Freire, se recusa a acreditar nas desconfianças: “O Prestes chegou a pedir informações à União Soviética sobre o Givaldo e a própria KGB informou que nada havia contra ele. Eu deposito total confiança no Givaldo.”

No relatório, as suspeitas de infiltração das quedas ocorrem principalmente no setores de fronteira, de gráfica, de empreendimentos e entre militantes de Minas Gerais e da antiga Guanabara. “O diretório da Guanabara estava tão minado que ninguém queria ir para lá organizar o partido. Aceitei a missão com uma condição: cortei relações com todo mundo de lá e levei o meu pessoal de fora”, afirma Geraldo Rodrigues dos Santos, atual dirigente do PPS. Segundo o relatório, Chico Pinote, agente que se dedicava a caçar comunistas, teria dito a um casal de militantes do partido, em Pernambuco, que possuía um informante no Rio que estava na direção do partido: Venceslau de Oliveira Moraes, ex-secretário do partido na Guanabara e ex-suplente do Comitê Central. Segundo o relatório, em 1967 Venceslau teria deixado, na casa de um militante, uma pasta com documentos do PCB e desapareceu. “Assim como o Adauto, não temos dúvida de que ele era um infiltrado”, diz Roberto Freire.
Venceslau depôs na Justiça contra o dirigente Marco Antônio Tavares Coelho, no final dos anos 70, e foi trabalhar na agência central do Bradesco Seguros, no Rio. Nunca mais foi visto.

Omissão – Era evidente a preocupação da CIA em desmantelar o PCB ao tentar cooptar vários de seus membros desde os anos 60. Segundo relatório, foram assediados pelo serviço americano os seguintes dirigentes: Severino Teodoro de Melo, Armênio Guedes, Orestes Timbaúba e Jarbas Holanda Cavalcanti. “Quantos outros foram abordados e se omitiram sobre o partido?”, questiona Hércules. De acordo com seu relatório, ao ser abordado, Cavalcanti teria ficado impressionado com o grau de conhecimento que os norte-americanos tinham dos dirigentes do PCB, o que o levou a cortar contato com o partido sob o argumento de que o Comitê Central estava minado. “Inicialmente, diziam-se interessados numa consultoria, mas logo percebi que o interesse era outro”, conta Jarbas.

Com tantas desconfianças, até mesmo dirigentes do PCB que teriam sido mortos pela ditadura acabaram com seu papel histórico revisto pelo relatório de Hércules. Elson Costa é um deles. “A história do
Elson é mesmo meio complicada”, admite Roberto Freire. Hércules levanta a suspeita de que Elson teria sido visto por militantes no Paraná, na década de 80. Ele também acha estranho que o coronel Ferdinando Carvalho, apesar de ter fotografado Elson em encontros com dirigentes no Paraná, em 1967, tenha deixado que ele fugisse do Estado. A posição da família de Elson aumenta as desconfianças. Ao contrário das demais famílias de desaparecidos, que tentam localizar os corpos, a viúva Aglaé Costa, de 90 anos, não gosta nem de ouvir falar do assunto. “Não temos nada a dizer, nem bem nem mal, sobre o Elson”, disse a ISTOÉ o advogado Creanto Souza, cunhado do ex-dirigente. Mas para o ex-agente Marival Dias, “o Elson foi morto em 1975 no aparelho de Itapevi”, garante.

Em meio a tantas incógnitas, ao sair do baú, o Relatório Hércules inicia uma discussão com mais de 30 anos de atraso sobre as quedas do PCB. Suas investigações e conclusões, no entanto, são vistas com restrições pelo PPS,
legenda em que o Partidão se transformou, em 1992, e da qual o próprio Hércules
se desligou. “O fato principal é que houve uma política de extermínio contra militantes comunistas por parte da repressão. Não vamos agora fazer caça às bruxas internamente, o que eximiria a ditadura de culpa”, diz Roberto Freire.