Pelos labirintos de um sinuoso igarapé afluente do rio Purus, no sul do Estado do Amazonas, quase fronteira com o Acre, chega-se ao centro do mundo. Ou quase isso. A vila Céu do Mapiá, maior comunidade da doutrina religiosa do Santo Dai-me do Brasil, está se transformando neste fim de ano numa espécie de torre de Babel tropical. A previsão é de que, até o dia 31 deste mês, mais de 500 turistas, entre brasileiros de Norte a Sul do País e estrangeiros de todos os cantos do planeta, cheguem ao lugarejo para a passagem de ano. Vão duplicar a população local. Não são, contudo, turistas acidentais. No Céu do Mapiá, ao contrário da bíblica torre de Babel, todos falam a mesma língua: a da doutrina do Santo Daime.

O japonês Takeshi Yoshimura, 35 anos, é hoje mais um desempregado em Tóquio. Isso não o impediu, porém, de pegar um avião até São Paulo e outro até Rio Branco, nem de viajar seis horas de táxi e de lá até o município de Boca do Acre, já no Amazonas, nem de fretar uma voadeira, pequeno barco com motor de popa, para navegar por mais seis horas até chegar finalmente ao Céu do Mapiá. Detalhe: ele fez tudo isso sem saber falar inglês ou português. “Mas eu entendo e canto tudo o que está escrito nos hinários”, diz ele. Como os demais daimistas, depois de beber o chá, ele canta e baila por hipnotizantes 12 horas. Durante esse ritual, chamado de “trabalho”, Takeshi realmente canta em português. É uma das cenas mais bizarras decorrentes da globalização do Daime. “Tomei no Japão no ano passado e senti que precisava conhecer a floresta”, lembra. Igualmente impressionante é que o cansaço de sua peregrinação, somado ao calor equatorial, não impediu que, no dia seguinte a sua chegada, o japonês já estivesse de enxada e serrote na mão, abrindo valas e cortando tábuas. Está construindo um banheiro para o grupo de 20 japoneses que estão para chegar. O Extremo Oriente parece ter sido a última fronteira cruzada pela bebida produzida na floresta amazônica.

Ritual milenar – Criada na década de 30 pelo seringueiro Irineu Serra, a doutrina se baseia no uso religioso da ayahuasca, bebida psicoativa feita a partir da fervura de um cipó e de uma folha nativos da floresta. Mestre Irineu, como é conhecido, tomou o chá pela primeira vez em 1913 quando esteve em contato com caboclos em Brasiléia, cidade do extremo oeste acreano. Esses caboclos herdaram de seus ancestrais indígenas o conhecimento da ayahuasca. Seu consumo é uma tradição milenar no continente. Há indícios de que os incas já utilizavam a mistura em seus ritos. Sob seu efeito, Irineu vislumbrou a Virgem Maria e escreveu os hinários que sintetizam os ensinamentos da doutrina. Os hippies de São Paulo e do Rio de Janeiro que chegaram à Amazônia, no final dos anos 70, levaram a poção ao resto do Brasil. Na década de 80, o País inteiro descobriu o Santo Dai-me e seu ritual foi divulgado por estrelas da televisão que se doutrinaram.

A vila Céu do Mapiá foi fundada pelo seringueiro Sebastião Mota Melo, discípulo de Mestre Irineu, em 1983. “Éramos um grupo de 30 pessoas. Chegamos para formar uma comunidade espiritual e trabalhar com a borracha”, lembra o paulista Wilson Manzoni, 43 anos, que aportou no lugar junto com Sebas-tião. “Com o tempo, o Daime foi ganhando importância e se tornou a principal atividade da comunidade”, diz Wilson. Neste fim de ano, a comunidade já é internacional e está promovendo uma celebração incomparável. Povos das mais diferentes origens peregrinam até o berço do Daime para sentir o poder da floresta contido na bebida. Em 17 anos, o Céu do Mapiá se tornou o seringal mais cosmopolita do mundo.

Califórnia-Mapiá – O cipó de nome jagube e a planta chamada rainha são misturados num processo de fabricação de várias horas, chamado feitio. O cozimento da mistura também demora dias. Depois da extração dos vegetais da mata, os homens maceram o cipó e as mulheres limpam e selecionam as folhas. A ingestão do chá lhes dá forças para a exaustiva tarefa de desfiar o cipó. Eles passam horas martelando sob o ritmo dos hinários. “Minha força vinha de além do corpo. Me senti em comunhão com meus ancestrais”, explica o americano Gian Carlo Petri, 21 anos, um dos cinco jovens californianos daimistas que chegaram ao Mapiá para passar dezembro e janeiro. “Nos Estados Unidos pensam que é coisa de fanático, não sabem desse poder”, diz Brock Roller, 22 anos, estudante de Biologia. “Eu sempre estudei plantas e quando tomei Daime tudo se juntou. Foi uma revelação. Não é uma simples alteração de consciência, é um ensinamento. Toda vez que eu tomo, aprendo algo novo”, garante Brock. O intercâmbio étnico-cultural entre as Américas vai contar também com uma visita especial: 25 índios americanos irão realizar no Mapiá, no dia 31, um ritual com tambores e com sua planta mágica: o peyote.

No Brasil existem aproximadamente 20 igrejas do Daime, nos EUA elas são dez. Brock e Gian Carlo frequentam uma delas, conduzida por madrinha Luzia. Uma simpática americana quarentona, ela fala com desembaraço português. “Eu falo mapiense, que é uma língua livre”, brinca ela, que tomou o Daime em 1987 e hospeda seus conterrâneos em sua casa no Céu do Mapiá. “Não tem lugar melhor para passar o Ano-Novo. Meu sonho é viver aqui, mas agora tenho de cuidar da igreja na Califórnia”, afirma. Para os estrangeiros como Luzia, ir para a floresta é também conseguir exercer seu culto livremente. “Estamos vivendo um momento de repressão ao Daime no mundo inteiro. Vir aqui é um modo de se fortalecer”, explica Luzia. Ela tem razão. No Brasil, ao contrário de outros países, o chá do Santo Daime é considerado enteógeno, ou seja, o uso é permitido como parte de um ritual religioso. Na Europa, em outubro, duas igrejas foram fechadas, uma na Holanda e outra na Alemanha.

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Preconceito – Mas, no interior da selva, a tradição da ayauhasca parece estar a salvo. Menos da imprensa. A comunidade cabocla se ressente de reportagens sensacionalistas e anda desconfiada de forasteiros armados de máquinas fotográficas e gravadores. “Tem revista que vem aqui, pede nossa ajuda para trabalhar, e no final faz reportagens preconceituosas”, critica Fernando Ribeiro, um dos dirigentes da comunidade. Numa das reportagens, o principal alvo foi o ex-guerrilheiro e escritor Alex Polari, hoje “padrinho” e um dos principais líderes no Mapiá. “Nosso desafio ao abrir o Daime para o mundo é administrar esse choque cultural e essa afluência de pessoas sem fazer proselitismo”, afirma Polari.

A arquiteta italiana Tiziana Vigani, 49 anos, está pela terceira vez na vila. Ela toma Daime em Assis, na Itália. “Vir para a floresta, tomar banho no igarapé e passar um tempo com o povo com o qual nos identificamos é o projeto do ano”, diz ela. Com o uniforme da doutrina, chamado farda, ela está realizada. “O Daime me abre para relações baseadas no amor, na fraternidade.” É vero. O cotidiano no Céu do Mapiá é mesmo peculiar. Lá não se vende cerveja nem cachaça. A tevê só chegou no ano passado, por insistência dos mais jovens, durante a Copa do Mundo. Há uma cozinha geral, onde todos podem comer e cozinhar, e muitos mutirões para a construção de casas. “Está uma correria danada para a gente atender todos os irmãos que estão chegando”, diz o morador Airton Oliveira da Silva, 24 anos. Airton representa um povo virtuoso. Como muitos ali, é educado, trabalhador e bem-humorado. “A doutrina é um contato direto com as forças de Deus, de aperfeiçoamento. Isso torna a vida aqui diferente”, afirma.

Medicina para a alma – A jornalista tcheca Vera Krincrajova, 30 anos, veio de Praga à procura desse aperfeiçoamento. “As pessoas aqui são muito fortes e a floresta tem uma energia incrível. Pensei que vindo aqui e estando ao lado deles eu poderia ficar igual”, elogia a moça, que chegou no começo de dezembro para passar seis semanas. “Vejo o Daime como uma medicina para a alma.” Quem acompanhou Vera e seus amigos tchecos foi a mapiense Aline Nunes, 23 anos. Ela já viajou três vezes para Praga, na República Tcheca, para coordenar rituais. Para muitos, ir ao centro do Daime é uma alternativa de vida. Não por acaso, alguns acabam construindo casa e ficando de vez. “A questão da espiritualidade está forte na sociedade consumista”, aponta o antropólogo Walter Dias, que acompanhou desde o início a popularização da doutrina. Foi o primeiro a trazê-la para São Paulo, em 1980. “E muita gente está buscando outros valores”, completa o antropólogo.

Cura natural

A floresta amazônica é o jardim de Maria Alice Freire, 46 anos. E ela faz muito bom proveito disso. Nascida no Rio de Janeiro, ela mora há 12 anos perto do Céu do Mapiá e hoje é a responsável pelo Centro Medicina da Floresta, onde pesquisa o poder curativo de plantas. Com uma equipe de 12 funcionários, produz dezenas de medicamentos, entre tinturas, extratos, pomadas e florais. O arsenal combate doenças de pele, respiratórias, digestivas e infecto-contagiosas e moléstias como hanseníase, hepatite, malária, verminose, disenteria, anemia, febre e gripe. “A floresta é um manancial de cura inesgotável”, afirma ela. Quando chegou, Maria Alice achou um absurdo que o povo da mata não aproveitasse essa riqueza. “Eles se tratavam numa cidade que fica a dois dias de viagem e ainda com remédios com data vencida, refugos…”, recorda.

Em dois anos de trabalho, diz ela, seu esforço trouxe a comunidade de volta à farmácia amazônica. Os medicamentos são passados de graça para a população local, “só cobramos de visitantes, que é quem tem dinheiro”. Ela afirma estar devolvendo ao povo da mata o que é dele. “A sabedoria é da floresta. Eu procuro preservar o conhecimento dos nativos”, diz ela, que ao longo dos anos foi discípula de anciões da floresta e de pajés indígenas. “Tudo tem uma boa dose de intuição. Não sou médica, por isso todo o procedimento é na prática. Provo tudo que faço, sou minha própria cobaia.”


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