Dois anos e seis meses depois do 11 de setembro de 2001, a Espanha viveu o seu “dia da infâmia”, a apenas três dias das eleições gerais no país. A carnificina aconteceu logo nas primeiras horas da quinta-feira 11, de maneira coordenada e quase simultânea, quando dez bombas explodiram em três estações de trem de Madri, entre 7h39 e 7h45
(3h39 e 3h45 em Brasília), em pleno horário do rush, matando pelo
menos 200 pessoas e deixando mais de 1.400 feridos. A tragédia só
não foi maior porque outras três bombas foram detonadas pela polícia local, de forma controlada. Das dez bombas, três explodiram em Atocha, a estação mais importante de Madri, que faz a ligação dos trens que
vêm dos subúrbios com diversas linhas de metrô. Atocha fica no
coração madrilenho, a um quarteirão do famoso Museu do Prado, a um quilômetro da Puerta del Sol, marco zero da capital espanhola, e ao lado do aprazível Parque del Retiro. Outras quatro bombas explodiram quando um trem passava ao lado da calle Téllez, que dá acesso à estação Atocha. E as outras três detonações ocorreram em estações menores: uma em Santa Eugenia e mais duas em El Pozo. Entre os feridos estão dois brasileiros: Adeíldo Alves dos Santos, 28 anos, e outro ainda não identificado. Adeíldo teve afundamento do crânio, fraturas no maxilar e seu estado é regular. “Ele está sentindo muitas dores, mas está conseguindo falar com a gente”, afirmou seu irmão, Josiel Alves dos Santos. Adeíldo estava há três meses em Madri.

ETA ou Al-Qaeda? – A autoria da carnificina ainda é uma incógnita: ao grupo separatista basco ETA (iniciais de Euskadi Ta Askatasuna, ou Pátria Basca e Liberdade), a quem as autoridades espanholas apontaram o dedo acusador antes de qualquer investigação, juntou-se a rede islâmica Al-Qaeda, depois que a polícia encontrou um furgão com detonadores e uma fita com versos do Alcorão, o livro sagrado do Islã. Mais tarde, uma suposta carta da organização de Osama bin Laden foi enviada a um jornal árabe em Londres, assumindo o atentado.

O planejamento do atentado visou atingir o maior número possível de vítimas indefesas. A escolha de uma das mais importantes e mais lotadas estações, no horário em que as pessoas estão indo para o trabalho, e a sequência de dez explosões em diferentes lugares ao mesmo tempo deixam clara a escolha de civis inocentes como alvo principal do atentado. A maior parte das vítimas foram cidadãos comuns, pessoas que moravam nas cercanias da capital e se dirigiam ao centro de Madri para trabalhar. Segundo as autoridades, os explosivos estavam dentro de mochilas deixadas nos vagões na estação de Alcalá de Henares, em um total de mais de 100 quilos de dinamite.

Corpos queimados – O caos e o pânico se instalaram em Madri. Ruas nas cercanias foram interditadas, trens e metrôs paralisados e grupos de resgate e bombeiros prestavam socorro às vítimas no chão das ruas de Madri. Em meio a um barulho ensurdecedor de sirenes, ambulâncias e helicópteros, um forte odor de carne queimada e sangue impregnava o ar madrilenho. “Havia pedaços de carne por toda a rua”, relatou Luz Elena Bustos, que se encontrava em um ponto de ônibus perto de uma estação atingida. “O trem estava despedaçado. Eu vi um monte de fumaça e pessoas correndo para todos os lados. Tinha um corpo sem cabeça no chão. Eu comecei a chorar quando vi uma criança de uns três anos toda queimada”, disse Luz Elena, trêmula diante do horror que acabara de presenciar. Outra testemunha, Patricia Rodríguez, estava no trem seguinte ao que explodiu em Santa Eugenia: “Fomos informados que os trens vinham com atraso por causa de um atentado em Santa Eugenia. O medo e o nervosismo tomaram conta de nós, pois não tínhamos informações precisas. Quando chegamos na estação de Alcalá, as pessoas corriam desesperadas e a estação estava tomada por soldados e policiais, que gritavam para todos correrem para as ruas.” Até para quem socorria os feridos, a situação era desoladora. Oscar Romero, do grupo de resgate, afirmou que foi a maior devastação que ele já presenciou na vida: “Havia pessoas destroçadas, sem pernas. Eu vi dois carros despedaçados, com corpos embaixo.” Nesse cenário dantesco, um misto de comoção e revolta tomou conta da população. Centenas de voluntários fizeram filas para doar sangue às vítimas – e a solidariedade foi tanta que, já às 11 horas da manhã, as autoridades informaram que não eram mais necessários doadores. Na sexta-feira 12, cerca de dois milhões de pessoas foram às ruas de Madri expressar sua indignação contra o terrorismo.

Inicialmente, o governo espanhol não titubeou em apontar o dedo acusador para o grupo separatista basco ETA. Apesar de o primeiro-ministro espanhol, José María Aznar, não ter citado a organização nominalmente, seu ministro do Interior, Ángel Acebes, afirmou não ter dúvidas em responsabilizar o grupo separatista. “A ETA sempre quis causar um massacre na Espanha. Infelizmente, hoje, conseguiu”, afirmou Acebes. Mas o parlamentar espanhol Arnaldo Otegi, ligado ao banido partido Batasuna, braço político do grupo separatista, negou que a ETA tenha qualquer tipo de vínculo com o atentado nos trens, levantando a hipótese de que “a resistência árabe” pudesse estar por trás da ação. A Espanha foi, ao lado do Reino Unido, um dos
aliados incondicionais dos EUA na invasão do Iraque, e, inclusive, despachou cerca de 1.500 soldados no Iraque. Otegi afirmou que o
modus operandi desse ataque difere dos utilizados pela ETA (que faz telefonemas de aviso antes dos atentados e sempre assume a autoria) e é mais parecido com as bombas sincronizadas que a Al-Qaeda já utilizou em diversos atentados.

A versão de Otegi ganhou força durante as investigações. Perto da estação Alcalá de Henares, a polícia espanhola encontrou um furgão roubado e dentro dele havia uma fita com trechos em árabe do Alcorão, bem como sete detonadores. Esse fato novo fez com que o ministro do Interior voltasse atrás, anunciando uma “nova linha de investigação”. Para deixar ainda mais nebulosa a solução do atentado, o diário londrino de língua árabe
Al-Quds Al-Arabi
, tradicional meio de comunicação usado pela rede terrorista, informou que acabara de receber uma carta em que a Al-Qaeda assumia a autoria da carnificina, batizada na carta de Operação trens da morte: “Não temos nenhuma pena dos chamados civis. Se é certo para vocês matarem nossas crianças, mulheres e anciãos no Afeganistão, Iraque e Caxemira, por que seria pecado matarmos os vossos?”, indagava a sombria missiva, assinada pelas Brigadas de Abu Hafs al-Masri, que leva o nome do chefe das operações da Al-Qaeda, morto pelas tropas americanas no Afeganistão em 2001.

Visão americana – Do outro lado do Atlântico, uma possível conexão entre a ETA e a Al-Qaeda é mais do que uma suspeita para os serviços de inteligência dos EUA. Já faz algum tempo que a organização separatista basca radical vem dando proteção e apoio logístico a alguns grupos fundamentalistas islâmicos na Espanha. Em outubro de 2003, por exemplo, oito militantes do grupo marroquino Salafi Jihadia foram presos na cidade de Alicante, numa casa-esconderijo da ETA. Outras prisões, de argelinos e marroquinos, também comprovam uma aliança entre extremistas bascos e árabes. Esta conexão está agora na ponta das investigações sobre os atentados ferroviários em Madri.

Fontes dos serviços de inteligência americanos disseram a ISTOÉ que os maiores suspeitos pelos ataques de quinta-feira 11 fazem parte da organização marroquina Salafi Jihadia, um ramo da Al-Qaeda. Foi este grupo que em maio de 2003 detonou bombas em Casablanca, no Marrocos. Na ocasião, os alvos foram o cemitério judeu, o restaurante España – frequentado por diplomatas e homens de negócio espanhóis – e o Hotel Spanish Club, de propriedade espanhola. Os ataques fizeram 41 mortos e 55 feridos, a maioria deles muçulmanos que viviam num bairro pobre perto do cemitério israelita.

O Salafi Jihadia, porém, foi classificado pela fonte de ISTOÉ como um bando de trapalhões. “Eles acabaram criando rancores na população marroquina, pois feriram e mataram civis num dos bairros mais pobres de Casablanca”, disse a fonte. Este erro leva as autoridades americanas e espanholas a duvidar da competência do grupo para orquestrar a série de atentados que abalaram Madri. “Esta foi uma operação muito bem elaborada, com estratégia e modus operandi que a Salafi Jihadia não possui. É evidente que tiveram apoio de outra organização mais experiente e com melhores recursos”, diz a fonte.

Essa constatação conduz a uma via de investigação que desemboca na conexão ETA. “Em 1999, membros da ETA roubaram oito toneladas de dinamite da empresa francesa Titanite S.A., na Bretanha (França). A maior parte destes explosivos – algo como três quartos – nunca foi recuperada. Em fevereiro deste ano, a polícia espanhola prendeu dois militantes bascos numa perua com 800 quilos de dinamite, nos subúrbios de Madri. No mesmo período, houve um ataque, assumido pela ETA, num trecho dos trilhos da rede ferroviária espanhola, e outra bomba foi descoberta e desativada pela polícia. “Em ambos os casos foram usados exemplares de dinamite roubados da Titanite”, diz a fonte. A ligação
entre os grupos terroristas de propósitos tão diferentes estaria justamente nas cargas de dinamite usadas neste atentado: são do mesmo lote roubado na França. “A partir daí, existem duas possibilidades: a primeira é a de que a ETA vendeu os explosivos para os militantes islâmicos. A segunda é a de que deram o material de graça. Nas duas hipóteses, o que se constata é que a ETA forneceu o material para os atentados”, diz o agente.

Aliança – Resta saber se o apoio da ETA ficou apenas nesse fornecimento de material. “O cenário que imaginamos envolve um apoio muito mais qualificado da ETA. Os radicais bascos operam há décadas no país e têm amplo conhecimento do terreno e experiência de ação. São, naturalmente, os que possuem maiores possibilidades de organizar a operação que se viu. A Salafi Jihadia, assinando como Al-Qaeda, assumiu o atentado. Mas a Al-Qaeda não costuma assumir suas ações. Houve, de todo modo, participação de militantes islâmicos marroquinos nestes ataques. E as pistas indicam que tiveram todo o apoio logístico da ETA. Peguem-se os detonadores encontrados no furgão: são um pouco mais simples do que aqueles que acionaram, via controle remoto, as bombas. Mas pertencem a um grupo de equipamento de uma mesma categoria. E estes detonadores já foram encontrados no arsenal da ETA”, diz a fonte de ISTOÉ.

Estas evidências apontam para uma cooperação entre grupos terroristas. Mas quais seriam os motivos para a ETA organizar e fornecer material a radicais islâmicos, sem assumir sua participação? Na opinião dos analistas americanos, a manobra visa prejudicar o Partido Popular, do conservador primeiro-ministro, José María Aznar, nas eleições espanholas. Com estes ataques, creditados a militantes islâmicos, pode-se criar a impressão pública de que o governo atraiu mais terroristas ao país, com seu apoio aos americanos. “A ETA procura demonstrar que a política de Aznar teve resultados trágicos. Cria o caos, ao mesmo tempo que se protege da impopularidade de tal carnificina”, diz.

Essa síntese dialética pode representar a união entre o velho terror, que jogava bombas contra autoridades para construir o socialismo, e o novo, que promove uma indiscriminada matança de civis para desencadear a jihad, a guerra santa contra os infiéis. Assim, teríamos não a astúcia da história, de que falava o filósofo alemão G.W. Hegel, mas a astúcia dos demônios, que o escritor russo Fiodor Dostoievski atribuía aos terroristas niilistas de então, que queriam apenas ferir o coração do Estado.