Os 23 anos de história da americana Gtech podem ser confundidos com um roteiro à la Coppola, da série O poderoso chefão. Cenas de espionagem, escândalos, favorecimentos e pagamentos milionários por serviços prestados, lícitos e ilícitos, por empresas de políticos ou assessores influentes do alto escalão dos governos estaduais fazem parte do roteiro que fermentou esta gigante, responsável pela loteria nos Estados Unidos. As operações flagradas em vídeo de Waldomiro Diniz com o bicheiro Carlinhos Cachoeira não são novidade na metodologia pouco ortodoxa da empresa, hoje responsável por 70% dos jogos de loterias no mundo, com receitas globais da ordem de US$ 1,5 bilhão, sendo 15% da bolada proveniente do Brasil.

O sucesso de bilheteria foi tanto que em 1987, seis anos depois de fundada, das 23 loterias estaduais americanas existentes na época a Gtech já tinha obtido contratos com nove, incluindo a Califórnia, a maior delas. Dos três fundadores, um em especial dominou a empresa com sede em Rhode Island: Guy Snowden, que trabalhou como engenheiro na IBM, era, segundo colegas de trabalho, um executivo selvagem. Para fazer crescer a Gtech, que começou como uma minúscula empresa de consultoria para asssessorar loterias estaduais, Snowden se mostrou disposto a gastar e a fazer o que fosse necessário para obter os contratos. J. David Smith, gerente nacional de vendas, foi o fermento
de que Snowden precisava. Eles aperfeiçoaram o que Peter Elkind, em artigo escrito para a revista Fortune, em novembro de 1996, chamou
de a arte sorrateira da política de loterias. “Recompensando amigos políticos, aniquilando inimigos, esmagando a competição.” De fato,
fizeram milhões, mas a um preço muito alto. David Smith foi condenado, em outubro de 1996, pelo tribunal federal de Newark (Nova Jersey) por orquestrar um esquema de propina usando de pagamentos superfaturados para consultores políticos de nível estadual, lavagem de dinheiro e
outros crimes. E Snowden afastou-se definitivamente da empresa em 1998, após a Justiça britânica ter provado que ele tentou subornar o bilionário Richard Branson, dono da Virgin, para afastá-lo do mercado inglês de loterias. A jogada lhe custou o cargo e uma indenização de
100 mil libras a Branson.

Logo que surgiu no mercado, a empresa deslumbrou os diretores de loterias estaduais americanos pela habilidade de instalar com facilidade os sistemas, operá-los e ajudá-los a extrair o máximo em dinheiro público, leia-se arrecadação de impostos, inclusive com a criação de novas modalidades de jogos. Só em 1995, os americanos gastaram US$ 35 bilhões em bilhetes de loteria. Mas o que sempre causou espanto não foi só sua capacidade tecnológica, mas as relações da Gtech com estes diretores. John Quinn, então comandante da loteria em Nova York, tomou uma decisão considerada extraordinária ao dividir o contrato estadual – mantido por anos com a Automed Wagering – com a Gtech. Nove meses depois, Quinn virou um executivo da empresa.

Apostas – Gastos milionários com lobistas e “consultores empresariais” sempre fizeram parte das altas apostas da Gtech para levar polpudos contratos, como o da loteria do Texas, por exemplo. Em 1991, contratou a Entrecorp, firma de lobistas do ex-governador do Texas Ben Barnes, a peso de milhões de verdinhas para disputar o contrato no Estado natal de George W. Bush. A Entrecorp recebeu, em 1993, US$ 3,2 bilhões. Um terço deste acumulado Barnes teria pago como propina a David Smith e a dois laranjas do então executivo, segundo as investigações do FBI e do Ministério Público americano. As relações perigosas entre a Gtech e autoridades texanas não param por aí. Em 1997, antes de ser presidente, Bush governava o Estado e sem explicações suspendeu licitação para explorar a loteria local. O contrato, apesar dos escândalos, ficou mais uma vez com a Gtech. Barnes, lobista mais bem pago da empresa, em 1968 era presidente do Congresso. Foi ele o autor de uma carta para ajudar o jovem Bush a obter um lugar na Força Aérea Texana, bem longe das plantações de arroz dos vietnamitas.

Tanto no Colorado, no Arizona como em Kentucky, entre outros Estados americanos, os diretores de loterias que tentaram desqualificar a Gtech foram atropelados com acusações furiosas relacionadas às suas condutas e perderam seus cargos. O caso que chama mais atenção é o do Arizona. Bruce Mayberry, em 1994, recusou o pedido da empresa de prorrogação de contrato por três anos ou concessão de uma taxa maior para a Gtech. Mayberry supõe ter sido demitido a mando de um lobista da empresa, ligado ao governo do Arizona. Depois de muitas encrencas e acusações de comprar até juízes, a Gtech trocou seus executivos, contratou ex-investigadores do FBI para o conselho e hoje assegura seguir um código de conduta que inibe qualquer tipo de corrupção.

Do lado de baixo da linha do Equador, qualquer semelhança no roteiro Gtech reloaded da era Snowden/Smith não parece coincidência e vai além dos jogos: nas 3.700 cidades brasileiras, a Gtech-Brasil – subsidiária da americana Gtech Corporation, que chegou ao País em 1994 – opera casas lotéricas nas quais são realizadas também transações como depósitos, saques, pagamento de contas, recebimento de benefício social e habilitação de celulares. O imbróglio Gtech – Caixa Econômica Federal (CEF) nasce com a empresa paranaense Racimec, que tinha em seu conselho o ex-senador e ex-governador tucano José Richa, já falecido. O Ministério Público Federal concluiu na segunda-feira 1º de março que a Racimec – responsável pelo fornecimento de equipamentos eletrônicos e de operacionalização das loterias da CEF – foi usada como laranja pela subsidiária da multinacional americana. Ela incorporou a Racimec e herdou seus contratos após emprestar à empresa US$ 30 milhões, dinheiro tomado junto ao BankBoston em dezembro de 1995. O empréstimo teve o aval do então presidente da Racimec, Simão Brayer, e dos conselheiros José Richa, Karlos Rischibietter (ex-ministro da Fazenda no governo Figueiredo), Carlos Alberto Vieira e Antônio Carlos Lino da Rocha. Em abril de 1996, a Gtech assumia, aos poucos, a Racimec e os contratos da CEF. Segundo o MP, são 18 as ilegalidades capazes de anular a concorrência. Uma delas é a omissão do nome da SB Indústria e Comércio (integrante do consórcio) na formalização do primeiro contrato com a CEF em 1997.

Não satisfeita em abocanhar a Racimec, a Gtech assumiu o lugar
da SB, empresa também de fachada, segundo conclusão do MP. O procurador Luiz Francisco de Souza, que participou do início das investigações, acusa o PSDB de ter ajudado a Gtech a crescer de
forma ilegal no País. “Quando ela avança, comprando as quotas da
testa-de-ferro Racimec, o presidente do conselho de administração
da empresa é o sr. José Richa, que era aquele tucano-mor, de bico comprido. Aí a Gtech passa a controlar todo o sistema de loterias, correspondências, assistência social, principalmente através do cartão Bolsa-Escola”. Em entrevista à revista Consultor Jurídico na quinta-feira 4, Luiz Francisco espeta o ex-ministro José Serra ao lembrar que o sistema Bolsa-Escola foi organizado pelo Ministério da Saúde para
tornar-se carro-chefe de sua campanha à Presidência em 2002. “Quem passou a gerir todo esse sistema de assistência social do governo foi a Gtech, no governo Fernando Henrique.”

Bico tucano – Luiz Francisco não é o único a apontar baterias para o governo tucano. Sindicância aberta pela CEF em 19 de novembro de 2003 suspeita que ex-diretores da estatal foram responsáveis por irregularidades nas alterações contratuais que favoreceram a Gtech e causaram mais de R$ 91,9 milhões de prejuízo aos cofres públicos. No TCU, no mesmo ano, já havia cinco processos para investigar as relações da CEF com o grupo americano. Apurou-se que os funcionários da estatal não tinham a menor idéia de como funcionava o sistema de transmissão de dados e registro das loterias. Dessa forma, não seria possível detectar irregularidades no registro das apostas. No final de fevereiro, o TCU determinou uma nova auditoria. Reforçando as suspeitas sobre a má condução do caso no governo anterior, o controlador-geral da União, Waldir Pires, considerou malfeito o contrato realizado em 1997 porque seus termos deram à Gtech o monopólio do sistema de processamento de dados das nove mil loterias administradas pela CEF. “É um contrato lamentável, muito malfeito, porque concede monopólio à Gtech”, afirmou Pires. A empresa, através de oito processos na Justiça e por força de liminares, assegurou a manutenção de seus negócios junto à CEF, impedindo que a estatal abrisse nova licitação. Quanto às críticas ao governo Lula por ter prorrogado em 2003 o contrato com a Gtech por mais dois anos, Pires explicou: “Impedida de fazer a licitação, a CEF teve que assinar um contrato de longo prazo porque os técnicos disseram que para mudar a tecnologia toda seria preciso cerca de 15 meses ou então o serviço de loterias seria interrompido.”

Em nota oficial, a Gtech se defende das acusações, afirmando que
suas negociações com a CEF “sempre foram conduzidas de forma
aberta e transparente”. A empresa lembra que, após vencer licitação
em 1997, iniciou os serviços de implantação, operacionalização e gerenciamento das transações lotéricas da CEF. Diz que “os compromissos da empresa com o Brasil estão traduzidos em
investimentos de US$ 230 milhões feitos nos últimos seis anos e na expectativa de continuar a fornecer serviços de qualidade ao governo
e a empresas no Brasil”. A empresa afirma ainda que “os processos de transferência de inteligência vêm sendo efetuados rigorosamente nos termos firmados com a CEF em outubro de 2003”. Segundo a Gtech, o envio do banco de dados das operações é protocolado diariamente junto à Caixa. Só as investigações serão capazes de jogar uma luz nesta “caixa-preta” que opera em um terço do território nacional e que no mundo está representada em mais de 43 países.