O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assume um país imerso numa grave crise econômica. A indústria está parada e os investimentos estão suspensos. O comércio sente o drama da desvalorização acelerada do real e da perda do poder de compra da moeda brasileira. O desemprego permanece na desastrosa relação de um desocupado a cada cinco pessoas economicamente ativas. A inflação dá sensíveis sinais de força e a recessão ainda não é uma realidade estatística, mas já ronda o dia-a-dia.

O desvario cambial dos últimos meses, que levou o dólar quase aos R$ 4 e forçou o governo a um novo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), tem desfecho ainda incerto. A própria sobrevivência do acordo, uma ajuda recorde de US$ 30 bilhões, depende de um arrochadíssimo primeiro ano de mandato. As metas impostas por Washington para 2003 (inflação baixa, juros na metade do patamar atual, dólar em queda e um pesado corte nos gastos governamentais) são, à primeira vista, inexequíveis. A nossa alta dependência de recursos externos em oposição ao fato de sermos, aos olhos da comunidade financeira internacional, o terceiro pior país do mundo para investir, acrescenta ainda mais dramaticidade ao cenário.

Bombas no colo não faltam. Faltará, talvez, a complacência do mercado financeiro, adversário eleitoral de Lula e, a partir de 1º de janeiro, fiscal implacável das questões que lhe dizem respeito (basicamente, a manutenção da capacidade do governo de honrar os títulos públicos). Durante toda a campanha, o presidente eleito se preocupou em fazer declarações tranquilizadoras –ou, no mínimo, se policiou para não dizer coisas que o mercado não gostaria de ouvir. Sua equipe econômica de campanha, formada pelos economistas Aloizio Mercadante (eleito senador por São Paulo) e Guido Mantega, circulou entre os bancos para levar uma mensagem de paz, traduzida pela promessa de uma transição tão suave quanto possível.

Lula terá pela frente a aflitiva encruzilhada da demanda popular por um rápido crescimento econômico com os anseios do mercado pela obediência a qualquer custo das metas definidas pelo FMI, mal acostumado que está com os oito anos de Pedro Malan à frente da economia nacional. A verdadeira solução que ele engendra é uma incógnita. “Existe um grande ponto de interrogação. E uma oportunidade quase única de transformar esse ponto de interrogação numa coisa positiva”, diz o ex-presidente mundial do BankBoston Henrique Meirelles, deputado federal eleito pelo PSDB de Goiás. A grande preocupação do mercado, segundo o político neófito, cotado, inclusive, para o futuro Ministério, é “a preocupação que ele (Lula) possa ceder às demandas sociais de uma forma que possa comprometer as finanças públicas.”

A chave para entender melhor o pensamento econômico do presidente e o dilema de aliar sua relação com o mercado às questões sociais está na “Carta ao Povo Brasileiro”, um documento assinado pelo então candidato no final de junho. Motivado pelo crescente temor do mercado financeiro com a ascensão nas pesquisas, Lula pôs no papel, de forma ainda mais clara do que no Plano de Governo, suas reais intenções. “Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político. (…) Estamos conscientes da crise econômica. Para resolvê-la, o PT está disposto a dialogar com todos os segmentos da sociedade brasileira… A volta do crescimento é o único remédio para impedir que se perpetue um círculo vicioso entre metas de inflação baixas, juro alto, oscilação cambial brusca e aumento da dívida pública”, diz a carta que, apesar do título, é endereçada ao mercado financeiro.
 

O principal trecho fica reservado quase para o final: “A questão de fundo é que, para nós, o equilíbrio fiscal não é um fim, mas um meio. Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos credores.” Em outras palavras, Lula declara acatar as regras do mercado (manter o equilíbrio fiscal), mas a seu modo. O jogo passa a ser jogado com os limites impostos pelo presidente, e não mais com os limites (ou a falta deles) da comunidade financeira.

Só o tempo dirá se a ousadia de desafiar o mercado será bem-sucedida. E os próximos dias dirão com quais armas Lula enfrentará a artilharia financeira. Boatos sobre nomes para ocupar os cargos-chave na economia existem às mancheias (leia à pág. 36). O que há de comum entre eles (a não ser o fato de serem, por enquanto, apenas informações sem confirmação) é que Lula irá se abastecer da própria munição do inimigo, colocando à frente da economia algum nome agradável aos ouvidos dos operadores. As apostas para a pasta da Fazenda recaem, por exemplo, sobre o ex-ministro Rubens Ricupero, o ex-presidente da Petrobras e da Globopar Henri Philippe Reichstul e até sobre o já citado Henrique Meirelles.

De concreto, sabe-se hoje apenas que o futuro ministro não terá nem parte da gigantesca influência que Malan usufruiu durante os anos Fernando Henrique Cardoso. A força do governo, sob os auspícios de Lula, estará em outro ponto da Esplanada dos Ministérios, mais precisamente na hoje esvaziada pasta do Planejamento (tente lembrar o nome do atual ministro… lhe ocorreu o do titular Guilherme Dias?). É lá que deverá se instalar o motor e o nome forte da administração Lula. O Banco Central, por sua vez, deverá ganhar autonomia, aos moldes do BC inglês, e passará a ter um papel mais ativo na definição de políticas macroeconômicas.

Sabe-se também que as palavras “pacto”, “coalizão” e seus sinônimos nunca foram tão pronunciadas nos meios políticos e empresariais. “Não vejo outra forma de superar os enormes problemas que estamos vivendo se não houver um entendimento entre trabalhadores, empresários e governo”, defendeu o presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Horácio Lafer Piva, três dias antes do pleito. A adesão de última hora de grandes industriais como Eugênio Staub (da Gradiente), Paulo Skaf (líder do setor têxtil) e Sérgio Haberfeld (da Dixie Toga) é outro bom indicativo da disposição de diálogo que ronda o novo ocupante do Palácio do Planalto.

Crescimento – Todo o esforço conjunto (ou isolado do governo, caso um eventual pacto fracasse) será em torno de colocar o Brasil na rota de um crescimento sustentável. “O atual governo ficou oito anos no poder e conseguiu produzir a quarta pior taxa de crescimento da história do século XX”, diz Mercadante. Na “Carta ao Povo Brasileiro”, Lula deixa bem claro: “É preciso insistir: só a volta do crescimento pode levar o País a contar com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro.” Mais uma vez, inverte-se a lógica em relação aos anos de FHC, ao menos no discurso. Agora, as contas públicas estarão submetidas ao crescimento econômico, e não mais o contrário.

A vontade e a necessidade de crescer com consistência é generalizada. Não há no mundo quem pregue o contrário. O Programa de Governo de Lula diz que “o Brasil já demonstrou, historicamente, uma vocação para crescer em torno de 7% ao ano.” Um avanço desse tamanho, no mundo, só a China, e seu capitalismo principiante, tem conseguido manter com consistência. Fundamental, segundo o presidente eleito, será reduzir a dependência brasileira em relação aos investidores estrangeiros. “O governo deverá fazer todo o esforço para aumentar o saldo comercial, reduzindo a necessidade de capital externo e a vulnerabilidade do País”, disse Mantega, o principal assessor econômico do presidente eleito, ainda antes da vitória. Agora que o comando está nas mãos do PT, a frase de Mantega perde a dimensão de conselho ao atual conselho e assume um papel de missão.

A definição da equipe econômica será o primeiro grande ato do governo Lula antes da posse. Afinal, ele não tem a lhe impulsionar um bem-sucedido plano de estabilização econômica, como foi o real para FHC em 1994. Nem tem como segurar por mais algumas semanas o câmbio num patamar irreal, como o mesmo FHC fez ao conquistar sua reeleição, em 1998. Se o presidente conseguir responder com rapidez ao povo que o elegeu com mais de 50 milhões de votos e, ao mesmo tempo, conseguir dobrar a fúria do mercado, terá marcado seu nome com letras garrafais na história já no primeiro ano de mandato. Afinal, como dizia com toda propriedade aquele assessor do ex-presidente Bill Clinton, o que importa “é a economia, estúpido”.