No final da década de 80, o slogan “tudo pelo social” pretendia exaltar as ações do governo de José Sarney, que comandava um Brasil assolado pela hiperinflação. O eleitor, insatisfeito e ansioso pelo fim da inflação, elegeu Fernando Collor de Mello, que renunciou ao cargo. Treze anos depois, o “tudo pelo social” do ex-presidente encaixa-se perfeitamente no plano de governo de Lula, o presidente recém-eleito. Ainda é cedo para garantir que a prioridade à área social apregoada pela campanha petista será transformada em realidade; afinal, o orçamento continua apertado. É certo, porém, que o Partido dos Trabalhadores é responsável pela elaboração de boa parte dos programas de sucesso implementados em âmbito federal na era FHC, sobretudo os testados por administrações petistas, como o Renda Mínima e o Bolsa-Escola. Logo, parece sensato acreditar que a área social será o eixo do governo Lula.

Se há 12 anos a grande preocupação do brasileiro era a inflação, hoje, depois de oito anos de FHC e seu Plano Real, a população quer mais emprego, segurança, saúde e educação. Pode-se dizer que a era Fernando Henrique significou sobretudo o fim da inflação. Jamais, porém, seu governo merece muitos elogios por conta do social.

Mas somente depois de 1º de janeiro de 2003 será possível avaliar se o novo presidente está realmente preparado para enfrentar o que talvez seja seu maior desafio: fazer jus ao que sempre foi a principal bandeira do partido que ajudou a fundar há 22 anos. A julgar pela equipe que o cerca – formada por competentes técnicos em saúde, educação, segurança e habitação – e pelas políticas sociais propostas em seu programa de governo, possivelmente ele não terminará seu mandato com índices de aprovação tão baixos quanto os que tinha José Sarney – hoje seu aliado – em 1989. Mas, é bom ressaltar, de nada adiantam excelentes projetos e intenções sem a devida articulação política, como analisa Valeriano Costa, cientista político e membro do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp. “É preciso sintonia entre as três esferas de poder e os diversos setores da sociedade para que o PT consiga manter os programas com eficiência. O programa de Bolsa-Escola federal, por exemplo, não funciona perfeitamente hoje porque é muito genérico. O município atende bem, mas o programa se torna pequeno e, uniformizado, é pouco eficaz, já que cada cidade tem suas peculiaridades.”

O tão falado “pacto social” é a essência da linha política que Lula promete seguir para consolidar as suas ações. Consiste na união entre esferas do poder público, iniciativa privada, ONGs e demais setores nas tomadas de decisão. Isso não deve significar, porém, que o governo federal vá repassar suas obrigações, como garante a cientista política Maria Vitória Benevides, que participou do programa de governo de Lula. “Mesmo firmando parcerias com a iniciativa privada, o Estado, que deve ser forte e democrático, não vai abdicar de suas responsabilidades”, avalia. Deixar algumas ações sob cuidados exclusivos de organizações não-governamentais pode fragilizar os programas. Para Valeriano Costa, é o caso do programa Comunidade Solidária, que, segundo ele, tem pouco impacto porque ficou a cargo da sociedade civil. “Nos EUA, por exemplo, muitos programas ficam nas mãos das ONGs e não são assumidos pelo Estado, que generaliza e deixa carentes alguns setores excluídos da sociedade.” Essencial, segundo o cientista, é que o governo monte programas amplos e com estruturas sólidas o suficiente para resistir a várias gestões, de diferentes partidos e linhas ideológicas. É o caso, por exemplo, do SUS (Sistema Único de Saúde). Mesmo com necessidade de ajustes, o projeto – que vai ser mantido, segundo o programa de Lula – é bom e tem estrutura sólida.

A maioria dos projetos sociais previstos no plano de Lula – grande parte elaborada pelo Instituto Cidadania, ligado ao PT – já foi implantada por prefeituras petistas e depois nacionalizados ou copiados por administrações de outros partidos. É o caso dos já citados Renda Mínima, Bolsa-Escola e Saúde da Família. Esse último, atualmente, conta com 15 mil equipes e atende 50 milhões de pessoas. A meta de Lula é dobrar o número de equipes em até três anos e, no quarto ano, atingir 120 milhões de brasileiros. No plano de Lula, a proposta é adaptar os programas às diversas regiões, respeitando as características típicas de cada município. O novo governo não planeja criar mais projetos, apenas ajustar e ampliar os já existentes. A exceção é o Fome Zero, de caráter emergencial, que tem o objetivo de erradicar a miséria. O programa, também obra do Instituto da Cidadania, será mantido pelo Fundo Especial de Combate à Fome, subordinado a um Ministério Extraodinário, que vai substituir o atual Conselho Nacional de Segurança Alimentar, criado em 1993. O Fome Zero prevê ainda a criação do Programa de Alimentação do Trabalhador, a ampliação dos restaurantes populares e dos bancos de alimentos, a volta do Instituto de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde – extinto em 1997 – e a implantação do Programa Nacional de Alimentação Escolar. A verba, advinda de outras fontes além da doação em troca de incentivos fiscais, está estimada em R$ 1 bilhão anual.

É evidente que nem tudo será tão simples como descrito no plano de governo. É preciso contar com muitas dificuldades, como orçamento apertado, lobbies e interesses políticos divergentes. Além disso, as reformas da Previdência e tributária são imprescindíveis à viabilização dos projetos mais amplos. A sociedade, porém, nutre muita expectativa para a área social da gestão Lula. Para Valeriano, “todos esperam que a grande mudança venha do social. Na economia, por exemplo, o governo pode até ficar na defensiva, mas no social não dá, seria até irônico o PT falhar nesse setor. É um grande desafio, mas o novo governo tem obrigação de tentar, ousar, enfrentar e gastar muita energia nisso.” Maria Vitória Benevides promete: “O princípio que permeia todo o plano é a prioridade para o social, sobretudo no esforço urgente para a geração de empregos. Vamos acabar com critérios políticos para o repasse dos recursos, que, inclusive, serão fixos, jamais negociáveis. ” É esperar para ver e, obviamente, cobrar.