O dia mal tinha clareado, mas Osvaldo Timote já estava de pé, pronto para sair. Se tivesse relógio, saberia que eram quatro horas da manhã quando partiu em direção ao mercado, no centro da cidade. Uma hora e meia depois, chegava à barraca de Júlio Cirico. Deu bom-dia e pediu farinha de mandioca. “Quantos sacos?”, perguntou Júlio. Osvaldo respondeu: “Se puder pagar com azeite-de-dendê, dois sacos de farinha. Mas se o senhor ainda tiver muito óleo em casa, pago com piaçaba e levo só um saco.” O diálogo parece insólito, mas ocorre todos os sábados na feira de Camamu, município baiano a 365 quilômetros de Salvador.

Em Camamu é assim. Quem não tem dinheiro não volta para casa com as mãos vazias. Paga com o que tiver: saco de farinha de mandioca, azeite-de-dendê, cravo-da-índia, cacau e até animais. A prática do escambo subsiste na cidade ignorando solenemente o fato de o papel-moeda ter transformado o mundo desde o século XII. Os camamuenses consideram a troca de mercadorias tão natural que chegam a praticá-la em todos os setores da economia – da indústria ao comércio, passando pelos serviços.

Não é só o escambo que resiste em Camamu. O acervo arquitetônico também joga o visitante no túnel do tempo. Sobrados baixos, a maioria do século XIX, casarios coloniais, ruas e ladeiras muito estreitas seguem a tradição luso-brasileira de cidades alta e baixa. São 442 anos de história. Localizado na margem esquerda do rio Acaraí, o município empresta seu nome à terceira maior baía da costa brasileira, a Baía de Camamu. Impregnada de história e belezas naturais, a cidade bem poderia ser mais um município pobre como tantos outros brasileiros, não fosse o fato de os nativos conservarem hábitos tradicionais e primitivos. “O escambo é uma prática que vai na contramão da história”, analisa a economista Sandra Quintela, uma das coordenadoras do Instituto de Política Alternativa para o Cone Sul – organização não-governamental que estimula o comércio de troca em comunidades pobres. A diferença é que, em Camamu, a troca de mercadorias é uma rotina secular e sem nenhum embasamento teórico a sustentá-la. Com o passar dos anos, o escambo foi se modernizando e nos tempos da globalização mudou de nome, virando economia solidária. Só na Argentina, consumida por uma crise financeira sem precedentes, a prática já movimenta 15% do PIB e envolve 15 milhões de pessoas. “É uma forma alternativa de se relacionar fora dos padrões impostos pelo mercado”, pondera Sandra.

Valter Barbosa, dono de um posto de gasolina na entrada de Camamu, não deixa de vender seus produtos se o cliente não tiver reais para pagar. É o caso de Adeilton Pereira da Silva, que não tem carro e se locomove de jegue pela cidade. Ele é um grande consumidor do querosene vendido no posto de Valter. Usa o produto para abastecer as lamparinas de sua casa. Onde mora, em um dos 11 povoados ribeirinhos de Camamu, não chega luz elétrica. Adeilton costuma pagar o querosene com latas de azeite-de-dendê. Uma lata de dendê, com 18 litros, é suficiente para comprar cerca de sete litros de querosene. O filho de Valter é responsável pelo serviço de borracharia no posto e também aceita produtos no lugar de dinheiro. “Cerca de 30% das nossas vendas são pagas com produtos”,
calcula o pequeno comerciante.

A moeda corrente circula em Camamu, só que em pouquíssima quantidade. Segundo o último censo demográfico do IBGE, o município não pagou um único centavo de Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Com infra-estrutura precária, a cidade de 34 mil habitantes tem um banco, nenhum consultório dentário, renda familiar média de R$ 204,61 e um hospital com 12 leitos. A cidade não vingou economicamente nos tempos modernos, apesar de já ter sido uma potência econômica, abaixo apenas de Salvador. Foi há muito tempo. Durante todo o século XVII, Camamu foi uma grande produtora de madeira de lei, açúcar e farinha de mandioca. Tanta riqueza chegou a atrair a cobiça de piratas.

A riqueza do passado virou pobreza. Antonio Gonçalves, morador
de uma ilha do rio Acaraí que nunca teve dinheiro para comprar uma canoa, usou o escambo para conquistar seu sonho de consumo. “A
canoa para mim e para minha família é uma forma de sobrevivência.”
Em abril, ele comprou uma. À vista, sairia por R$ 1,5 mil. Como está pagando a prazo, os juros elevaram o preço final para R$ 2,1 mil. Ele se comprometeu a saldar a dívida com 30 arrobas de cacau. Uma arroba
(15 quilos) é avaliada em R$ 70.

Pai de 19 filhos com a mulher, Carmelita, Jairo dos Santos repete aos sábados uma rotina que herdou do pai: vender animais no mercado da cidade. Vender não, trocar. Ele não sabe explicar muito bem como calcula os preços dos animais postos à venda. “Prefiro trocar animal por animal, só não aceito peixe porque aqui em Camamu é só colocar o pé na água que siri morde”, diz.

Até quem não é nascido e criado em Camamu usa e abusa do escambo. É o caso da economista mato-grossense Virgina Maura Vaz. Aposentada do Banco do Brasil, ela abriu uma pousada na cidade, a Pousada Virtual. “Hoje tenho um terreno de seis mil metros quadrados na região de Barra Grande”, revela. Ela adquiriu o terreno na praia depois que um cliente pagou a diária da pousada com uma escritura de propriedade. Em troca, negociou diárias fixas por cerca de cinco anos. A economia do escambo também tem suas prestações.

Riqueza escondida

Aparentemente, Camamu é um município pobre. Mas a cidade esconde uma riqueza incalculável. As águas da Baía de Camamu banham uma das maiores reservas de gás natural da América Latina. A descoberta é da Petrobras. A dez quilômetros mar afora, o potencial é de 20 bilhões de metros cúbicos de gás. A americana El Paso já se interessou e abriu um escritório na cidade. A empresa ganhou a concessão para explorar quatro blocos em alto mar. Só um desses blocos esconde uma jazida de três milhões de metros cúbicos de gás. O volume é suficiente para gerar energia para 200 mil pessoas, população quase seis vezes maior do que a de Camamu.

Os ambientalistas locais estão de cabelos em pé. A exploração de gás natural na região é um risco iminente para o santuário ecológico. São praias, ilhas, piscinas naturais, restingas e manguezais, com resquícios da Mata Atlântica totalmente preservados. O medo é de que a instalação das primeiras plataformas da Petrobras e da El Paso represente o começo do fim de um paraíso ainda não afetado pelas consequências do desenvolvimento econômico não sustentado.