A exposição Espanha do século XVIII – o sonho da razão – em exibição no Museu Nacional de Belas Artes (Mnba), no Rio de Janeiro, a partir da quarta-feira 3 – vai mostrar um retrato de corpo inteiro do século em que o iluminismo ditou as regras. Na época, até os jardins eram geometricamente moldados, como
se o controle do pensamento se estendesse à natureza. Ao mesmo tempo, telas e gravuras retratavam cenas dos amores de alcova e da promiscuidade que imperava nos bastidores palacianos. Em relação à violência do inconsciente, contudo, Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828) se expressou como ninguém. Basta observar as oito gravuras que representam a famosa série Caprichos, de 80 exemplares, privilegiada pela cenografia de Daniela Thomas. “Goya mostra com
total liberdade o mais profundo de sua alma”, diz ela. As gravuras
foram feitas entre 1796 e 1799, quando Goya conheceu o casal de duques de Alba na Andaluzia.

Deste conjunto, a gravura mais marcante é a de um homem nobre descansando a cabeça sobre uma mesa onde se lê: “O sonho da razão cria monstros.” Outra imagem exibe uma madona corpulenta, nua, carregada por seres demoníacos, com o sugestivo título Para onde você está indo, mamãe? Verdadeiro escárnio para um artista que flertava com o poder. Goya pontua quase todos os módulos, sempre exibindo o outro lado do anseio coletivo pela ordem, a exemplo da enigmática expressão do personagem central do óleo O bebedor. O artista também comparece em todo o seu esplendor de pintor no óleo Meninos com cachorro, que retrata um cotidiano bem mais ameno que o da corte.

Espanha do século XVIII reúne cerca de 300 peças vindas de 40 instituições espanholas. São óleos, desenhos, gravuras, objetos científicos e de decoração, além de jóias e vestuário. Organizada pelo Instituto Arteviva, a mostra custou US$ 1 milhão, dos quais o governo espanhol participou com 420 mil euros, como afirma a argentina Frances Reynold Marinho, presidente da instituição. A idéia surgiu em julho de 2000, quando Frances tomava um cafezinho, após um almoço no Palácio Guanabara, com o rei Juan Carlos de Bourbon y Bourbon, que veio ao Rio visitar a exposição Esplendores da Espanha, realizada há dois anos no mesmo Mnba. “Ele ficou tão encantado que quis dar continuidade ao projeto e ofereceu liberar o acervo de palácios espanhóis”, lembra a empresária.

Pouco antes do atentado de 11 de setembro, Frances teve um encontro com empresários espanhóis, que se entusiasmaram em contribuir. Mas o ato terrorista dificultou a captação de recursos e também deixou inseguros os responsáveis pelos acervos. Os mesmos empresários, inicialmente empolgados, aconselharam um adiamento do evento, que reservou um espaço só para a dinastia Bourbon, a mesma que reina hoje na Europa – a Espanha começou a ser dominada pelos Bourbon no século XVIII, quando a classe artística se contagiava pelo iluminismo importado da França. Predominam neste módulo retratos de reis e rainhas e armas. A seguir vem o módulo Razão para ordem, que exibe projetos de palácios e jardins e quadros que decoravam paredes de reis, entre eles Vista do teatro de Sahagún, de Antonio Carnicero.

Uma cortina de veludo cor de vinho faz fronteira com o módulo Pecado
da desordem, dedicado a Goya, em que, além da série de gravuras Caprichos, há telas retratando a vida nos palácios. No módulo Pecados encontra-se um crayon de autor desconhecido, reproduzindo um pentimetre, espécie de dândi do povo que usava calça de cintura
alta e golas enormes. Outra curiosidade é a aquarela Espanhol com
sua capa, de Manuel de la Cruz Cano. O uso da capa longa, tão
comum entre os espanhóis, chegou a ser proibido pelo rei Carlos III (1759-1788), com o pretexto de que tudo era possível sob a
vestimenta, inclusive o porte de armas. A proibição gerou tamanha comoção popular que acabou revogada.