Suas águas banham os Estados de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco e desembocam na divisa entre Sergipe e Alagoas. No meio do caminho, abastecem vários povoados, de Petrolina a Bom Jesus da Lapa, passando por Juazeiro, Bom Despacho e Xique-Xique. Ao longo de 3.160 quilômetros, o rio São Francisco, ou Oparapitinga, como os índios da região o batizaram, se transformou numa porta de acesso para a conquista do sertão brasileiro. Desde que os portugueses se embrenharam por seu leito, no século XVI, o Velho Chico abrigou toda sorte de aventureiros e até hoje traga do seu veneno. Para abastecer com lenha as caldeiras de seus barcos a vapor, esses viajantes derrubavam dezenas de árvores no caminho. Depois de anos de idas e vindas, o desmatamento, a falta de chuvas, a poluição e o despejo do lixo das embarcações reduziram em um terço a vazão de suas águas. É um cenário desolador para um rio que já escoou volume de água superior ao do Nilo, o mais extenso do mundo, no Norte da África.

Além de levar alimento e água aos recantos longínquos do País, o São Francisco foi um eixo do progresso econômico nordestino.Sua torrente irrigou as terras agrícolas e abrigou grandes usinas hidrelétricas, entre elas Xingó e Paulo Afonso. Na bacia de 640 mil metros quadrados proliferam aventuras pitorescas. Em certa ocasião, a fazenda de gado de Marcelina Florisbela Caldas de Morais foi atacada pelo bando de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião (1897-1938), mais famoso cangaceiro do País. A matriarca, já falecida, testemunhou o sadismo de Lampião, que costumava arrastar suas vítimas pelo solo poeirento. Foi o que aconteceu com um velho sanfoneiro, que chegou à fazenda coberto de sangue. “Depois mandaram minha avó tocar seu violino, mas ela se recusou a seguir o bando”, relata
o fotógrafo José Caldas, neto de Marcelina.

O leito do Velho Chico serviu de testemunha cega a outros dramas. Foi para registrá-los que Caldas reuniu num livro sua coleção de flagrantes. O resultado está em Oparapitinga: rio São Francisco (Ed. Casa da Palavra, 156 págs., R$ 58), trabalho que alterna textos históricos, paisagens deslumbrantes, personagens inusitados e muita devastação. Sergipano por batismo, embora nascido em Maceió, Caldas traz no sangue as marcas do Velho Chico. Com 21 dias de vida, ele deixou Alagoas e atravessou o rio, no colo da família, para ser registrado em Aracaju, a capital sergipana. Aos 25 anos, em 1989, Caldas bateu várias fotos nas margens franciscanas e agora, aos 38 anos, voltou para avaliar as mudanças. “A diferença é estúpida nesses 13 anos”, lamenta. Caldas critica o impacto das usinas de energia: “A hidrelétrica de Paulo Afonso reduziu o volume d’água, prejudicando a pesca e as lavouras de arroz”, aponta.

O caudaloso São Francisco foi notado pelos portugueses há 500 anos, quando os colonizadores avistaram a foz de um grande rio ao sul do Monte Pascoal. As expedições de reconhecimento não foram adiante por causa da hostilidade dos índios e a preferência da coroa portuguesa em limitar sua presença ao litoral. A decisão de avançar pelo interior partiu do governador geral Tomé de Souza, em 1549. O responsável pela epopéia foi o bandeirante Garcia d’Ávila, que conduzia gado e cavalos rio acima. Ele escolhia locais com bom terreno para construir currais, onde instalava uma comitiva com escravos e animais.

Em 1851, Portugal contratou o engenheiro alemão Henrique Halfeld para fazer o levantamento da calha navegável do rio. Seu trabalho, associado ao do cientista francês Emmanuel Liais, em 1862, serviu de base ao planejamento do que viria a ser uma das mais importantes rotas fluviais do País. Após a descoberta de ouro nas montanhas mineiras, no século XVII, o São Francisco se consagrou como caminho de integração do território brasileiro. O perfil do rio mudou a partir de 1949, quando a cachoeira de Paulo Afonso começou a se transformar em usina hidrelétrica, inaugurada em 1955.

O próximo desafio do hoje anêmico Velho Chico é resistir a uma transposição, na altura da pernambucana Cabrobó, para atender às regiões mais secas do Nordeste. A obra foi denunciada por grupos ecológicos por seu impacto ambiental e está praticamente enterrada. O teólogo e escritor Frei Betto encerra o livro Oparapitinga com uma espécie de oração: “Benditas suas águas, meu santo rio, agora degradado pela poluição, pelo esgoto que se mescla ao seu leito, envenenando peixes pelo lixo que as embarcações deixam em seu rastro.” Amém.