Debaixo do coração financeiro de Londres, a poucas quadras da mais importante Bolsa de Valores da Europa e da sede dos principais bancos do mundo, funcionava uma verdadeira arena da barbárie. Construído há quase dois mil anos pelos fiéis legionários do imperador romano Júlio César, o anfiteatro servia de palco para a prática do esporte favorito naquela ocasião, o combate entre gladiadores. Durante centenas de anos, os arqueólogos ingleses comandaram autênticas caçadas ao tesouro para localizar as ruínas onde aconteciam as lutas que se prolongaram pelos quatro primeiros séculos da era cristã. Os escombros do portão de entrada e de duas antecâmaras para abrigar animais selvagens só foram encontrados em 1988, quando uma dúzia de pesquisadores do Museu de Londres já dava por terminadas as escavações nos subterrâneos de uma galeria de arte em reforma, a Guildhall. Eles procuravam os rescaldos arquitetônicos deixados nos 350 anos de duração do reinado romano na atual capital inglesa, que começou por volta do ano 50 da era cristã. “Ninguém conseguia entender como era possível não localizar um edifício como o anfiteatro, que tinha o tamanho de um campo de futebol”, comenta o arqueólogo inglês Nick Bateman, o líder das escavações.

Foram precisos 14 anos de trabalho ao custo de 1,3 milhão de libras esterlinas (R$ 5,3 milhões) para recuperar e preservar as paredes de acesso ao estádio onde se digladiaram os prisioneiros de guerra, os escravos e os combatentes profissionais que enfrentavam a morte com bravura. Os lutadores que sobreviviam às batalhas se tornaram verdadeiras celebridades e deixariam no chinelo o ator Russel Crowe, que interpretou um gladiador no filme dirigido pelo inglês Ridley Scott. A arquibancada e o cenário das lutas romanas foram recriados por computador em tamanho natural, ao redor das paredes erguidas com pedra, madeira e areia. Considerado um dos achados mais importantes da arqueologia britânica, desde o dia 12 de junho enfim foi aberto à visitação pública o anfiteatro milenar com capacidade para cinco mil espectadores, o que representava cerca de 10% dos 60 mil habitantes da antiga Londinium, como foi chamada a cidade banhada pelo rio Tâmisa, mais tarde subjugada por outras legiões de bárbaros, a começar dos vikings da Normandia. O anfiteatro romano localizado no subsolo da galeria de arte medieval Guildhall, onde também funciona um moderno prédio de escritórios, ainda reserva outras surpresas. Até 2004, os especialistas do Museu de Londres planejam exibir o sistema de drenagem de água construído pelos romanos por volta do ano 70 d.C. A própria arquitetura oval da arena, com o tamanho de um campo de futebol escavado na areia, propiciava o acúmulo de água, e a parafernália mecânica para bombear água para a superfície foi considerada uma obra-prima pelos arqueólogos londrinos. Num dia de trabalho, estima-se que um escravo conseguia retirar de seus poços cerca de 270 mil litros d’água, o suficiente para encher 2.500 banheiras Jacuzzi atuais.

Comida aos leões – Com um décimo do tamanho do Coliseu de Roma, a arena de combate dos gladiadores londrinos conta um capítulo ainda obscuro na história da civilização britânica. Não há registros históricos do tipo de atividade exercida ali. Assim como outros anfiteatros romanos construídos na Europa, supõe-se que ele tenha servido de cenário para a execução pública de condenados e a prática de jogos de tortura. Na Itália, eles abrigavam rituais de sacrifício religioso em que os cristãos saciavam a fome dos leões e do público interessado no espetáculo escatológico regado a sangue humano. Relatos das batalhas mostram que a multidão torcia e vibrava alucinadamente e por isso uma gravação reproduz os gritos e urros da turba em êxtase aos visitantes das ruínas preservadas. Pelas convenções romanas, as lutas com animais aconteciam de manhã, a execução dos prisioneiros era marcada para o meio-dia e a sessão da tarde era reservada aos shows dos gladiadores. Representante das classes sociais mais educadas, o filósofo romano Sêneca conferiu um dos embates do meio-dia. Num texto datado do ano 50 da era cristã, ele questiona o esporte preferido de muitos. “Todas as lutas anteriores eram mera suavidade do coração”, definiu o autor de Sobre a brevidade da vida.