Espalhados por 16 aldeias de uma reserva de 3.200 quilômetros quadrados, no Tocantins, os índios krahô cultivam como esporte favorito a corrida com tora. Com pelo menos 60 quilos e cerca de um metro, a tora de buriti, uma palmeira dos cerrados, é deslizada de ombro a ombro entre o grupo de corredores. Pintados com tintas naturais, mulheres e homens correm em grupos separados, em passadas rápidas e curtas. Antes da temporada de plantio prevista para meados deste mês, os krahô passaram uma semana praticando corrida com tora toda manhã e final de tarde. O espetáculo fazia parte de uma feira de sementes organizada pela Kapey, a associação que reúne as 16 aldeias e construiu uma sede à semelhança delas. De um amplo pátio central redondo saem estradas, como se fossem raios, que dão para um caminho circular, à beira do qual foram construídas as edificações de cada aldeia e da própria Kapey. Bem perto corre um rio no qual os krahô costumam se banhar diversas vezes por dia.

Durante a feira de sementes, o pátio central raramente ficou vazio. Entre uma corrida e outra, às vezes durante toda a noite, centenas de krahô ocupavam o espaço, dançando e cantando sons que mais pareciam mantras. Lá também foram repartidos os recursos que chegavam para a festa, entre eles 15 vacas destinadas à alimentação dos anfitriões e seus convidados, um total de mais de mil pessoas. Acompanhante dos representantes dos índios avacanoeiros, de Goiás, o indigenista Walter Sanches mal conseguia disfarçar a emoção ao rever os moradores da chamada Kraholândia. É que em 1968, quando passou pela primeira vez por aquelas terras, ele havia se deparado com um povo à beira da extinção. “Encontrei mulheres cobertas de varíola com crianças famintas no colo e moscas ao redor”, lembra Sanches. “Era ainda mais chocante do que as fotografias da guerra do Vietnã que corriam o mundo naquela época.”

Embora tivessem no passado uma agricultura diversificada, os krahô começaram uma trajetória de fome e miséria ao priorizar a cultura do arroz, prática incentivada a partir dos anos 40 pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), o antecessor da Funai. Enquanto comia um cuscuz de milho no café da manhã, o cacique Póhi contou que a variedade das plantações foi diminuindo aos poucos os roçados de seu povo. “É como os rituais do índio, que estamos perdendo no tempo”, compara Póhi, do alto de seus 86 anos e a sabedoria de quem já correu mundo. “Já estive até em Moscou para discutir com povos parentes nossa tradição.”

A viagem que marcou o retorno do povo de Póhi às suas raízes foi bem mais curta. Há duas décadas trabalhando com os krahô, o indigenista Fernando Schiavini estava em Brasília com o pajé Haprô, quando soube que a Embrapa mantinha em câmaras frias sementes coletadas em território indígena nos anos 70. Resolveu, então, procurar a empresa de pesquisas agropecuárias. A cena aconteceu há sete anos mas Haprô se lembra de detalhes, como ter vestido uma roupa especial, contra o frio, para entrar na câmara. “Lá dentro encontrei o Ponhynpey, o milho dos antigos”, conta. “É um milho escuro, muito macio e doce.” Embora da mesma variedade que Haprô conhecera na infância, o grão havia sido coletado em terra xavante. Mesmo assim, na ocasião, a Embrapa cedeu aos krahô a amostra possível, que não chegou a meia dúzia de grãos de milho para cada aldeia. Foi o suficiente para que a idéia de fazer germinar sementes se alastrasse por toda a Kraholândia, que tem muita areia, baixa fertilidade, mas é cortada por dezenas de pequenos rios.

A fartura ainda não voltou como nos velhos tempos. Mas agora, quando o arroz acaba, a fome não derruba. Para aplacá-la, há diversos tipos de mandioca, milho, inhame, batata e fava. Eles voltaram a integrar os roçados familiares, junto com plantas como o gengibre e o gergelim, muito apreciadas pelos krahô. Nas datas especiais, é a vez do cardápio ser enriquecido pelo paparuto – uma espécie de bolo de mandioca recheado com carne e assado debaixo de uma fogueira. Líder da aldeia Santa Cruz, Ikrekwyj, mais conhecida como Onorinda, lembra que o resgate da agricultura diversificada se reflete na cozinha, mas nem sempre agrada. “Muito menino não acha bom, bota para fora”, relata. “Eles foram acostumados só com arroz.”

Mais conscientes da importância da volta ao passado para garantir o futuro da etnia, os mais velhos se empolgam com as mudanças capitaneadas pela Kapey, que abriga até uma escola agroambiental, a Catxêkwy. Para impulsionar o processo, os índios passaram a contar nos últimos dois anos com a Embrapa, com quem assinaram um contrato de pesquisa para a conservação de seus recursos genéticos. Na prática, o acordo colocou à sua disposição uma equipe multidisciplinar altamente especializada, que está destrinchando as possibilidades a serem exploradas. “Já percebemos que o caju, que existe em pequena quantidade pelos matos daqui, é uma boa opção, pois sua castanha é rica em proteína e pode ajudar a superar a falta de carne”, comenta Terezinha Borges Dias, responsável pelo projeto da Embrapa.

O entusiasmo da equipe da Embrapa com o projeto é tão marcante que a geógrafa Lucimar Moreira não se limita a trabalhar com imagens de satélite e a devolver aos moradores mapas detalhados da região. Em parceria com os krahô, ela está criando um dicionário temático, ilustrado por alunos da escola Catxêkwy. Não há dúvida de que o incentivo dos especialistas potencializou o trabalho persistente do indigenista Fernando e ajudou a incrementar a feira de sementes. Idealizada em 1997, quando os krahô sentiram necessidade de ultrapassar a conquista do milho, o encontro também possibilita a revitalização da cultura indígena.

Além dos avacanoeiros, etnias como wapichana, macuxi e guarani mandaram representantes para a festa deste ano. Em nome de uma organização indígena do Acre e do sul da Amazônia, chegou o índio shanenawá Carlos Tekahawê. Cantores famosos, os canela desembarcaram do Maranhão em ônibus fretado. Com eles vieram os krikati, que, além de sementes, trouxeram raízes e o “perfume do índio”, elaborado com a seiva de uma árvore da Amazônia que o povo do cerrado não conhecia. Coordenador da Kapey, Kauwkraj, também conhecido como Getúlio, não escondia o orgulho em exibir a cabaça na qual costuma preservar sementes, misturadas com areia. “É só dependurar no alto, em lugar com fumaça, para espantar mariposa”, revelou. “A semente dura pelo menos dez anos”, completou Póhi. Em outros momentos, o velho cacique e o coordenador da Kapey se uniram para criticar uma parte dos jovens de suas próprias aldeias. “Eles só querem saber de relógio no braço”, atacou Póhi. “Tem branco que se pintou melhor do que muito índio sem tradição”, criticou Kauwkraj. De soslaio, admirou a pintura à base de jenipapo exibida pelo documentarista Juliano Basso, contratado pelos índios para registrar a festa.

Pele já milionária

Um rumoroso episódio colocou em pólos opostos os índios krahô e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Este ano, a Kapey, associação das 16 aldeias krahô, entrou na Justiça contra a universidade, pedindo uma indenização de R$ 25 milhões. Na origem da peleja, está uma pesquisa desenvolvida durante dois anos pela bióloga Eliana Rodrigues, que incluiu a identificação de 164 espécies vegetais usadas para fins medicinais. A pesquisadora atuou com autorização de uma organização rival da Kapey, a Vyty-Cati, que reúne apenas três aldeias krahô.

“Tem índio na Vyty-Cati que aprendeu malandragem e quis ganhar dinheiro sozinho”, reclama o coordenador da Kapey, Kauwkraj, o Getúlio. “Soubemos pela imprensa e chamamos a universidade para reunião com o Ministério Público.” A decisão de entrar na Justiça ocorreu depois do encontro, realizado sem representante da universidade. “O Ministério Público está investigando a questão da representatividade”, divulgou a Unifesp, em nota. “Em relação ao pagamento de royalties, caso sejam produzidos fitomedicamentos baseados nos conhecimentos tradicionais dos krahô, para a Unifesp não faz diferença estabelecer o direito de uma ou duas associações.”