Olhando de longe, a hidrelétrica de Itaipu é motivo de orgulho. Idealizada pelos governos militares do Brasil e do Paraguai em 1973, a binacional virou exemplo de desenvolvimento. É a maior hidrelétrica do mundo, com 18 turbinas que geram 14 milhões de megawatts e este ano tem a previsão de um faturamento superior a US$ 2,5 bilhões. Quando se ultrapassam os limites da usina, porém, constata-se que Itaipu esconde uma caixa-preta tão grande quanto seu potencial hidrelétrico. De fora, Itaipu chama a atenção por sua engenharia, tida como uma das obras mais complexas do planeta. Por dentro, o que se destaca é a engenharia jurídica montada por brasileiros e paraguaios para gerir a hidrelétrica. Na prática, Itaipu movimenta bilhões de dólares todos os anos e não se submete às leis brasileiras, nem às leis do Paraguai. A binacional está imune a qualquer controle: nem o Tribunal de Contas da União (TCU), nem a Receita Federal, nem o Supremo Tribunal Federal conseguem atravessar seu concreto. Com essa blindagem, Itaipu criou uma moeda própria, a Unidade de Correção Monetária (UCM), uma nota fiscal exclusiva, chamada Nota de Débito, e um dólar contábil com cotação autônoma. Nessa mixórdia financeira, Itaipu desenvolveu uma contabilidade oficial pela qual paga fornecedores e outra, paralela, que multiplica saldos e gera um megacaixa 2 – estimado, no ano passado, em US$ 2 bilhões.

Na salada de siglas criada pela binacional, os pagamentos por mercadorias e serviços são adiados para cair em dois cestos generosos: a Correção Monetária por Atraso de Pagamento (CMAP) e o Crédito de Contas a Pagar (CCP). Esses dois índices aleatórios, combinados com três tabelas diferentes, que podem variar em até 40%, determinam os saldos a pagar no futuro, que ficam estocados na conta secreta. Como Itaipu, os cerca de quatro mil fornecedores de serviços e mercadorias para a binacional também se beneficiam de total isenção – e são dispensados, nas transações com a usina, de emitir a nota fiscal tradicional. O que vale, no país de Itaipu, é a Nota de Débito, que ninguém controla, ninguém confere. Os débitos reclamados pelos fornecedores são, em geral, menores do que os débitos registrados na usina. A diferença de valor alimenta o caixa secreto.

Nos próximos dias, essa caixa-preta começará a ser desvendada pela CPI dos Correios, que já tem em mãos parte da documentação referente ao caixa 2 da binacional. “Não há como deixar de investigar o que acontece em Itaipu com uma força-tarefa do Ministério Público, da Polícia Federal e da própria CPI”, adverte o deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), perplexo com a papelada que já recebeu. O presidente do TCU, ministro Adylson Motta, vai pedir uma audiência ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na semana que vem, para discutir a blindagem da binacional: “É preciso quebrar a caixa-preta de Itaipu”, recomenda.

Testemunha chave – O caixa secreto de Itaipu foi montado em 1991, ainda no governo do então presidente Fernando Collor de Mello, pelo economista Laércio Pedroso. Ele começou a trabalhar na usina 11 anos antes, em 1982, como escriturário. Era gerente financeiro quando recebeu a ordem para criar uma “Listagem de Registros Eliminados do Arquivo Principal e Bloqueados nos Relatórios”. Apesar da extensão do nome, pouca gente sabe de sua existência e quase ninguém tem acesso a ela: “Só os diretores do lado brasileiro de Itaipu. O Paraguai não sabe e não acessa”, diz Laércio, localizado por ISTOÉ em Curitiba (PR). Hoje, ele é dono de uma consultoria que atende mais de 1.200 empresas que tentam cobrar créditos dessa conta secreta. Denunciado pela Itaipu à Polícia Federal como falsificador e ladrão de documentos, Laércio sofreu várias ameaças de morte e o seqüestro relâmpago da mulher e do filho de 14 anos, em setembro passado. Dois homens armados invadiram o carro, no centro de Curitiba, e rodaram com eles durante 40 minutos. Não roubaram nada e, ao liberar a mãe e o garoto, advertiram: “Fala pro teu marido parar com esta tal de Itaipu!…”

No Congresso, diante da CPI, Laércio vai contar toda a história da caixa-preta da binacional. Em março de 1991, no governo Collor, quando Itaipu tinha pendências com protestos de 20 fornecedores em cartórios de São Paulo, Laércio foi chamado pelo então superintendente financeiro, João Alberto da Silva, e encarregado de criar um arquivo paralelo: “Não podemos mostrar isso nos relatórios de diretoria”, teria dito João Alberto. “A idéia era deletar as pendências, para evitar a emissão de recibo de contas a pagar”, lembra Laércio. Um mês depois, a lista clandestina entrou no ar num sistema paralelo: “O arquivo oficial era IBM e o clandestino só rodava em Edisa, a que menos de dez pessoas, de confiança dos diretores, tinham acesso”, lembra Laércio. Em meados de 1991, todo o arquivo de Itaipu foi transferido para Curitiba, com incidentes pelo caminho. Dois caminhões da transportadora pegaram fogo na BR-116. O rescaldo foi levado em três kombis alugadas para a sede em Curitiba. Durante 40 minutos, no final da tarde, Laércio e mais três funcionários descarregaram caixas de documentos na sobreloja, onde funciona a Associação dos Empregados da Itaipu Binacional (Assemib). “Guarda na churrasqueira”, ordenou o superintendente João Alberto. “No dia seguinte, quando voltei lá, pouco depois das 8 horas, tudo tinha virado cinzas”, conta Laércio.

O arquivo clandestino resiste até hoje, nos computadores restritos de Itaipu e num fichário bloqueado por dois cadeados num canto escondido do Centro de Documentação, na sede da usina, em Foz do Iguaçu. Ninguém chega lá, por força da blindagem jurídica que torna a binacional imune à fiscalização convencional. O máximo que o TCU consegue é verificar se a Eletrobrás, a quem Itaipu se subordina, realiza ou não inspeções periódicas. Se realiza, são inspeções mais técnicas do que contábeis. Num universo de mais de quatro mil fornecedores ativos, que movimentam um catálogo eletrônico de quase 30 mil itens, Itaipu é um inferno para qualquer fiscal. Nenhuma empresa é localizada pela razão social. Existe um código de correntista, que pode ser fracionado em vários códigos para a mesma empresa: “É como se um sujeito tivesse vários CPFs, só para dificultar o acesso ao saldo que a empresa tem a receber”, explica Laércio. A Siemens, por exemplo, tem nove códigos. Quando uma empresa reivindica um saldo residual, diz ele, Itaipu escolhe alguns entre os diversos códigos – paga o correspondente e recebe a quitação como se fosse o total. “A empresa não sabe que, além do que recebeu, tem outros créditos em aberto, que só Itaipu conhece porque está registrado na conta clandestina”, acusa Laércio.

Documentos – A impunidade contábil de Itaipu é tão grande que, na papelada interna, a secreta “Conta de Bloqueados” é citada em alguns papéis timbrados que agora vão cair na CPI: documentos secretos de 1994, assinados pelo então diretor-geral, Francisco Gomide (depois ministro de Minas e Energia de FHC), e endereçados ao ex-diretor financeiro-executivo Edson Neves Guimarães, em papel timbrado de Itaipu, reconhecem explicitamente os “Saldos Remanescentes” com base em “análise efetuada no sistema ‘Listagem dos Registros Bloqueados no Arquivo e Eliminados dos Relatórios’, verificando-se a pendência dos pleitos”. Ou seja, a direção da usina reconhece dívidas, candidamente, com base num “registro bloqueado e eliminado”. Aberrações contábeis dessa gravidade vão fundamentar o pedido do presidente do TCU ao Palácio do Planalto para que Brasil e Paraguai revejam o acordo assinado pelos generais Emílio Garrastazu Médici e Alfredo Stroessner, em 1973. “Em plena democracia, não é possível a existência de uma estatal sem controle de ninguém, nem do Ministério Público, nem do Congresso brasileiro e paraguaio”, afirma o deputado Hauly. No lado de lá da fronteira, a Controladoria-Geral da República, versão local do TCU, padece da mesma impotência. E os políticos paraguaios, da mesma insatisfação: “Itaipu gera 10% do orçamento de US$ 3,5 bilhões do Paraguai”, lembra o senador paraguaio Armando Espínola, líder do oposicionista Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA). “Estes recursos se distribuem pelo país sem nenhum controle. Temos todo o direito de suspeitar que se utiliza o dinheiro para campanhas políticas ou corrupção. O Congresso mandou seis pedidos de informações sobre Itaipu ao Executivo e nunca recebeu uma resposta”, lamenta.