A platéia mal segurava a ansiedade para ver Elvis Presley em pessoa num de seus memoráveis shows na cafona Las Vegas. Nos bastidores, contudo, a tensão extrapolava o nervosismo habitual de uma simples estréia naquela noite de 26 de janeiro de 1971. É que às vésperas do início da temporada na cidade, o segurança Sonny West atendeu a um telefonema anônimo dizendo que Elvis iria ser assassinado durante um dos espetáculos. Ninguém precisou convencê-lo do que mais tarde se constatou ser um trote. Em paranóia tão crescente quanto sua popularidade, o ídolo entrou no palco espremendo um Colt 45 na cintura e escondendo um outro revólver na bota direita. Antes, secretamente ordenou aos seguranças que arrancassem os olhos do sujeito que por acaso o assassinasse. “Assim, não haverá ninguém falando por aí eu matei Elvis Presley.” Inconscientemente, o Rei do Rock se curvava à sua fragilidade.

Mas talvez imaginasse que nem um homicídio, muito menos a morte inexorável, lhe tiraria a condição de mito. Um mito constantemente revivido em proporções de avidez iguais às do longínquo ano de 1955, quando assinou um polpudo contrato – para a época – com a RCA, atual BMG, gravadora que até hoje detém os direitos sobre todos os seus discos de carreira, incluindo as infinitas coletâneas lançadas após sua morte por overdose, aos 42 anos, em 16 de agosto de 1977.

Cientes do potencial que o nome Elvis Presley gera, um comitê exclusivo de executivos da gravadora trabalha há dois anos num ambicioso projeto que, segundo eles, pretende revolucionar a história da música pop, possivelmente transformando o cantor no maior vendedor de discos do mundo. Este petardo, produzido para marcar os 25 anos da morte do ídolo, é o álbum Elvis 30 #1 hits, coletânea reunindo as 30 canções – rejuvenescidas pela tecnologia – que atingiram o primeiro lugar nas paradas de sucesso. Para armar todo o circo em torno do disco que culminará com um lançamento internacional na segunda-feira 23 e nos Estados Unidos na terça-feira 24, a BMG investiu US$ 10 milhões. A campanha de marketing engloba chamadas no rádio e na televisão, anúncios na mídia impressa, festas ao redor do planeta e inserções na internet. Americanos fanáticos pelo cantor vêm acessando um site especial desde 26 de junho passado. Fãs brasileiros, desde 1º de agosto, visitam o endereço elvisnumberones.com.br no qual uma voz em tom solene pergunta: “Você sabe por que a televisão tem censores? Você sabe por que as mulheres jogam suas calcinhas no palco? Você sabe por que Britney tocou em Las Vegas? Elvis é o porquê. Antes ninguém fez nada. Elvis fez tudo.”

As duas últimas frases absolutas há tempos ecoam na cabeça de Waldenir Ceon, 33 anos, comerciante paranaense radicado em Alta Floresta, no Mato Grosso. Ele é presidente do Elvis Presley’s World Fan Club Brasil e se diz aficionado pelo cantor a partir dos 14 anos, quando iniciou sua coleção de discos do Rei, que hoje contabiliza 200 CDs e 100 LPs. Ceon se inclui no time dos aflitos para ouvir as canções desempoeiradas do ídolo. “Já comprei pela internet e não vejo a hora de passar o dia 23”, diz ele, que em média dedica três dias por semana às atividades do fã-clube. A BMG, sabendo da ansiedade de compradores em potencial como Ceon, mandou instalar nas principais lojas de discos de São Paulo e do Rio de Janeiro painéis exibindo a contagem regressiva para o lançamento. Também programou atividades mais culturais. No sábado 28 e no domingo 29 – conta a gerente de marketing estratégico da BMG, Adriana Ramos –, várias rádios do País transmitirão um especial do cantor, com depoimentos do próprio e de vários ídolos pop rock, entre eles Mick Jagger e Britney Spears. “Montamos uma operação de guerra”, define Adriana. “O mito ressurgiu de forma inimaginável.”

Tal febre fabricada encontra sintomas perenes, porém exacerbados depois da morte de Elvis, pois a todo momento sua gravadora relança algum disco, reorganiza coletâneas em CDs simples, duplos ou as acondiciona em caixas caras, como a recente e importada Today, tomorrow and forever, trazendo quatro álbuns com versões alternativas e registros raros ao vivo, cobrindo o período de 1954 a 1976. São itens apenas para iniciados, mas que já ganharam novo tratamento sonoro, a exemplo da empreitada da EMI, que na mesma linha lançou em 1995 o primeiro dos três CDs duplos The Beatles anthology e, em 2000, levou a compilação de sucessos 1 às paradas de todo o mundo.

Sem dúvida, Elvis continua sendo o monarca de vendas da BMG. Contudo, algo precisava ser feito para ele não se manter restrito ao círculo de fãs empedernidos. Os números provam. Enquanto só nos Estados Unidos os Beatles venderam 8,2 milhões de cópias de 1 – ao redor do mundo foram 22 milhões, de acordo com a EMI –, no mesmo período todos os álbuns reunidos de Elvis não ultrapassaram a marca americana do 1,4 milhão. Afinal, seus grandes hits pertencem aos anos 50 e 60, índice de que os compradores fiéis, no momento, estão mais preocupados com a aposentadoria do que com visitas a lojas de discos. Além do que, de certa forma, a obra dos Beatles, por toda a evolução sofrida em menos de dez anos de carreira, continua se mostrando mais jovial.

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De posse destes dados ligeiramente alarmantes, os executivos da BMG se reuniram com os cabeças da Elvis Presley Enterprises (EPE) – a organização que cuida da obra do cantor –, com o firme propósito de traçar estratégias para alavancar as vendas do Rei. O primeiro passo foi buscar parcerias com produtos relacionados à nova geração. Assim surgiu a Nike, que bolou um comercial na época da Copa do Mundo usando um remix da obscura canção A little less conversation, escrita por Mac Davis e Billy Strange como parte da trilha sonora do filme Live a little, love a little, dirigido por Nicolas Taulog em 1968.

Feita a funilaria e pintura, A little less conversation – que é faixa-bônus do novo CD – renasceu para o sucesso. Depois de lançado comercialmente, o single galgou os primeiros lugares das paradas americanas. O segredo, no entanto, não foi apenas desenterrar a música. Sem descaracterizá-la totalmente, como acontece com a maioria dos remixes, o DJ holandês Tom Holkenborg renovou o rock sessentista incorporando elementos da música eletrônica com ótimo resultado. Mas em troca fez uma grande concessão. Holkenborg, cujo nome artístico é Junkie (viciado) XL, se viu obrigado pela EPE a assinar apenas JXL para o público não fazer associação entre Elvis e as drogas que o mataram, o que até hoje não consta do óbito oficial.

Uma segunda parceria da BMG, agora com a Disney, também tem aproximado o público jovem das canções de Elvis através do divertido desenho animado Lilo & Stitch, em cuja trilha há cinco sucessos do cantor. “Quer ouvir o Rei? Você vai virar fã”, diz Lilo, a insubordinada garotinha havaiana que faz amizade com Stitch, um E.T. politicamente incorreto. Numa das cenas, ele inclusive aparece de topete e macacão de gola alta cantando (You’re the) devil in disguise, sucesso de 1963. No mês passado, o álbum liderava a parada da revista Billboard na categoria trilha sonora. Outra tacada para revitalizar o catálogo do cantor, que estranhamente nunca se apresentou fora dos Estados Unidos – exceto num show no Canadá, em 1957 –, foi incrementá-lo com avançadas técnicas de remasterização digital. Não se trata de acrescentar modernidades ou mexer nos arranjos, mas sim dar mais brilho às canções originalmente gravadas em sistema analógico, destacando instrumentos antes abafados. À época, tudo era feito “ao vivo” no estúdio. Não havia tecnologia para gravar cada instrumento separadamente.

Independentemente da quantidade de cifrões que a nova empreitada pode gerar, as canções de Elvis 30 #1 hits guardam um apelo irresistível. Principalmente quando se pensa que a maioria delas molda um som contagiante, feito apenas com um violão e um contrabaixo acústicos, uma guitarra e só mais tarde uma bateria. Inovador, Elvis sabia imprimir carisma tanto nas gravações quanto nas apresentações ao vivo. No início, muitos pensavam que as palavras não compreendidas eram fruto do seu sotaque caipira. Mas não, com emoção exacerbada e uma vitalidade jovial, determinada pela ânsia de sucesso e pelo amor à música, ele simplesmente inventava sons, fazendo com que as pessoas pensassem que eram frases mal pronunciadas.

Grande parte do seu suingue vem da música negra. Ainda criança, sentia-se atraído pelo blues e pelo canto gospel. Passou a adolescência ouvindo mestres do porte de John Lee Hooker, Muddy Waters e B.B. King, que era disc-jockey em Memphis, Tennessee, para onde o garoto se mudou com o pai, Vernon Elvis Pressley (com dois esses), e a mãe Gladys Smith. Elvis tinha 13 anos quando saiu de sua cidade natal, a pobre Tupelo, à época um vilarejo erguido na região nordeste do Mississippi. Encantado com o ritmo e a vitalidade impressa pelos afro-americanos, na verdade, a base da grande música popular produzida no século XX, frequentemente o jovem fugia da mãe superprotetora para se deliciar com a cantoria black na periferia de Memphis. Nas ruas, destacava-se pelo visual. Gostava de roupas espalhafatosas e, ao contrário do corte escovinha da rapaziada de então, usava o seu cabelo mais comprido. Principalmente para poder esculpir com quilos de brilhantina o topete que seria sua eterna marca registrada.

Bonitão, sorriso cativante e uma habilidade única para chacoalhar o corpo num tempo em que a maioria dos artistas brancos se mantinha impassível ao microfone, Elvis provocou escândalos muito bem pensados como meta de ascensão na carreira. Com o passar do tempo, virou a personificação do americano médio. Para espanto de qualquer gourmet, adorava se lambuzar com pasta de amendoim e sanduíches de banana. Graceland – a famosa mansão que construiu em Memphis e que hoje é o segundo local mais visitado dos Estados Unidos, depois da Casa Branca – era seu refúgio predileto. Cedo, se entregou às drogas, aquelas legais, vendidas com receita, mas nem por isso menos nocivas.

Quando, em 1959, conheceu Priscilla Beaulieu, com quem se casaria aos 32 anos, já cultivava o hábito de tomar bolinha, na gíria antiga: tranquilizante para dormir, estimulante para acordar. Paradoxalmente, escreveu ao então presidente Richard Nixon pedindo a ele um distintivo de agente federal da Divisão de Narcóticos. Conseguiu. Queria ser como o Capitão Marvel, seu herói de infância, e convencer os jovens a abandonar as drogas. Elvis Aron Presley morreu com a química circulando no seu organismo em doses cavalares. Suas baladas e seus rocks, no entanto, estão prontos para renascer a qualquer instante.

Clássico como os bons pratos

á quem ainda seja purista o suficiente para preferir o vinil, incluindo seus habituais chiados. Até certo ponto é compreensível. O vinil preserva a música como ela foi planejada, com todas suas perfeições e naturais imperfeições. Em compensação, não há como negar: a cada dia, o CD carrega tantos avanços que, ache charmoso ou não, é possível saber até que o cantor estava com a boca seca no momento da gravação. Agora, se o assunto é Elvis Presley – um ídolo nascido nos primórdios dos estúdios, quando a guitarra ainda era considerada um instrumento histericamente alienígena –, todos os temores em mexer no seu legado vêm à tona. Elvis 30 #1 hits, no entanto, é um primoroso trabalho técnico e de respeito à obra do Rei do Rock.

Elaborado em ordem cronológica, o repertório do disco beneficia os melhores momentos do cantor e suas canções, sem tirar um pingo da vitalidade original. Ao contrário, no momento em que o CD é tocado as caixas se enchem com todo o peso dos instrumentos e da voz única de Elvis, que, sem a menor e desnecessária modéstia, dizia: “Eu não pareço com ninguém.” O produtor David Bendeth soube dar precisão a cada faixa. E, independentemente da técnica, as canções denotam o imenso prazer de Elvis em tocar e cantar. Assim é com a pioneira Heartbreak hotel, de 1956, um blues-rock totalmente inusual, cuja idéia da letra veio de uma nota sobre um suicídio, publicada num jornal. Ou com a balançadíssima Return to sender e as definitivas baladas Love me tender, Are you lonesome tonight e Can’t help falling in love. É uma festa nostálgica, sim, mas com sabor daquele prato clássico que suplanta qualquer nouvelle cuisine.


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