Em 23 de novembro de 1945, Manoel Bandeira (1886-1968), um dos mais importantes nomes da literatura nacional, escreveu para Clarice Lispector, então com 25 anos, desculpando-se por haver desencorajado a veia poética da jovem autora. “Até hoje tenho remorso do que disse a respeito dos versos que você me mostrou”, dizia ele, entre brincadeiras do tipo “você tem peixinhos nos olhos: você é bissexta, faça versos, Clarice, e se lembre de mim”. Assim como Bandeira, vários outros intelectuais se corresponderam com Clarice. Todas as missivas foram devidamente guardadas pela família da escritora e estarão reunidas num livro ainda sem título, previsto para ser lançado em novembro pela editora Rocco. Ao todo são 129 cartas, de e para Clarice Lispector, escritas entre 1941 e 1977, ano em que ela morreu vítima de câncer. Setenta cartas são da autora para amigos, filhos, marido ou pessoas ligadas à literatura. Grande parte nunca foi publicada e está arquivada em instituições como a Casa de Rui Barbosa e a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Outras jamais foram lidas por pessoas alheias ao círculo familiar. São as destinadas ao marido, Maury Gurgel Valente, ao filho Paulo, às irmãs Elisa e Tânia, à cunhada Eliane e a Andréa Azulay, uma garotinha que em 1974 tinha nove anos.

A organização do material é de Teresa Montero, autora da biografia de Clarice Lispector Eu sou uma pergunta e também atriz da companhia de teatro Rositos Amorosos, da Casa da Gávea. Além da óbvia importância histórica, a correspondência vem a público para lembrar os 25 anos de morte da escritora nascida em 1925, na cidade de Tchetchelnik, Ucrânia. Clarice Lispector – hoje uma das literatas mais cultuadas do Brasil – morreu no dia 9 de dezembro, um dia antes de fazer 52 anos. Para completar o ciclo de novidades literárias, Teresa terminou nos Estados Unidos sua tese de mestrado Yes, nós temos Clarice. “Estou procurando uma editora para publicar esse trabalho, que reúne ensaios de especialistas em Clarice de diversas nacionalidades”, explica ela.

O livro com a correspondência seguirá uma ordem cronológica. No pacote, há 18 cartas de Bluma Chafir Wainer – jornalista e fotógrafa, primeira mulher do também jornalista Samuel Wainer –, que formam um panorama cultural e político da década de 40. “Bluma morava na França e Clarice, na Suíça. São cartas enormes em que ela conta detalhes do que estava acontecendo. Um verdadeiro tratado”, antecipa Teresa. No material, algumas peculiaridades emocionam, como ver a letra de João Cabral de Melo Neto confessando: “Só reli dois romances em minha vida. Um seu (O lustre) e outro de José Lins do Rego.” Em sete cartas, o autor de Morte e vida severina nos brinda com depoimentos preciosos sobre seu próprio processo de criação literária. Tais cartas também vão permitir saber o que outros escritores pensavam sobre ela, entre eles o cronista Rubem Braga, que descreve o que sentiu ao ler seus contos. Nomes do porte de Lygia Fagundes Telles, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino e Lêdo Ivo também figuram em 59 cartas.

É comovente ler Clarice dando conselhos sobre a profissão que abraçou para a garotinha Andréa Azulay, filha de seu psicanalista Jacob David Azulay. “Desejo-lhe que nunca atinja a cruel popularidade porque esta é ruim e invade a intimidade sagrada do coração da gente. Escreva sobre ovo que dá certo. Dá certo também escrever sobre estrela. E sobre a quentura que os bichos dão à gente.” Curiosidade: Andréa é hoje advogada. Para Erico Verissimo e a mulher, Mafalda, sempre escrevia à mão. Numa das cartas, antes de fazer um preâmbulo sobre o fato de ela e o marido, Maury, não terem religião, pede ao casal Verissimo para ser padrinho dos filhos, Pedro e Paulo, avisando: “A condição única é continuarem a gostar deles.”

Mãe apaixonada e atenta, ela sempre se comunicava com os filhos, principalmente nas viagens deles. Clarice entendia a distância das raízes. Imigrou com a família da Ucrânia para o Brasil com apenas dois meses de idade. Passou a infância no Recife e, em 1937, fixou residência no Rio de Janeiro. Em 1943 publicou seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, já antecipando os dramas existencialistas que caracterizariam sua obra. Casada com um diplomata, viveu 15 anos longe do País. Escreveu duas cartas ao presidente Getúlio Vargas, ambas contidas no livro, pedindo para ser naturalizada brasileira. Além de romances como A cidade sitiada (1949), A maçã no escuro (1961) e A paixão segundo G.H. (1964), entre outros, escreveu os contos Laços de família (1972). O romance A hora da estrela (1977) virou filme de Suzana Amaral em 1985, com Marcélia Cartaxo no papel principal. Por coincidência, a atriz também é protagonista do curta-metragem Aeroporto em O embarque, dirigido por Nicole Algranti, sobrinha-neta de Clarice. O curta-metragem é uma sensível homenagem à escritora.

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