É uma pena que Juan José Saer seja pouco conhecido no Brasil. Considerado um dos mais importantes escritores argentinos pós-Jorge Luis Borges, Saer – que vive na França desde 1968 – já integra a galeria de expressões máximas da literatura mundial. Está sendo lançado no Brasil O enteado (Iluminuras, 192 págs., R$ 25), seu sexto romance que chega aqui com atraso de exatos 20 anos. Dos seus poucos livros traduzidos para o português, destacam-se Ninguém, nada, nunca e A pesquisa, ambos editados pela Companhia das Letras. No entanto, da lista de 19 obras – todas traduzidas para o francês e elogiadas pela crítica – há um enigma em relação à definição do gênero literário. O autor não gosta da palavra romance. Diz que faz narrativas. É verdade. Saer caminha na linha fronteiriça entre a história e a ficção. E, para ele, em certos casos fatos reais e fictícios podem fazer com que história e romance sejam considerados sinônimos, como já disse em várias palestras e artigos.

A afirmação se encaixa perfeitamente em O enteado, que narra a trajetória de um sobrevivente de uma expedição espanhola do século XVI. Sua incauta tripulação ancorou numa ilha habitada pela tribo antropófaga colastiné, que matou e comeu todos, exceto o narrador, justamente ele, um rapaz órfão e indiferente à vida. Por que fora poupado de terminar seus dias na improvisada grelha que assou seus companheiros de expedição? Esta curiosidade Saer mantém até o final e, a bem da verdade, a importância da resposta vai enfraquecendo à medida que expõe a singularidade chocante daqueles índios que faziam sexo em grupo nas festas, usavam palavras com dezenas de significados (inclusive seus contrários) e morriam cedo.

Sempre que os traços históricos brilham demais, a ação se desloca para o narrador que escreve suas memórias à luz de vela, entre indícios incertos e lembranças duvidosas. O núcleo de tudo é a antropofagia. Quem já leu sobre o triste fim do bispo Sardinha, devorado por índios caetés em 1556, vai entender por que essa história nos é particularmente interessante. São páginas e páginas com detalhes preciosos da preparação do banquete. “A origem humana dessa carne desaparecia, gradualmente, à medida que o cozimento avançava. Ao derreter-se, a gordura gotejava sobre as brasas produzindo um chiado constante e monótono. Das partes chamuscadas se desprendiam lascas de carne ressecada, e os pés e as mãos se encolhiam pela ação do fogo”, descreve. Dá até para entender o desejo que o sobrevivente sentiu de conhecer o gosto real do animal homem. Meticulosamente e com poesia, Saer ilumina a história real que permitiu dizimar índios em prol de um mundo chamado Novo. Este em que vivemos.