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"Não tenha medo. Sou seu papai, é assim que você me chama, não?
Mas também sou seu irmão e, além disso, seu amante. Vou ser
tudo isso pra você. Porque você vai viver comigo pra sempre"

Fala de Kadafi dita à jovem Soraya em sua chegada ao palácio do ditador

Pouco mais de um ano após sua morte, ainda emergem novos itens na lista de atrocidades cometidas pelo ditador líbio Muamar Kadafi durante suas quatro décadas de governo. Um dos mais obscuros acaba de ser cruamente descrito em “O Harém de Kadafi” (ed. Verus), livro da jornalista francesa Annick Cojean. A repórter especial do diário “Le Monde” dá voz a Soraya, jovem que, como tantas outras, foi tirada do seu convívio familiar para viver aprisionada a serviço do impiedoso líder. Através de seu depoimento é possível entender como funcionava o sistema de escravas sexuais de Kadafi e seu conhecido “exército de virgens”.

Era abril de 2004 quando Soraya soube que o mandatário visitaria sua escola em Sirte, cidade da costa mediterrânea. Aluna de poucos amigos, foi uma das escolhidas para receber Kadafi e entregar-lhe flores. “Estendi o buquê, tomei sua mão livre nas minhas e a beijei, me curvando. Então senti que ele comprimia estranhamente minha palma. Depois me mediu de cima a baixo, me lançando um olhar frio. Apertou levemente meu ombro e pousou a mão sobre minha cabeça, acariciando-me os cabelos. E minha vida terminava aí.” O gesto significava que ela era uma das escolhidas pelo ditador.

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PORTA-VOZ
A jornalista francesa Annick Cojean ouviu os relatos
da jovem Soraya após conhecê-la na Líbia em 2011

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Soraya foi então “convocada pelo exército” e, a partir daí e pelos cinco anos que se seguiram, viveu um cotidiano de violência sexual. Ela era parte de um sistema que funcionava com inúmeras outras garotas, selecionadas por Kadafi também em universidades, festas particulares e casamentos. Uma vez escolhida, a adolescente era exposta a todas as perversões do tirano obcecado por sexo. Soraya era obrigada a assistir a filmes pornográficos para aprender a servir seu amo, além de beber uísque, fumar cigarros e usar drogas como cocaína.

Kadafi também usava o sexo para punir ou premiar. O ditador sodomizava seus ministros para mantê-los sob seu domínio. E, quando queria humilhar alguém, dormia com sua esposa ou filha. E o pior, com o silêncio preservado. Em um país conservador, não se falava abertamente sobre o assunto.

A família de Soraya conhecia sua situação, mas vivia o sofrimento de longe, de mãos atadas. Sua mãe foi autorizada a visitá-la algumas vezes, e outros parentes passaram a considerá-la mundana. Hoje, casada e tentando conviver com os fantasmas do passado, ela mostra, através de Annick, parte das manchas deixadas em seu passado pelo ditador. “Kadafi ficou no poder por 42 anos e essa prática acontece desde que ele assumiu. Imagina quantas garotas como Soraya estão por aí?”, questiona a autora.

Fotos: AFP PHOTO

 

Leia um trecho do segundo capítulo do livro: 

PRISIONEIRA

Ficamos rodando de carro por um bom tempo.

Eu não tinha ideia de que horas eram, mas aquilo

me parecia interminável. Saímos de Sirte e avançamos

pelo deserto. Eu só olhava para frente e não

ousava fazer perguntas. Então, chegamos a Sdadah,

em uma espécie de acampamento. Havia muitas

tendas, outras caminhonetes e um imenso trailer,

extremamente luxuoso. Mabruka foi em direção

ao veículo, fazendo sinal para que eu a seguisse, e

acreditei ter visto, em um carro parado com o motor

ligado, uma das alunas que, como eu, haviam

sido escolhidas na véspera para receber o Guia. Isso

me deu certa segurança. No entanto, ao entrar no

trailer, fui tomada por uma angústia indescritível.

Era como se todo o meu ser recusasse aquela situação.

Como se intuitivamente eu soubesse que algo

muito ruim estava sendo tramado.

 

Muamar Kadafi estava ali dentro, sentado em

uma poltrona de massagem vermelha, com o controle

remoto na mão. Imperial. Eu me adiantei para

beijar-lhe a mão, que ele estendeu debilmente,

olhando ao longe.

 

– Onde estão Faíza e Salma? – perguntou a Mabruka com a voz irritada.

– Já estão chegando.

Eu estava estupefata. Nem o menor olhar na minha direção. Eu

não existia. Muitos minutos se passaram. Eu não sabia onde me enfiar.

Ele acabou se levantando e me perguntou:

– De onde é sua família?

– De Zliten.

Sua fisionomia continuou impassível.

– Preparem-na! – ordenou, deixando o local.

Mabruka fez sinal para que eu me sentasse em uma banqueta num

canto da sala. As outras duas mulheres entraram, à vontade, como se

ali fosse a casa delas. Faíza sorriu para mim, se aproximou e me tocou

com certa intimidade no queixo.

– Não se preocupe, pequena Soraya! – e tornou a sair, rindo.

Mabruka estava ao telefone. Ela dava instruções e fornecia detalhes

práticos para alguém que estava chegando, talvez uma garota como

eu, já que pude ouvir:

– Tragam-na aqui.

Ela desligou e se voltou para mim.

– Venha. Vamos tirar suas medidas para lhe encomendar algumas

roupas. Qual o tamanho do seu sutiã?

Fiquei atônita.

– Eu… eu não sei. É mamãe quem sempre compra minhas roupas.

Ela parecia irritada e chamou Fathia, uma figura, pois tinha voz e

porte de homem, mas seios imponentes de mulher. Ela me avaliou,

depois me cumprimentou de maneira informal e piscou para mim.

– Então, é a novata? E de onde vem esta?

Passou a fita métrica em torno da minha cintura e dos meus seios,

encostando os dela nos meus. Depois anotou as medidas e saiu do trailer.

Fiquei ali sozinha, e não ousava chamar alguém nem me mexer.

Caía a noite. E eu não estava entendendo nada. O que mamãe pensaria?

Ela seria avisada do atraso? O que aconteceria ali? E como eu voltaria?