O delegado Cláudio Nogueira, da
Polícia Federal em Brasília, se tornou conhecido nacionalmente quando participou, em São Paulo, da chamada Operação Anaconda, que revelou um esquema de venda de sentenças judiciais e colocou na cadeia três juízes federais, delegados e agentes da PF. Há um ano, na quarta-feira 11 de junho de 2003, na sala de Comissões da Câmara Federal, ele afirmou alto e bom som que há no Brasil uma máfia dos combustíveis atuando com a participação de autoridades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. “Há infiltrações dos mafiosos em todas as esferas do poder. Isso posso afirmar com convicção”, disparou Nogueira diante dos parlamentares da CPI dos Combustíveis. O delegado se negou a dar nome aos bois e se justificou dizen do que as investigações ainda estavam em curso. Um ano depois, o inquérito não está concluído e atualmente repousa na mesa do procurador-geral da República, Cláudio Fontelles. A convicção do delegado, no entanto, tinha, já na época, bases bastante sólidas. Ele era o presidente do inquérito batizado de Operação Ouro Negro e tinha em seu poder vasta documentação sobre as fraudes praticadas pela máfia, inclusive gravações de conversas telefônicas. Muitas gravações. Aliás, também na Operação Anaconda, o delegado exagerou no número de grampos e tem sofrido críticas por causa disso.

As conversas gravadas na Operação Ouro Negro são inflamáveis. Elas envolvem o alto escalão da Agência Nacional do Petróleo (ANP), parlamentares, governadores e até desembargadores. A investigação revela a influência dos mafiosos na obtenção de certificados para a formulação de gasolina e de liminares que garantem a continuidade das fraudes. Também foram reveladas as relações entre os que fraudam e os que deveriam fiscalizar a qualidade dos combustíveis. De acordo com o delegado, as falcatruas provocam um prejuízo ao País estimado em R$ 10 bilhões por ano.

Mamata milionária – No Brasil, apenas duas empresas foram autorizadas a trabalhar com gasolina formulada: a Golfo Petróleo Ltda. e a Aster Produtora e Formuladora de Combustível. A primeira é a principal protagonista das falcatruas descobertas pela Polícia Federal. Obter da ANP a autorização para trabalhar com gasolina formulada significa, na prática, tornar-se independente das refinarias e das petroquímicas para a aquisição da gasolina tipo A, usada para ser misturada ao álcool e depois distribuída para os postos. Essa independência permite colocar gasolina mais barata no mercado nacional.

Os documentos e gravações telefônicas que fazem parte das investigações de Nogueira mostram que a máfia dos combustíveis já agiu na própria concessão da autorização pela ANP, entre o final do governo FHC e o início da administração de Luiz Inácio Lula da Silva. Em dezembro de 2001 foi publicada a portaria 316 da ANP, que regulamentou a formulação da gasolina. Várias distribuidoras correram para obter a autorização, mas só a Aster conseguiu, em 3 de junho de 2003. No mesmo dia, através da portaria número 175, a ANP suspendeu a portaria número 316, mas manteve a autorização dada horas antes para a Aster. Com isso, a empresa conseguia, no final do ano passado, vender em seus postos a gasolina comum por R$ 1,68 o litro, enquanto os concorrentes trabalhavam com cerca de R$ 1,90 por litro. Um lucro extraordinário, pois no Brasil circulam cerca de 26 milhões de veículos. A Golfo só conseguiu a autorização para formular a gasolina em abril, por força de uma liminar obtida na 21ª Vara Federal do Rio de Janeiro.

Na última semana, ISTOÉ teve acesso a algumas das gravações que fazem parte da Operação Ouro Negro e a outras em poder do Ministério Público Federal no Rio. Nesses diálogos, o dono oficial da Golfo, Dirceu Antônio de Oliveira Júnior, conhecido como Major, se mostra um expert no tráfico de influência na ANP. Seu interlocutor é Paulo Bandeira, especialista em mercado financeiro, diretor de operações de uma famosa corretora de títulos no Rio. Segundo a Polícia Federal, ele é o responsável pela intermediação entre a Golfo e a ANP. Nos vários diálogos gravados, Bandeira mantém Dirceu informado a respeito de seus interesses junto à Agência, diz ter informações sobre documentos internos da ANP, o aconselha a esconder notas fiscais e aparentemente leva e traz informações de seus contatos na ANP para Dirceu e vice-versa.

Bandeira tem duas importantes ligações na ANP. A primeira é a própria mulher, Cláudia Maia Bandeira, assessora do superintendente de abastecimento, Eugênio Roberto Maia. O outro contato é César Ramos Filho, chamado de “Imperador”. Ele é o chefe do núcleo de fiscalização, responsável pela inspeção da qualidade do combustível que chega aos postos de todo o País. Em abril do ano passado, o casal Bandeira ofereceu uma badalada festa de aniversário a Ramos, que contou com a presença do também amigo e ex-diretor-geral da ANP David Zylberstajn, do qual Ramos foi chefe de gabinete, e do atual chefão da ANP, Sebastião do Rego Barros. Em uma das conversas entre Dirceu e Bandeira, o segundo chega a questionar a forma como Ramos se expõe, ao dizer que um amigo lhe dissera ter ouvido comentários em uma churrascaria dando conta de que o amigo seria um “picareta”. Em outro telefonema, Bandeira comenta uma viagem a Miami em julho de 2003. Dirceu demonstra preocupação com a ausência de Ramos na ANP naquele período. Diz que também está viajando e pede que Bandeira passe o telefone de seu filho e braço direito, Rodrigo, para o Imperador. A viagem aconteceu no momento em que Dirceu pedia à ANP a autorização para a Golfo ser formuladora de gasolina.

Pelos regulamentos da ANP, para obter a autorização, os sócios e a empresa interessada não podem ter dívidas na praça nem pendências na Agência.
Um mês depois da viagem, a ANP liberou o primeiro passo para Dirceu atuar
como formulador: autorizou a Golfo a construir as instalações para misturar
os combustíveis. Na última semana, a assessoria de imprensa da ANP
informou a ISTOÉ que Cláudia e Ramos não tiveram nenhuma interferência
na decisão e assegurou que ela só operou como formuladora por força de
liminares obtidas na Justiça.

Denúncia criminal – Com ou sem interferências, ao dar a autorização para a Golfo operar, a ANP aparentemente ignorou uma operação conduzida em agosto de 2002 por seus próprios fiscais, que encontrou gasolina adulterada (misturada com solvente) vendida por Dirceu a vários postos do Rio Grande do Sul. A documentação reunida na operação serviu de base para uma denúncia criminal apresentada à Justiça de Canoas (RS) pelo promotor José Quintana Freitas. Na denúncia, o Ministério Público acusa Major e seu filho Rodrigo, entre outros, de associarem-se “em quadrilha, para o fim de cometerem crimes relativos à distribuição de gasolina”. O promotor ainda acusa Dirceu e seu grupo de tentarem fraudar as amostras de gasolina coletada. Essas informações estavam disponíveis dentro da própria ANP e justamente no território supervisionado por César Ramos. Além de aconselhar Dirceu a evitar que as notas fiscais de uma de suas distribuidoras, a Granel, chegassem à ANP, Bandeira repassa por fax uma série de documentos internos da Agência.

A Operação Ouro Negro também flagrou em seus grampos o empresário Amadeu Moreira Ribeiro de Carvalho. Segundo a Polícia Federal, ele é o verdadeiro dono da Golfo e Dirceu não passa de seu testa-de-ferro. Em suas conversas ficam evidentes as relações que Amadeu mantém com integrantes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de diversos Estados. Em um dos diálogos gravados, Amadeu ordena a sua secretária, Cíntia, que faça pagamentos de propinas a pessoas indicadas por autoridades de governos estaduais que facilitam a fraude fiscal no transporte de combustível. Segundo a CPI, esse tipo de sonegação gera um prejuízo anual de R$ 1,5 bilhão. Uma das conversas revela que o contato de Amadeu no Rio Grande do Norte se dá, inclusive, com o filho da governadora Vilma Faria (PSB). Num dos diálogos a que ISTOÉ teve acesso, o filho da governadora diz os nomes das pessoas a quem devem ser feitos alguns depósitos. Em seguida, Cíntia liga para o Rio Grande do Norte para se certificar dos dados transmitidos a Amadeu. A resposta é clara: “Deposite R$ 80 mil na conta da Editora Natal, no Banco do Brasil, R$ 60 mil na conta da sra. Fernandes Fortes, também no Banco do Brasil, R$ 60 mil na conta de Carlos Genário, sendo R$ 30 mil na Caixa Econômica Federal e R$ 30 mil na conta do Unibanco.” Depois de tomar conhecimento das conversas, a Polícia Federal fez rastreamento bancário e provou que os depósitos foram efetuados exatamente como determinado.

Sonegação – Outra prova encontrada pelo delegado em relação às tramóias de Amadeu no Rio Grande do Norte são documentais. Na refinaria de Manguinhos existe o registro de milhões de litros de combustível destinados à filial de Natal da Sul Americana Distribuidora de Petróleo Ltda. Além de Natal, a empresa de Amadeu, sediada no Rio de Janeiro, tem filiais em Cuiabá (MT), Senador Canedo (GO) e Paulínea (SP). O problema é que esse combustível jamais chega ao Rio Grande do Norte. Trata-se, segundo o delegado, de uma milionária sonegação, descoberta pela CPI. Na Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Norte, Amadeu obteve para a Sul Americana a inclusão no chamado Regime Especial. Com isso, ele não paga o ICMS do combustível na origem (Manguinhos), deixando para fazer esse pagamento no destino (Rio Grande do Norte). Mas, na verdade, Amadeu distribui o combustível em São Paulo, onde está o maior mercado consumidor. O delegado comprovou que o governo potiguar só é informado sobre a quantidade de combustível adquirido em Manguinhos cerca de oito meses depois da compra.

No campo parlamentar, as conversas gravadas pela Polícia Federal mostram as relações entre Amadeu e integrantes da própria CPI dos Combustíveis. Dias antes do depoimento de um diretor da BR Distribuidora na CPI, Amadeu liga para o deputado André Luiz (PMDB-RJ), integrante da Comissão, e manda o deputado
fazer sete perguntas. “Quando você fizer a quarta, te chamarão para um acordo
e eu preciso ficar com Manguinhos”, disse. Nos diálogos seguintes, Amadeu era tratado como “Rei de Manguinhos”. Dias depois, Amadeu parece sentir-se efetivamente um rei. Em conversa com um amigo de nome Marco Antônio ele diz: “Marco, estou indo para Brasília. Se tudo der certo, o Brasil ficará pequeno para nossas falcatruas.”

Tudo indica que a máfia dos combustíveis nade de braçada na ANP. Mas há
outras pedras no caminho, além da Polícia Federal e do Ministério Público. Uma delas é a ministra das Minas e Energia, Dilma Roussef, contrária à operação de empresas formuladoras no Brasil. “O formulador, em si, não é ruim. Existe em outros países. Só que lá fora não tem indústria de liminares nem adulteração de gasolina”, diz a ministra