Imagine um jogo de futebol. Um bandeirinha levanta a sua bandeira indicando que determinado atacante está impedido. O outro bandeirinha corre e diz ao juiz que ele discorda da marcação do impedimento e pede que o jogo seja interrompido enquanto se discute a questão. Um bandeirinha divergindo do outro bandeirinha, o público ficaria no mínimo atônito e acharia, na linguagem futebolística, que a partida anda meio embolada. É mais ou menos isso o que está acontecendo no Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo.

Conforme ISTOÉ publicou (edição 1805), é o próprio Ministério Público Federal que admite que estão ocorrendo interceptações telefônicas clandestinas – a chamada arapongagem. E admite isso ao ter encaminhado à Superintendência da Polícia Federal de São Paulo o ofício 678/04 pedindo a investigação desse fatos. Como é função constitucional dos procuradores do MP fiscalizar o cumprimento da própria Constituição, o procurador que encaminhou esse ofício cumpriu a sua função – ergueu a bandeira e apontou o impedimento: “Nos autos (…) que se processam perante a 7ª Vara Criminal Federal, em que foram denunciados Alexandre Morato Crenite, Ari Natalino da Silva e outros, foi detectada, no curso do processo, a existência de grampos ilegais (negrito do original), (…), referida ocorrência desmoraliza a autoridade do próprio Poder Judiciário.” Também o superintendente da PF de São Paulo, Francisco Baltazar da Silva, cumpriu o seu dever constitucional e encaminhou esse ofício à Corregedoria da PF. Ou seja: fez o que a polícia tem de fazer, mandou investigar.

O meio de campo acaba de embolar agora quando outros dois procuradores regionais da República entraram com pedido de habeas corpus para suspender as investigações – já conseguiram liminar determinando “sustar a instauração dos inquéritos policiais (…) ou para suspender seus andamentos, se já tiverem sido instaurados”. Ou seja: uma parte do Ministério Público pede a investigação de eventuais escutas telefônicas ilícitas, outra parte do Ministério Público requer a interrupção das investigações dessas supostas escutas – é o bandeirinha que pede a interrupção do jogo. A galera das arquibancadas talvez fique se perguntando: se não houver investigação, como punir os responsáveis no caso de ter havido interceptação clandestina? Se elas ocorreram e nada for investigado, a bola da arapongagem vai continuar rolando? Assim, o Ministério Público, que tem por princípio ser uno e indivisível, pediu que sejam paralisadas as investigações solicitadas pelo próprio Ministério Público. Pode-se argumentar que o período de 12 dias, nos quais a escuta telefônica se deu sem ordem judicial, não serviu de base para acusar ninguém. Não importa. Servindo ou não para acusações, a escuta sem ordem judicial é crime. E deve ser investigada.

Morto quadrilheiro – Na verdade, investigados devem ser todos e quaisquer cidadãos sobre os quais recaiam fortíssimos indícios de atos criminosos. E aí a escuta telefônica é permitida no Brasil (Lei 9296/96), desde que coberta por ordem judicial. A chamada Operação Anaconda (concluída em 17 de dezembro de 2003), organizada e executada pela Diretoria de Inteligência da Polícia Federal, acusando juízes federais de envolvimento em vendas de sentenças, valeu-se da interceptação telefônica judicialmente autorizada, mas escorregou num fato: o de utilizar esse método para produzir provas, e não para corroborar provas a partir de fortes e claros indícios já detectados, como determina a lei. As conversas grampeadas (e muitas vezes envolvendo terceiros) partiram apenas de suspeitas e viraram provas em si. Todos os acusados pela Operação Anaconda podem estar envolvidos até os ossos, e da cabeça aos pés, em atos criminosos. Mas o fato é que as “provas policiais” que foram produzidas pela escuta de telefones estão longe de incriminar algumas dessas pessoas que estão sendo acusadas de formação de quadrilha. Essas “provas” não investigadas geraram uma série de contradições e erros, a tal ponto que o policial João Guedes Tavares, falecido em 1963, foi colocado pela Polícia Federal no terceiro nível hierárquico da suposta organização criminosa, ao lado de delegados e juízes. E um inocente, Hugo Sterma, foi encarcerado por engano durante 11 dias. Grampearam o telefone errado, prenderam o Sterma e só depois descobriram que ele não era de fato o procurado: Hugo Carlette.

Através de interceptações telefônicas, a Diretoria de Inteligência da Polícia
Federal concluiu que o escritório do advogado Afonso Passarelli em São Paulo
é a base territorial de todos os envolvidos. O Tribunal Regional Federal expediu ordem de busca e apreensão nesse escritório. Tudo foi apreendido e vasculhado, tudo menos uma sala – a sala que era ocupada por Antônio Augusto César, justamente o subprocurador da República do Ministério Público Federal. Um subprocurador, estando na ativa, pode advogar? Não. Então o que esse subprocurador fazia com uma sala no escritório de advocacia apontado justamente como a base da suposta quadrilha?

Um mandado judicial de busca e apreensão tem de ser totalmente cumprido e somente um juiz de instância superior pode revogá-lo – no caso em questão, somente o Superior Tribunal de Justiça, uma vez que a ordem já era de uma desembargadora de instância superior. Pois bem: no momento em a que polícia chegou, acompanhada de uma das procuradoras que cuidam do caso da Operação Anaconda, o próprio subprocurador Antônio Augusto estava no local e a sua sala foi poupada. Em seu depoimento à Justiça, o policial Antonio Pereira da Solidade Junior, que estava presente no cumprimento da busca e apreensão, diz que “o senhor César Augusto acompanhou a diligência”. Também depondo à Justiça, o policial Élzio Vicente da Silva acrescenta que “não estava presente no momento da diligência, mas fiquei sabendo depois que as pessoas que estavam presentes entenderam” que a sala de Antônio Augusto poderia não ser averiguada. O ofício 012/2003 encaminhado ao Tribunal Regional Federal pelo delegado Emmanuel Henrique Balduino de Oliveira, que assina o relatório final da Divisão de Inteligência da PF, coloca um ponto final na questão. Assim escreveu o delegado Emmanuel: No dia em que se cumpriram os mandados de busca e apreensão, o referido procurador compareceu no escritório de Afonso Passarelli e impediu o cumprimento do mandado (…) em uma das salas sob o argumento de que a sala era sublocada ao mesmo e que qualquer medida contra ele seria de competência do Superior Tribunal de Justiça. O delegado e procuradores da República que davam cumprimento ao mandado concordaram (…) Algumas anotações em livro-caixa do esquema criminoso revelam o pagamento de valores a delegados e integrantes da quadrilha. Alguns nomes estão em código como (…) AAC, Antônio Augusto César

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Livro-caixa – Somente meses depois do cumprimento desse mandado de busca e apreensão, meses depois da prisão de diversos integrantes da suposta organização criminosa, e meses depois do afastamento dos juízes federais Casem Mazloum e Ali Mazloum de suas funções, todos denunciados por formação de quadrilha, é que o procurador Antônio Augusto César se viu às voltas com a Justiça. Eis um fato: apesar de alugar uma sala na sede dessa suposta quadrilha e de estar no livro-caixa dessa suposta quadrilha, o procurador AAC foi denunciado criminalmente, mas não o foi por formação de quadrilha. Nem teve seus bens bloqueados, como aconteceu com todos os outros envolvidos.

Dois cidadãos frequentam com extrema assiduidade as fitas e CDs das interceptações telefônicas da Operação Anaconda. Eles se chamam César Hermam e José Augusto Bellini, são policiais federais e estão presos. Hermam está sendo processado por exploração de prestígio (posar de pavão e influente valendo-se do nome de outras pessoas, quer as conheça, quer não). Bellini é vítima de si próprio, de sua enfermidade, ao desenvolver em nível patológico a sua dependência química do álcool. Há grampo no qual Bellini telefona do banheiro de uma farmácia, diz que foi comprar vaselina líquida e passa a falar coisas com duplo sentido que podem incriminar pessoas. É sobretudo a partir das conversas entre Hermam e Bellini, ou deles dois com terceiros, que algumas pessoas são envolvidas – sobretudo os juízes Casem e Ali. Volta-se aqui ao perigo do uso de escutas telefônicas como produtoras de provas, provas essas que não foram investigadas nem pela Polícia Federal nem pelo Ministério Público Federal. As conversas que foram interceptadas viraram provas em si, e ponto final.

Pesa sobre Casem Mazloum, principalmente, a acusação de ter ganho passagens de avião para o Líbano. O seu nome surge numa conversa entre Hermam e Bellini. Ouça-se o grampo e perceba-se que um se faz de faroleiro, o outro de invejoso:

Hermam – Consegui oito passagens. Executivas. Para o Casem.
Bellini – Orra, c……
Hermam – Oito!
Bellini – Tá indo pra onde?
Hermam – Ele vai para o Líbano.
Bellini – Tudo executiva…
Hermam – É bom, né?
Bellini – Orra, assim até eu…

ISTOÉ investigou as tais passagens para o Líbano. Foram compradas pelo próprio Casem, com direito à carta da agência Asfur Turismo confirmando o fato. Também contra Casem há a acusação de se valer da função de juiz para liberar um caminhão com carga irregular. Ouça-se o grampo e descubra-se o seguinte: um parente do juiz de fato lhe telefonou explicando que tivera o seu caminhão apreendido na rodovia Raposo Tavares. Casem conversa com um coronel e frisa por três vezes se alguma solução poderia ser dada de forma “legalmente”, “regular”, “legalmente”. O coronel informa que sim, uma vez que não há nenhum problema de carga, somente o licenciamento vencido do caminhão, mas que regularmente ele poderia ser liberado, desde que o dono do veículo firmasse um termo de compromisso de regulamentar a documentação no prazo de 15 dias.

O juiz Ali Mazloum não leva sorte com nomes. Numa conversa de Bellini com uma mulher, essa mulher fala que o Mário está na sala ao lado. No relatório da PF e na denúncia do Ministério Público, Mário virou Ali. Se a Polícia Federal tivesse investigado tudo o que ouviu, e não transformado os grampos em provas cabais, talvez a PF não tivesse passado por outro vexame. Numa das conversas gravadas, fala-se de um Ali que é o empresário do setor de informática Hussein Ali Jaber, que está denunciado. Pois também aí o Ali Jaber foi transformado em Ali Mazloum. Só que a PF percebeu o erro a tempo de corrigi-lo. Uma suposta quadrilha que tenha Ali como integrante não precisa de inimigos: ele negou nove vezes os pedidos de transferência da carceragem da PF para prisão domiciliar feitos por Ari Natalino, acusado de envolvimento com essa própria quadrilha. Ou seja, é no mínimo tola a acusação de que Ali teria beneficiado Natalino.

Eis mais um trecho do depoimento à Justiça do policial Solidade Junior, da Diretoria de Inteligência da Polícia Federal. No relatório final da PF ele incrimina Casem e Ali. Na Justiça ele diz:

Justiça – Foi colhida alguma prova concreta de que o acusado (Casem Mazloum) recebeu alguma quantia, algum favorecimento em troca de decisão favorável (venda de sentença)? O senhor colheu prova?
Solidade – Não.
Justiça – As informações eram checadas?
Solidade – As informações não eram checadas, como eu já falei.

Um ponto interessante nesse depoimento de Solidade à Justiça é a explicação do porquê as informações não terem sido investigadas. É mais ou menos assim: a Operação Anaconda era tão sigilosa, tão sigilosa, que ninguém investigava para não quebrar o sigilo. É como investigar de forma sigilosa um homicídio, mas não investigar a existência do cadáver para não prejudicar o sigilo.
Justiça – As informações eram checadas?
Solidade – Não (…) para não prejudicar o sigilo da operação.
Outro trecho:
Justiça – Das conversas que ele ouviu, ele pode apurar algum elemento concreto, indicativo de que o juiz Ali Mazloum recebeu alguma vantagem ilícita em troca de uma prestação jurisdicional (venda de sentença)?
Solidade – Não.

Trecho do depoimento à Justiça do policial Élzio Vicente da Silva sobre o policial César Hermam (hoje preso e cujas conversas com terceiros serviram de base para incriminar outras pessoas).
Justiça – Qual era a fama dele (César Hermam) na Polícia Federal?
Élzio – (…) bravateiro, a pessoa que alegava ter facilidades que não tinha (…) outros acreditavam que era uma pessoa bem relacionada (…)

Trecho de depoimento à Justiça do delegado José Augusto Bellini:
Bellini – (…) não é demagogia não, quero agradecer à senhora (desembargadora) esse tempo que eu estou preso (…)
Justiça – Por quê?
Bellini – Porque eu me livrei dessa bebida. Eu tomo meus remédios à risca, não tenho vontade, agora (…) eu preciso (…) fazer exercícios (…) de eu correr, de eu andar, de eu ser melhor cuidado (…) agora se eu puder sair é bem melhor.


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