Bem antes dos descobrimentos, a palavra Brasil já era frequente nos mapas dos grandes cartógrafos. Referia-se a uma ilha imaginária e afortunada que, a cada sete anos, se esboçava na densa bruma dos nevoeiros a Sudoeste da Irlanda. De raízes célticas, Brasil não tinha nenhuma relação com a árvore de madeira avermelhada que mais tarde deu nome à Terra Papagalli. Esta história imaginosa poderia servir de introdução à mostra O tesouro dos mapas – a cartografia na formação do Brasil, que na segunda-feira 27 inaugura o Santos Cultural, em São Paulo. Através de 220 mapas e instrumentos de navegação, a exposição faz uma completa genealogia da representação do País no progressivo desenho do mundo, desde a época em que era apenas uma fantasia na cabeça dos cartógrafos medievais.

As peças datadas do século XV em diante fazem parte da Cid Collection, acervo de três mil itens que o banqueiro Edemar Cid Ferreira vem acumulando há mais de 30 anos. Destacam-se mapas valiosíssimos, como cinco cartas-portulanos dos séculos XVI e XVII, três delas desenhadas pela família Oliva. São objetos raríssimos que por si valem uma visita ao andar térreo da nova sede do Banco Santos. Destinadas a reis e mercadores, eram peças únicas feitas à mão sobre pergaminho animal e ornamentadas com detalhes em ouro. Foram adquiridas por Ferreira há cinco anos em coleções particulares da Inglaterra, da França e dos Estados Unidos, tornando-se, obviamente, a menina-dos-olhos do colecionador, um aficionado pelo assunto que, aos 17 anos, adquiriu seu primeiro mapa retratando as Capitanias Hereditárias. “Temos sempre algumas preferências, mas o grande gol é o conjunto”, afirma Ferreira.

Sem dúvida, trata-se de um acervo invejável, o maior do Brasil nas mãos de um particular. Segundo o curador e historiador paulista Paulo Miceli, praticamente todos os grandes nomes da cartografia italiana, flamenga, holandesa, francesa, inglesa e alemã estão representados. Para dar um tom didático e atraente ao patrimônio, o curador imaginou quatro módulos idealizados por Rodrigo Pederneiras, diretor artístico do Grupo Corpo, dispostos num trajeto delimitado por longas cortinas. Na primeira sala, As imagens do mundo, toda negra, encontram-se maquetes de navios dos séculos XVIII e XIX e uma série de mapas que contam a história da cartografia. É onde podem ser vistos, além das cartas-portulanos, um raríssimo atlas-portulano veneziano de 1673 – com quatro cartas manuscritas por J. Fr. Roussin – e o mais antigo mapa da mostra, Secunda etas mundi, de 1493, de Hartman Shedel. Impressa em xilografia, a raridade é ladeada por desenhos de seres monstruosos, por indicações do movimento dos ventos através dos clássicos rostos soprando e pelos três filhos de Noé.

Depois de passar pelo luxo do segmento dedicado aos instrumentos de navegação – onde se destacam cópias de dois globos encomendados ao italiano Vincenzo Coronelli pelo rei da França Luís XIV –, o visitante percorre um corredor em ziguezague, cujas paredes estampam mapas e atlas que vão focando a representação do mundo e a progressiva inclusão da América. A curiosidade fica por conta do mapa Meridionalis Americae pars (c.1592-1610), de Petrus Plancius, que mostra detalhes de canibalismo e puxa o Rio da Prata para a direita, favorecendo assim a coroa portuguesa. Logo em seguida, do alto do mezanino, tem-se a visão de uma ampla sala branca intitulada A última terra – o desenho do Brasil, reunindo mapas do País pela ótica dos mais importantes cartógrafos dos séculos XVI ao XIX. Da visão quase ingênua do italiano Giovanni Battista Ramusio – que desenhou o Brasil em 1557, mostrando a Oeste uma “terra non discoperta” com um vulcão em erupção – ao Nordeste imaginado pelo holandês Georg Markgraf, integrante da corte de Maurício de Nassau, as raridades funcionam como uma fascinante aula de história.