01.jpg
FIM INESPERADO
Afonso Coelho com a família: fugitivo da lei, ele terminou morto pela mulher

O homem do cavalo branco. O Robin Hood dos sertões. A raposa do triângulo mineiro. O herói das mil notícias. Eram muitos os apelidos de Afonso Coelho, tido como o maior estelionatário da República Velha, período que vai da proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, ao golpe de 1930. Nascido em 1875 no atual Mato Grosso do Sul, ele fez fama em todo Brasil e no Exterior dando golpes em comerciantes de grandes cidades, sendo preso em algumas ocasiões e protagonizando fugas espetaculares. Na época, suas histórias encheram páginas de jornais e foram tema de poemas e crônicas de pessoas como Olavo Bilac e Monteiro Lobato. O tempo, porém, se encarregou de apagá-lo da memória dos brasileiros. Mas um novo livro, que nasceu por acaso, resgata as peripécias do malandro. “Estava levantando a história da família da minha mulher na cidade de Coxim, em Mato Grosso do Sul, quando cruzei com um documento que contava alguns dos casos de Afonso Coelho”, diz o autor Ely Paiva. “Eram histórias boas demais para ignorar”, afirma ele, que é professor de engenharia mecatrônica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e, nas horas vagas, historiador e correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul (IHGMS).

Talvez uma das melhores histórias recuperadas por Paiva seja a da fuga – foram mais de dez – de Coelho a cavalo em plena praça da República no Rio de Janeiro e que dá título à sua obra, batizada de “O Homem do Cavalo Branco” (Ed. Documenta Histórica, 2012). Rica em detalhes, ela revela a audácia de Coelho e ajuda a construir um retrato da vida no Rio do século XIX. O episódio aconteceu numa quarta-feira à tarde, no dia 19 de maio de 1897. Coelho, então preso no Rio, voltava da Câmara Criminal para a carceragem com escolta de dois policiais depois de participar de uma audiência. Como todos reclamavam de fome, o golpista, que já havia conquistado seus algozes no convívio diário, fez a sugestão de que todos parassem no Hotel Caboclo para comer. Os policiais, surpreendentemente, concordaram. Depois de muito vinho verde e cerveja, os agentes da lei, é claro, se distraíram e perderam o estelionatário de vista. Pouco depois o golpista surgiu no meio da rua, montado em um cavalo branco em disparada. Ele foi do centro do Rio a Inhaúma, percorrendo cerca de 12 quilômetros a galope. Foi a fuga mais extraordinária de sua carreira no crime. Nos dias seguintes, fala-se que Coelho voltou ao centro da cidade, disfarçado de padre, para ouvir os comentários sobre ele.

03.jpg

“Histórias como essa levantam perguntas importantes”, diz Paiva. “Que policiais eram esses que param para comer com um homem perigoso como ele?”, questiona o autor. Nas pesquisas que fez, Paiva constatou que os policias de então eram, em sua grande maioria, analfabetos e recebiam salário quase simbólico por seu trabalho. Eles não tinham treinamento para lidar com alguém tão manipulador como Coelho. “São coisas que você acaba descobrindo por causa da história da fuga, mas que dão uma noção de como era a vida naquela época”, diz. O mesmo aconteceu quando Paiva se debruçou sobre detalhes dos golpes que levaram o estelionatário a ser preso outras nove vezes. Nas suas artimanhas, ele quase sempre se valia da confiança de empresas e comerciantes para roubar. “O comércio não era formalizado como é hoje nem as leis tipificavam crimes de colarinho branco tão claramente”, diz o pesquisador. Coelho era conhecedor das brechas do rudimentar Código Penal da época e sabia explorá-las. “No fim ele ficou com fama, merecida, de um refinado golpista”, afirma.

Fama que lhe rendeu não só matérias e crônicas na imprensa, mas também versões de suas histórias no formato folhetim, que conquistou o Brasil com a popularização dos jornais diários. Não tardou para que a realidade se confundisse com a ficção e muitos de seus golpes ganhassem dimensões gigantescas. Coelho adorava a atenção e ganhou o apelido de “O herói das mil notícias” nessa época, quando chegava a mandar notas feitas por ele mesmo aos jornais descrevendo suas peripécias. A polícia, principalmente a do Rio de Janeiro, ficava furiosa. Afinal, em muitas ocasiões ela saía humilhada, ora pela incompetência de seus funcionários, ora pela astúcia do golpista. A busca das autoridades por ele foi implacável e, mesmo conseguindo fugir, ele sentiu o peso da mão do Estado, pois tinha de mudar de cidade sempre e, a certa altura, chegou a passar pelo Uruguai e a Argentina, onde também praticou crimes. A vida particular sofreu, embora ele tenha conseguido se casar duas vezes e ter cinco filhos.

02.jpg
RETRATO
O autor Ely Paiva: trajetória do golpista ajuda a entender
o Brasil do final do século XIX e início do século XX

“É complicado estudar uma figura dessas por que, com golpes em muitos lugares e fama, pode ser difícil distinguir entre fato e ficção”, diz Paiva. Numa forma de se precaver, o autor optou por identificar o livro como um “romance reportagem”, embora mais de 95%, segundo ele, sejam fatos comprovados por mais de uma fonte da época. Curiosa foi a morte trágica do “gatuno”, como os jornais o chamavam. Coelho morreu aos 47 anos, assassinado pela mulher, Silvia Rangel, com quem teve cinco filhos. Ele queria vender propriedades e seguir para o México, onde continuaria sua carreira de golpista. Ela era contra e, numa discussão, atirou nele. Sua morte foi anunciada em quase todos os jornais, como ele certamente gostaria de ter visto.

Fotos: reprodução