Se cada uma das seis bilhões de pessoas da Terra tivesse computador, celular e carro, consumisse a mesma quantidade de água, de cereais e de energia que os americanos, seriam precisos quatro planetas para dar conta do recado. O desperdício, aliado à exploração predatória, deixou o mundo perto do esgotamento e criou um abismo entre ricos e pobres. “Enquanto o consumo e a produção continuaram em ritmo febril, pessoas demais foram deixadas para trás na pobreza, na miséria e no desespero”, diagnosticou o secretário-geral das Nações Unidas (ONU), Kofi Annan, na quarta-feira 4, ao encerrar a Rio +10, Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável. Reunidos em Johannesburgo, África do Sul, durante dez dias, 109 chefes de Estado, ambientalistas, empresários e diplomatas de 190 países debateram até alta madrugada as soluções e os objetivos concretos para suprir as necessidades básicas da população mundial, sem esgotar os finitos recursos naturais do planeta.

Sobre os cinco temas definidos pela ONU como prioritários (água e saneamento, biodiversidade, energia, saúde e agricultura), pouco de prático foi resolvido no encontro. Antes incompatíveis como água e azeite, os ecologistas afeitos a previsões catastróficas e os governantes e líderes empresariais sempre em busca de soluções pragmáticas subiram no mesmo palanque. As evidências científicas deixam pouca dúvida de que o impacto das ações humanas – entre elas o desmatamento, o uso de combustíveis poluentes e a urbanização que degrada as terras agrícolas – produziu consequências inquestionáveis, como a elevação da temperatura, o esgotamento das reservas de água e a ameaça de extinção de um quarto dos mamíferos.

Maior poluidor do mundo, os Estados Unidos atraíram grande parte das queixas. O país se recusou a fixar metas para cumprir quaisquer compromissos, seja para reduzir poluentes, seja para ampliar o uso de fontes de energia alternativas ao petróleo. O resultado foi alto e claro aos ouvidos do secretário de Estado americano, Colin Powell, obrigado a interromper diversas vezes seu discurso, de apenas cinco minutos. Os gritos e as vaias dominaram o auditório da conferência logo que Powell reclamou da recusa africana em aceitar a doação de milho americano modificado geneticamente. A balbúrdia foi tanta que 13 manifestantes foram retirados à força enquanto Powell, que representava o ausente presidente George W. Bush, tentava salientar a intenção dos Estados Unidos de financiar projetos que visem conservar o meio ambiente.

Era mais um sinal da crescente onda antiamericana, embora os EUA não fossem os únicos vilões em Johannesburgo. Um dos negociadores da delegação brasileira apontou os europeus como responsáveis por obstruir a discussão de vários temas polêmicos. A União Européia jogou duro na briga para reduzir os US$ 300 milhões pagos em subsídios agrícolas a seus produtores, o que tornaria competitivos os produtos dos países mais pobres, disse Fábio Feldmann, o interlocutor da Presidência da República. A falta de acordos concretos na Rio +10 não foi surpresa. Nas reuniões preparatórias durante o ano não havia indicação de consenso. “Johannesburgo não é o fim de tudo, e sim o começo”, amenizou Annan, que convidou o presidente FHC para integrar, ao fim de seu mandato, uma comissão da ONU sobre desenvolvimento sustentável.

“Perdemos uma grande oportunidade para tomar decisões concretas”, resumiu Garo Batmanian, secretário-geral da organização ambientalista WWF (Fundo Mundial para a Natureza) do Brasil. Uma das mais ativas lideranças mundiais, o ex-ministro do Meio Ambiente holandês, Jan Pronk, contou que, até a última noite, os delegados trabalharam para reforçar os avanços alcançados na Eco-92, que ocorreu no Rio de Janeiro há dez anos, deixando pouco tempo para discutir a implementação dos acordos futuros. Os países se mostraram preparados para discutir, mas não mostraram a mesma disposição para colocar as idéias em prática. O perdedor foi o planeta.

Nas negociações sobre energia, a principal bandeira nacional, houve um claro retrocesso. O Brasil sugeria que até 2010 um décimo da energia viria de fontes renováveis como o Sol, os ventos, o mar e o álcool da cana-de-açúcar. Alinhada à posição brasileira, a União Européia propunha 15% no mesmo prazo. O texto final aconselhou os países a desenvolver energias limpas, embora não fixe datas ou objetivos específicos, nem detalhe punições no caso de não-cumprimento, e inclui na conta as usinas nucleares e as hidrelétricas, apesar de seu forte impacto ambiental. Nesse quesito, falaram mais alto os interesses dos Estados Unidos, do Japão, da Austrália, da Índia, da China e dos países exportadores de petróleo, Arábia Saudita à frente.

O Brasil ocupou a liderança ainda na preservação da biodiversidade. Os países concordaram em frear, até 2010, o ritmo de devastação das florestas. O acordo não especifica como isso será feito, mas algumas iniciativas regionais importantes foram assinadas. No Oriente Médio, Israel e Jordânia somaram esforços e investimentos de US$ 800 milhões para impedir que o Mar Morto seque, uma vez que seu nível tem caído um metro por ano. O acordo prevê a implantação de uma rede de 320 quilômetros para drenar água marinha de outras fontes.

Amazônia – O Fundo Ambiental Mundial (GEF), o Banco Mundial e a WWF firmaram com o governo brasileiro um programa para preservar 12% da Amazônia, três vezes mais do que está hoje sob proteção federal. O projeto, de US$ 395 milhões, deve levar dez anos para virar realidade. Na primeira fase, serão criados 90 mil quilômetros quadrados de áreas protegidas e outras 90 mil destinadas ao uso sustentável, que promovam o progresso socioeconômico das comunidades locais, sem desmatamento. A idéia é proteger meio milhão de quilômetros quadrados na Amazônia, quase o tamanho da Bahia.

Não é a primeira vez que a parceria entre a organização WWF e o governo dá resultados. Em agosto, foi inaugurado no Amapá o Parque Nacional do Tumucumaque, que significa “pedra no alto da montanha” no dialeto das tribos indígenas Apalaí e Wayana. Com 38,8 mil quilômetros quadrados, o parque é a maior área protegida de floresta tropical do mundo. As reservas florestais não são vitais somente para preservar a biodiversidade. Segundo pesquisadores, seu valor econômico total, que vai do desenvolvimento sustentável ao montante relacionado à manutenção do clima e dos recursos hídricos, poderia chegar a US$ 4,4 trilhões ao ano.

A questão do aquecimento global, pomo de discórdia entre os americanos e o restante das nações presentes à Rio +10, deu um passo importante, mas ainda incerto. Nos últimos dias da cúpula, o Canadá e a Rússia acenaram com a possibilidade de ratificar o Protocolo de Kyoto até o final do ano. Com a adesão russa, o acordo entra definitivamente em vigor. Com isso, os EUA se veriam isolados. “É bom frisar que a Rússia ainda não assinou nada”, adverte Garo Batmanian.

No propalado item de combate à pobreza, o acordo de Johannesburgo prevê a redução pela metade, até 2015, do número de pessoas sem saneamento básico. Cerca de 1,1 bilhão de pessoas hoje não têm acesso a água potável, um dos vetores das doenças que todos os dias matam mais de 30 mil crianças antes que elas completem cinco anos. Muitos índices globais melhoraram nesses dez anos desde a Eco-92, mas poucos criaram tamanho abismo quanto os índices de pobreza, em particular na África. Para aplacar a miséria, as nações ricas prometeram investir US$ 1 bilhão em programas de desenvolvimento. Também se estipulou que, até 2020, os agrotóxicos e outros produtos químicos lançados como dejeto sem tratamento pelas indústrias sejam empregados de forma a não prejudicar o ambiente. E que as áreas de pesca mais ameaçadas pela atividade humana sejam restabelecidas até 2015.

As nações ricas reafirmaram sua intenção de destinar 0,7% de seu Produto Interno Bruto (PIB) aos países em desenvolvimento. Para isso, seria preciso criar um fundo mundial de combate à pobreza. “É uma boa idéia, mas difícil de ser implementada em escala mundial”, comenta Marcelo Neri, economista do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo. Segundo Neri, seria preciso criar um mecanismo de controle para garantir que as verbas fossem destinadas de fato à erradicação da pobreza.

Vida fora da Terra – Um dos progressos mais evidentes da última década se deve ao avanço do conhecimento científico sobre a degradação da natureza. Ganhador de dois prêmios Pulitzer, o escritor e biólogo americano Edward O. Wilson, autor de O futuro da vida, aponta a China como um caso exemplar desse esgotamento natural para suprir os hábitos de consumo. “Se todo o mundo concordasse em ser vegetariano, os atuais 1,4 bilhão de hectares de terra arável serviriam para fornecer alimento e água a 16 bilhões de pessoas”, calcula Wilson.

Com um quinto da população do globo, a China deve chegar a 2030 com 1,6 bilhão de habitantes. Embora sejam grandes produtores mundiais de grãos, os chineses consomem mais do que podem colher. Se o apetite chinês continuar mais voraz do que sua capacidade produtiva, os reflexos virão no preço alto cobrado pelas demais nações exportadoras de grãos (EUA, Canadá, Argentina, Austrália e União Européia). Para agravar, a escassez de água já afeta 300 das 617 cidades chinesas, enquanto a industrialização e o poder econômico, franqueados pela globalização, não sofrem nenhum recuo. Para o cientista Wilson, a única saída para reverter o quadro previsível de esgotamento natural está no avanço científico. Se não houver gente disposta a alterar seus padrões de consumo, a alternativa seria aproveitar a energia do Sol e estender os domínios humanos para outros planetas vizinhos à já esgotada Terra.