Imagine você ser preso pelo crime de ter copiado e emprestado para um amigo a deliciosa receita de bolo de chocolate de sua avó. Impensável, não? Afinal, é apenas uma receita, e todos têm o direito de conhecê-la. O mesmo deveria acontecer com os programas de computador, diz o americano Richard Stallman, 49, fundador da Free Software Foundation (Fundação do Software Livre), entidade que defende o uso dos chamados programas abertos, softwares que podem ser utilizados, copiados, distribuídos e modificados por qualquer pessoa, para qualquer propósito, sem pagar direito autoral. Stallman criou em 1984 o sistema operacional livre que hoje é sucesso no mundo todo, o GNU/Linux, conhecido apenas por Linux, um dos mais fortes concorrentes do Windows, da Microsoft. Sistema operacional é o programa que controla todas as funções de um computador. O GNU/Linux foi baseado no Unix, sistema criado no final da década de 60 para ser utilizado em grandes computadores, hoje conhecidos como servidores. O Linux, na verdade, é o nome de um programa específico criado pelo programador finlandês Linus Torvalds em 1991. Juntaram-se os dois trabalhos e Torvalds levou a fama de criador de tudo. No início da era do computador, todos os programas eram livres, ninguém pagava nada por eles. Essa situação começou a mudar em 1976, quando Bill Gates, que recém-fundara a Microsoft, publicou a carta aberta em que lançava a idéia de que todo programa deveria ser pago e protegido por leis de direito autoral. Do contrário, seria o mesmo que roubo. Só que desde então os programas ficaram cada vez mais caros e hoje muitos deles chegam a custar mais do que os próprios computadores. Os programas livres pretendem acabar com isso, pois custam pouco. Em alguns casos, são até gratuitos. No entanto, eles não são perfeitos. Como o próprio Stallman admite, o seu uso ainda é difícil: “Não tente instalar o sistema sozinho”, diz. Isso faz com que muitos usuários ainda optem pelo Windows. Formado em física pela Universidade de Harvard, em 1974, Stallman deu início à sua pregação pela liberdade no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Ele veio ao Brasil na semana passada participar do lançamento do uso de programas livres de direito autoral nos Telecentros de São Paulo, locais onde os paulistanos podem navegar na internet e aprender informática de graça. A iniciativa vai representar uma economia de meio milhão de reais aos cofres da cidade até o final deste ano e cerca de R$ 2,5 milhões em 2003. A seguir, leia trechos da entrevista:

ISTOÉ – Por que os programas livres não se tornaram populares entre os usuários domésticos, ao contrário das empresas?
Richard Stallman –
Usuário doméstico quer interfaces gráficas. Nosso sistema é baseado no Unix, que não tem esse tipo de facilidade. Começamos a criar o GNU em 1984, mas demorou até o sistema funcionar. Em 1991, Linus Torvalds criou o Linux, o que completou nosso trabalho. O primeiro esboço do sistema operacional ficou pronto entre 1992 e 1993. Ainda não havia interfaces gráficas, e levamos vários anos desenvolvendo uma que fosse fácil de usar. É o que temos agora.

ISTOÉ – Qual sua relação com Torvalds? Vocês trabalham juntos?
Stallman –
Linus e eu nunca trabalhamos juntos, ele nunca se interessou pelo nosso projeto. Desenvolveu apenas uma parte do programa e durante todo o tempo nunca nos contou o que estava fazendo. As pessoas tendem a chamar todo o sistema de Linux, apesar de ele ser muito mais GNU. Isso causa muita confusão.

ISTOÉ – O Windows é um sistema fácil de usar. Podemos pensar em um mundo sem ele, ou sem os programas de escritório, como Word e Excel?
Stallman –
O Windows não é realmente tão fácil de usar, não exagere. Não é particularmente um bom sistema, a única coisa que ele oferece é inércia. Muitas empresas o usam e pressionam as pessoas a fazer o mesmo. É por isso que os usuários domésticos continuam comprando o Windows, porque já têm o costume de usá-lo. Eles não percebem que, a longo prazo, é insensato continuar a usá-lo porque você fica prisioneiro dele.

ISTOÉ – Qual sua opinião sobre o futuro da computação?
Stallman –
Sou ativista e programador. Só posso falar sobre a batalha que ocorre no presente. A Microsoft faz o que pode para desestimular o uso de programas livres. A sociedade terá que escolher entre a liberdade e a dominação da Microsoft.

ISTOÉ – Como a Microsoft exerce esse domínio sobre o mercado?
Stallman –
Uma das coisas que eles fazem é dar licenças de graça para as escolas, assim podem ensinar às crianças como usar o Windows. Quando elas crescerem, usarão o Windows. É extremamente importante ensinar a elas o uso dos programas livres, para não serem dependentes do Windows quando crescerem. As escolas deveriam ensinar as crianças a ter o hábito de copiar e compartilhar programas. Isso é cidadania. Mas é ilegal fazer isso com programas que possuem direitos autorais. Não é errado, mas é ilegal.

ISTOÉ – Os PCs com programa livre já instalado seriam a saída para conquistar o usuário doméstico?
Stallman –
Seria muito bom alguém vender aos brasileiros computadores com programas livres já instalados. Na realidade, soube que há no Brasil uma lei que diz que todo computador tem de ser vendido com um sistema operacional embutido. É realmente estranho que um país deixe passar uma lei que sirva apenas para uma empresa estrangeira. O único beneficiário desta lei é a Microsoft. Isso me parece uma medida feita para um monopólio. As empresas têm de oferecer uma alternativa. O Brasil pode economizar até US$ 1 bilhão por ano com os sistemas livres.

ISTOÉ – O GNU/Linux não é difícil de aprender e instalar?
Stallman –
Não, porque a interface gráfica funciona muito bem hoje e é fácil de entender. A instalação ficará mais fácil, mas será uma mudança gradual. O problema é: não tente instalar o sistema sozinho. Em vez disso, ache alguém que saiba como fazê-lo. Em vez de ter trabalho tentando fazer isso por conta própria, peça ajuda, somos uma comunidade, as pessoas ajudam umas às outras.

ISTOÉ – Então, devemos retornar aos primórdios da computação?
Stallman –
De certa forma, o antigo às vezes é bom. Impedir as pessoas de compartilhar programas com seu vizinho não é progresso.