19/10/2012 - 21:00
PROVOCATIVO
Graciliano Ramos achava a “língua do Nordeste” pobre: “dialeto horrível para a escrita”
Pensamentos e visões de mundo têm como limite o horizonte cultural de sua época. Por isso, não são eternos, mudam. O perigo, ao se fazer uma leitura contemporânea das ideias tornadas públicas por um autor no passado, é esquecer que o contexto em que ele opinou sobre determinado assunto era outro. Após a polêmica em torno do possível racismo de Monteiro Lobato, um risco semelhante paira agora sobre outro escritor, entre os menos visados: o alagoano Graciliano Ramos, cuja obra sempre se pautou pela denúncia e pelo combate das mazelas sociais. A pretexto da comemoração de seus 120 anos de nascimento, no sábado 27, chega às livrarias uma compilação de textos pouco divulgados de sua autoria, alguns nunca vindos a público. Entre os 81 contos, discursos, cartas, crônicas, epigramas e ensaios de “Garranchos – Achados Inéditos de Graciliano Ramos” (Record), aparece o curto estudo “O Negro no Brasil”, datado do final dos anos 1930. Ao assumir a defesa dos negros, Graciliano desanca o mulato, pintado como traidor das origens. Condena o seu “embranquecimento” e estende a pena ferina também aos índios: “Quando não se julgavam suficientemente clareados, os mulatos sempre se disseram caboclos, descendentes de uma raça de civilização inferior à de seus pais, mas que não tinha suportado a escravidão. Numa época em que a mania nacionalista fazia toda a gente se orgulhar de ter sangue índio, isso os aproximava dos brancos.”
A leitura atenta desse ensaio, contudo, alinha elementos de sobra contra a acusação apressada de racismo por parte do autor de “Vidas Secas” e “Memórias do Cárcere”. Esse é o limite de nossa época politicamente correta: grandes polemistas como Graciliano ou férteis ficcionistas como Lobato são hoje lidos com a lupa paranoica do policiamento. Organizador do livro, o doutor em letras Thiago Mio Salla, que passou sete anos folheando jornais empoeirados e pesquisando em mais de dez instituições do País, sabia desse risco e, por isso, escreveu 13 esclarecedoras notas de rodapé. “Trata-se de um texto polêmico, com afirmações contundentes para os dias de hoje.
Ele precisa ser lido com todo critério para que não se cometam equívocos de avaliação”, diz Salla. Segundo ele, escritos como esse e outros produzidos durante a militância política de Graciliano no Partido Comunista Brasileiro revelam um intelectual “atuante, que toma partido e não foge à luta ao se defrontar com as principais questões literárias e sociais de seu tempo”. Ou seja: são uma afirmação de sua voz no grande diálogo nacional – e a situação do negro estava na ordem do dia com a publicação de “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre.
A veia mordaz do polemista é mais enfática na crítica literária, quando sai em defesa do “romance de 30”, de tendência regionalista. O modelo é o de Jorge Amado e José Lins do Rego, que “abandonaram os salões e as florestas de pano pintado e foram ver como se comportavam os trabalhadores do eito, os presos, os retirantes, os vagabundos, os criminosos, as prostitutas, os funcionários públicos e as crianças das escolas.” Apesar disso, Graciliano votou contra João Guimarães Rosa em um concurso literário – o romancista mineiro concorria com o livro de contos “Sagarana”, sob o pseudônimo de Viator. Mas reconheceu-lhe méritos: “Ele é um animalista notável. Certo os seus animais são criaturas humanas, como os de numerosos escritores que se ocupam de bichos falantes e pensantes.”
Além de um conto da juventude (“O Ladrão”) e de uma peça de teatro inacabada (“Ideias Novas”), a título de curiosidade o livro traz comunicados da Associação Brasileira de Escritores, que o escritor presidiu no final da carreira, como o que condena a guerra bacteriológica dos EUA contra a Coreia. Ainda assim, é um “garrancho” que de mal escrito não tem nada.
Fotos: ARQUIVO AG. ESTADO; correio braziliense; Luiz Prado/ap photo