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PROVOCATIVO
Graciliano Ramos achava a “língua do Nordeste” pobre: “dialeto horrível para a escrita”

Pensamentos e visões de mundo têm como limite o horizonte cultural de sua época. Por isso, não são eternos, mudam. O perigo, ao se fazer uma leitura contemporânea das ideias tornadas públicas por um autor no passado, é esquecer que o contexto em que ele opinou sobre determinado assunto era outro. Após a polêmica em torno do possível racismo de Monteiro Lobato, um risco semelhante paira agora sobre outro escritor, entre os menos visados: o alagoano Graciliano Ramos, cuja obra sempre se pautou pela denúncia e pelo combate das mazelas sociais. A pretexto da comemoração de seus 120 anos de nascimento, no sábado 27, chega às livrarias uma compilação de textos pouco divulgados de sua autoria, alguns nunca vindos a público. Entre os 81 contos, discursos, cartas, crônicas, epigramas e ensaios de “Garranchos – Achados Inéditos de Graciliano Ramos” (Record), aparece o curto estudo “O Negro no Brasil”, datado do final dos anos 1930. Ao assumir a defesa dos negros, Graciliano desanca o mulato, pintado como traidor das origens. Condena o seu “embranquecimento” e estende a pena ferina também aos índios: “Quando não se julgavam suficientemente clareados, os mulatos sempre se disseram caboclos, descendentes de uma raça de civilização inferior à de seus pais, mas que não tinha suportado a escravidão. Numa época em que a mania nacionalista fazia toda a gente se orgulhar de ter sangue índio, isso os aproximava dos brancos.”
A leitura atenta desse ensaio, contudo, alinha elementos de sobra contra a acusação apressada de racismo por parte do autor de “Vidas Secas” e “Memórias do Cárcere”. Esse é o limite de nossa época politicamente correta: grandes polemistas como Graciliano ou férteis ficcionistas como Lobato são hoje lidos com a lupa paranoica do policiamento. Organizador do livro, o doutor em letras Thiago Mio Salla, que passou sete anos folheando jornais empoeirados e pesquisando em mais de dez instituições do País, sabia desse risco e, por isso, escreveu 13 esclarecedoras notas de rodapé. “Trata-se de um texto polêmico, com afirmações contundentes para os dias de hoje.

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Ele precisa ser lido com todo critério para que não se cometam equívocos de avaliação”, diz Salla. Segundo ele, escritos como esse e outros produzidos durante a militância política de Graciliano no Partido Comunista Brasileiro revelam um intelectual “atuante, que toma partido e não foge à luta ao se defrontar com as principais questões literárias e sociais de seu tempo”. Ou seja: são uma afirmação de sua voz no grande diálogo nacional – e a situação do negro estava na ordem do dia com a publicação de “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre.

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A veia mordaz do polemista é mais enfática na crítica literária, quando sai em defesa do “romance de 30”, de tendência regionalista. O modelo é o de Jorge Amado e José Lins do Rego, que “abandonaram os salões e as florestas de pano pintado e foram ver como se comportavam os trabalhadores do eito, os presos, os retirantes, os vagabundos, os criminosos, as prostitutas, os funcionários públicos e as crianças das escolas.” Apesar disso, Graciliano votou contra João Guimarães Rosa em um concurso literário – o romancista mineiro concorria com o livro de contos “Sagarana”, sob o pseudônimo de Viator. Mas reconheceu-lhe méritos: “Ele é um animalista notável. Certo os seus animais são criaturas humanas, como os de numerosos escritores que se ocupam de bichos falantes e pensantes.”

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Além de um conto da juventude (“O Ladrão”) e de uma peça de teatro inacabada (“Ideias Novas”), a título de curiosidade o livro traz comunicados da Associação Brasileira de Escritores, que o escritor presidiu no final da carreira, como o que condena a guerra bacteriológica dos EUA contra a Coreia. Ainda assim, é um “garrancho” que de mal escrito não tem nada.

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Fotos: ARQUIVO AG. ESTADO; correio braziliense; Luiz Prado/ap photo