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Milhares de soldados do Exército brasileiro são enviados para combater uma revolta de caboclos incentivados por um líder messiânico. Deu-se assim a Guerra de Canudos (1896/97), mas essas poucas linhas também poderiam resumir outra passagem histórica muito menos explorada: a Guerra do Contestado, cuja primeira batalha completa 100 anos em outubro. As lutas sangrentas que mancharam a divisa entre o Paraná e Santa Catarina durante quatro anos não provocaram a mesma comoção que os confrontos narrados em “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. No entanto, vêm ganhando visibilidade e vão contribuir muito para isso as “Memórias” do general Vieira da Rosa, guardadas durante décadas pelo Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e publicadas agora em parceria com o Ministério Público do Estado. O militar que combateu os revoltosos no front fez de seus relatos uma contundente denúncia dos desmandos dos governantes e do drama vivido nos dois lados. Lições que, se tivessem sido ouvidas antes, poderiam ter evitado as mais de dez mil mortes ocorridas.

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 Vieira da Rosa (1869-1957) chegou ao posto de general, mas serviu no Contestado como capitão. Trazia no currículo a participação na Revolução Federalista de 1893, no Rio Grande do Sul, e se destacava na caserna pela grande erudição. Segundo ele, no conflito “viu-se um derramar de torrentes de sangue patrício, a confissão de inépcia de nossas forças armadas, a covardia de chefes militares e a falta de preparo profissional”. O desconhecimento do Exército de dados básicos como a topografia da região e as estratégias dos inimigos são apontadas em seus escritos. Dessa forma, combates que inicialmente se mostravam desastrosos para as forças oficiais só fortaleciam a fé dos fanáticos que adoravam o monge José Maria, uma espécie de Antônio Conselheiro de então, morto logo no início da revolta. Em muitos momentos, as emboscadas dos valentes caboclos davam ideia de que o protetor operava mesmo milagres. Com tropas famintas em árduas caminhadas pela mata, era difícil enfrentar os rebeldes. Por falta de treinamento, soldados pareciam às vezes atirar a esmo. Assim Vieira da Rosa descreve o efeito do fogo amigo: “Os soldados, sem ordem, atiravam uns sobre os outros, na sofreguidão de chegar ao inimigo ou na ânsia de gastar a munição, que lhe pesava na patrona.” Sob os pinheirais só se viam horrores, muitos praticados pelos jagunços: “À margem de um arroio limpíssimo estavam 12 mulheres mortas a facão, e que golpes, santo Deus, de tirar o occipital inteiro. Os abutres e os guaraxains já haviam limpado de toda a carne aqueles pobres corpos.”

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 O Contestado ganhou esse nome devido à disputa territorial entre os dois Estados sulistas, com a vitória de Santa Catarina no Supremo Tribunal Federal. A maior motivação do conflito, entretanto, foi a entrega das terras pleiteadas à companhia que construía uma estrada de ferro interestadual. Na época, o Exército ainda combatia ao toque da corneta, mas há registros de que aviões foram usados. Vieira da Rosa, que mais tarde apoiaria o tenentismo, apontava a frivolidade da elite como a culpada pela carnificina. De origem açoriana, ele defendia os nativos: “Eu sou pelo caboclo.” Via neles um exemplo de moralidade, hospitalidade e pureza de costumes. “O erro dos governos, das religiões, das sociedades e o das simples individualidades tem sido em todos os tempos a intolerância. Ela fez, faz e fará derramar muito sangue”, conclui.  

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Foto: Arquivo histórico do exército / instituto histórico e geográfico de Santa Catarina