Uma ameaça silenciosa e na maior parte das vezes invisível, o lixo tóxico lançado pelas chaminés e pelos dutos das empresas permanece um dilema ambiental insolúvel. Na semana passada, enquanto delegações do mundo todo debatiam o futuro do planeta em Johannesburgo, o governo da Índia tentava amenizar a culpa da fabricante de agrotóxicos Union Carbide, que há 18 anos protagonizou o maior acidente químico da história, deixando um rastro de três mil mortos entre os 90 mil habitantes da cidade indiana de Bhopal. Se dependesse do governo da Índia, em vez de homicídio, a empresa americana responderia apenas pela acusação de negligência. Diante da gritaria dos manifestantes e do coro dos ambientalistas, a Justiça rejeitou a manobra indiana, mas deixou à mostra a dificuldade hercúlea em punir os culpados pelas contaminações químicas. No Brasil, um verdadeiro barril de pólvora está aceso 24 horas por dia dentro de um dos maiores complexos urbanos do País, o Pólo Industrial da Baixada Fluminense, no quintal do Rio de Janeiro. Num emaranhado de 200 fábricas erguidas em torno das cidades de Duque de Caxias, Belford Roxo, São João do Meriti e Queimados, diariamente são despejadas toneladas de resíduos tóxicos por terra, mar e ar, expondo funcionários, moradores e o meio ambiente a um impacto sem precedentes.

O cardápio de agressões inclui contaminação por benzeno, chumbo, zinco e mercúrio, derramamento de óleo na Baía de Guanabara e de dejetos químicos em rios cujas águas desembocam nas torneiras da população fluminense. “O cenário é de adoecimento, incapacitação para o trabalho, morte lenta e gradual”, diagnostica o médico Ronaldo Costa, autor de uma tese que denuncia as instalações do pólo petroquímico erguido durante o regime militar. Para completar, o Ministério Público acaba de concluir uma investigação em que acusa a Petrobras de terceirizar áreas estratégicas da Refinaria Duque de Caxias (Reduc), a cabeça do pólo, entregando sua segurança a operários despreparados. Como consequência, os acidentes de trabalho explodiram e, junto com eles, os problemas ambientais.

Em torno da refinaria instalada em Duque de Caxias, município com a segunda maior arrecadação de impostos do Estado do Rio e a oitava do País, nasceram desordenadamente indústrias químicas de grande porte, como a Petroflex e a Nitriflex, e dezenas de pequenas e médias fabricantes de resina, tinta, vela e parafina. A poluição crônica se soma a um risco agudo de acidentes numa área de dois mil quilômetros quadrados, forçando 2,9 milhões de pessoas a viver numa perpétua roleta-russa. “Um acidente grave pode explodir o Rio de Janeiro. E quem vive ali não tem idéia disso”, alerta Fátima Neto Ribeiro, coordenadora do programa de Saúde do Trabalhador na Secretaria de Saúde do Estado. “A Baixada é uma comporta aberta de poluição ambiental”, aponta o deputado estadual petista Carlos Minc, presidente da Comissão de Meio Ambiente, que denunciou 14 depósitos clandestinos de rejeito químico na região entre 1991 e 2001.

Uma geração de trabalhadores intoxicados e incapacitados para suas funções briga na Justiça pelos danos irrecuperáveis. Nos sindicatos, eles são conhecidos como os operários de “taxa baixa”, referência à queda na taxa de glóbulos brancos no sangue, a chamada leucopenia, um passo para o câncer de medula, ou leucemia. Envenenado pelos vapores do cancerígeno benzeno depois de trabalhar na Petroflex, ex-estatal que produz borracha sintética, o auxiliar de manutenção Celso do Nascimento luta para ser ressarcido pelos gastos com seu tratamento. A exposição a “fumos de solda” e “usinagem de chumbo” para uso nas caldeiras, como diz seu laudo médico, foi a causa da leucopenia. “A fábrica tinha de avisar que eu poderia ficar doente”, lamenta Nascimento. Com o sistema imunológico enfraquecido, ele cai de cama facilmente e faz visitas constantes ao médico.

A direção de uma das indústrias poluidoras, a Rio Metalúrgica, que produz óxido de zinco, admitiu ao médico Ronaldo Costa a contaminação de seus funcionários. “Se os gerentes do setor administrativo, em ambiente fechado com ar condicionado e janela, estão contaminados, imagine a população dos arredores, a vegetação e os lençóis d’água”, diz. Mais de 70% dos trabalhadores da empresa tinham teor de zinco acima do normal, segundo o estudo. Os empregados alegam que não têm acesso aos resultados dos exames laboratoriais, como os de dosagem de zinco na urina, e muitas vezes são demitidos sem explicação quando se detecta anomalias em seu organismo.

Em um ambulatório do Sindicato dos Químicos e Farmacêuticos da Grande Rio, onde durante três anos atendeu trabalhadores entre 18 e 45 anos, Costa elaborou um trabalho que serve como sinal de alerta. Denuncia empresas como a Vetec Química Fina, em Xerém, que fornece matéria-prima aos laboratórios públicos do País. No pátio da empresa, ele presenciou depósitos de cloro e tambores de ácido sulfúrico ao relento.

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Dentro da área de risco, um conjunto de bairros pobres colados à refinaria da Petrobras, os casos de intoxicação se multiplicam. No posto médico, as mães fazem fila para levar seus filhos com bronquite. Uma delas é a dona-de-casa Amanda Mara, 21 anos, que vive em Duque de Caxias. Seus três filhos, Anderson, sete anos, Alan, seis, e Alana, três, têm manchas na pele e dificuldades respiratórias. A suspeita recai sobre o pai das crianças, que é empregado da Nitriflex, fabricante de produtos derivados de petrólero. “Ele trabalha com pó”, resume Amanda.

Mar de esgoto – Na vizinha Cidade dos Meninos, outras 427 famílias moram ao redor de uma área que foi contaminada, no fim da década de 80, por 400 toneladas do inseticida HCH, o popular pó-de-broca. Na ocasião, registraram-se 18 casos de câncer. Uma cerca de arame isola o foco principal, mas não impede as crianças de circular nas redondezas, onde há outros pontos de contaminação. O cheiro é forte e o solo está impregnado do coquetel tóxico. Uma avaliação de risco feita há um ano por um comitê do governo aconselhou o Ministério da Saúde a abandonar a área, que é federal, mas a burocracia parece ser maior que a vontade política. “Isso aqui é uma chaga aberta”, aponta Karen Suassuna, da ONG Greenpeace, que classifica o pólo do Rio como uma das áreas de maior probabilidade de acidente ambiental do País. A organização divulgou um relatório com os mais graves casos de contaminação provocados por empresas em todo o mundo. Dos 37 relatos, seis são brasileiros.

A vergonha não pára aí. Entre o complexo petroquímico e a Baía de Guanabara jaz o retrato da miséria num terreno de 1,3 milhão de metros quadrados, do tamanho de 13 Maracanãs. No aterro sanitário de Gramacho, onde são despejados todos os dias sete mil toneladas de lixo, 600 catadores – muitos são mulheres – disputam a sucata, os pedaços de alumínio e de plástico com os tratores da Comlurb, a companhia municipal de limpeza. Há seis anos, a estatal tenta recuperar a área degradada no maior lixão da América Latina. Suas montanhas de lixo compactado e enterrado não poluem a Baía de Guanabara como antes. Curiosamente, agora é a baía que suja o lixão. A cada subida da maré, as águas invadem o manguezal, deixando mais lixo no aterro.

Água podre – O programa de despoluição da baía consumiu R$ 1,5 bilhão em sete anos, mas seu resultado foi pífio. Só 15% dos 20 mil litros de esgoto despejados ali são tratados. Um relatório da Agência Japonesa de Cooperação Internacional analisou oito pontos e revelou que em apenas um a qualidade da água é satisfatória. Em três locais, ela está poluída e, em outros quatro, o mar praticamente virou esgoto.

Assim como a Baía de Guanabara, também estão sob ameaça rios como o Guandu, braço artificial do Paraíba do Sul e fonte de quatro em cada cinco litros d’água que abastecem as cisternas do Rio. O Guandu abriga a maior estação de tratamento do mundo e recebe uma descarga de poluição tão violenta que em cinco anos suas águas podem ser inadequadas para consumo. Palavra do engenheiro Alberto Gomes, ex-presidente da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae).

O crescimento das indústrias é inversamente proporcional à capacidade de atendimento da rede pública de saúde. Na prática, ninguém sabe o tamanho da contaminação. Os médicos suspeitam que ela é maior do que permitem supor as filas nos postos de saúde e nos ambulatórios das empresas. “O verdadeiro tamanho da mortalidade é subdimensionado, subnotificado, oculto nos atestados de óbito”, aponta Ronaldo Costa.

Um oásis no deserto é o ambulatório do Hospital do Fundão. Centro de referência para tratar contaminação química, ele atende uma centena de intoxicados por mês. Por ali passaram os trabalhadores da Panamericana, fábrica de baterias que usava o cancerígeno mercúrio na produção de soda cáustica. Entre 1991 e 1998, a empresa teve 41 trabalhadores intoxicados. Um deles morreu. A gravidade do problema levou o Ministério Público a dissecar a refinaria da Petrobras em Duque de Caxias. Depois de cinco anos de trabalho, o procurador Luis Carlos Rodrigues Ferreira abriu uma ação civil pública contra a Petrobras, acusando a estatal de patrocinar a “terceirização de risco”. O MP constatou que áreas estratégicas da terceira maior refinaria do País foram entregues a empregados inexperientes, desqualificados e destreinados, subcontratados das empreiteiras particulares que executam serviços de manutenção no complexo de 27 unidades industriais com seis caldeiras, 45 fornos e 300 tanques de armazenamento. De acordo com o levantamento, a refinaria tinha, no período de investigação, 2.160 prestadores de serviço, contra dois mil empregados da Petrobras. Hoje, de cada quatro acidentes de trabalho, três envolvem terceirizados. “Perdemos o controle sobre a exposição de trabalhadores a agentes tóxicos por causa da terceirização”, reconhece Salvador Alves de Oliveira, diretor do Sindicato dos Petroquímicos de Duque de Caxias.

Investigar a Baixada Fluminense não dá ibope. Tanto que não há sequer um diagnóstico confiável sobre a região que responde por boa parte do PIB do Rio. Só o Pólo Gás-Químico, que está sendo construído ao lado da refinaria, vai consumir US$ 1 bilhão. A expectativa dos ambientalistas é de que haverá ainda mais poluição sem controle. Teme-se que ao ser aceso o pavio, mesmo que por acidente, o campo minado em que se transformou a Baixada estoure e inclua o Brasil na lista dos piores desastres ambientais da história.

Destino trágico

O pior desastre químico da história ocorreu no município de Bophal, na Índia, na madrugada de 3 de dezembro de 1984. O vazamento de 40 toneladas de gases letais da fábrica de agrotóxicos Union Carbide criou um cenário de terror. O número de mortos ainda é motivo de polêmica. Durante três dias, estima-se que três mil pessoas, a maioria funcionários da empresa americana, morreram envenenadas pela nuvem tóxica que escapou de um tanque de substâncias químicas. Ao inalar as toxinas, os moradores vomitavam, seus olhos ardiam e seus pulmões foram corroídos. Muitos morreram enquanto dormiam. As sirenes de emergência falharam, assim como os demais sistemas de alarme. Uma perícia revelou que a causa do vazamento foi a falta de manutenção nos equipamentos de segurança. Em 2001, a Union Carbide foi comprada pela multinacional Dow Química e se tornou uma das maiores potências industriais do mundo, com faturamento de US$ 28 bilhões.

Natália Azevedo


Armas da guerrilha urbana

A organização não-governamental ambientalista Greenpeace elaborou um relatório internacional com os mais emblemáticos crimes ambientais provocados por empresas. Dos 37 casos minuciosamente estudados, seis aconteceram no Brasil. Confira os detalhes a seguir:

• Dois dos acidentes foram praticados pela mesma empresa, a Shell. Em Paulínia, no interior de São Paulo, a empresa foi acusada de contaminar com agrotóxicos os lençóis freáticos nas proximidades do rio Atibaia. O vazamento foi descoberto em 1994, e até agora a questão tramita na Justiça.

• Na Vila Carioca, na zona sul paulistana, em junho deste ano a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) detectou perto das instalações da Shell um elemento químico usado na fabricação de pesticidas e metais pesados em nível dez vezes superior ao permitido. A área onde estão 37 tanques de combustível foi isolada. O Hospital das Clínicas classificou o caso como “100 vezes mais grave” que o de Paulínia. A Shell recebeu multa de R$ 105,2 mil e terá que apresentar um plano de tratamento das águas e de contenção dos poluentes. A empresa promete fazer o “mapeamento dos impactos causados”, o que não termina antes de 2003.

• Em 1993, o Ministério Público determinou a paralisação da unidade da Rhodia na cidade paulista de Cubatão devido à contaminação do solo por agrotóxicos. Pelo menos 150 funcionários foram atingidos, mas só dois indenizados.

• No Guarujá, litoral de São Paulo, a Dow Química foi acusada de contaminar a área com toxinas usadas na fabricação de espumas e resinas.

• Em Santo André, também em São Paulo, a belga Solvay mantém a céu aberto, num remanescente da Mata Atlântica, uma montanha de cal, contaminada pelo cancerígeno mercúrio, resultante da fabricação de tubos de PVC. Há nove meses, a empresa e a Cetesb discutem de que forma deve ser confinado o material tóxico que coloca em risco o rio Grande, um dos afluentes da represa Billings.

• O único caso carioca ocorreu em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, onde a farmacêutica alemã Bayer poluiu o rio Sarapuí com metais pesados. A empresa nega que a contaminação esteja acima dos níveis regulamentares.
N.A.


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