Uma semana depois de celebrar o dia mundial da água, o Brasil perpetrou um marco na história ambiental. Uma mancha tóxica resultante do processo químico de branqueamento do papel se alastrou por quase 100 quilômetros de rios, deixando mais de 600 mil pessoas sem água e um cenário desolador. Foi um dos mais graves desastres ecológicos do País. O acidente começou na madrugada do sábado 29, quando 1,2 bilhão de litros de resíduos tóxicos vazaram do reservatório da fábrica Cataguazes Indústria de Papel, no município mineiro de Cataguases. O veneno de coloração negra cobriu o ribeirão Cágado, impregnou o rio Pomba e se estendeu pelo rio Paraíba do Sul, que abastece os Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo.

Embora tenha ocorrido em solo mineiro, a catástrofe ambiental assombrou mesmo o Estado do Rio. A espuma química afetou o abastecimento de pelo menos sete municípios e já atingiu o litoral fluminense. A cidade mais afetada foi Campos, a maior do norte do Estado, com quase meio milhão de habitantes. O impacto da espuma tóxica diminui à medida que segue para São João da Barra, em direção ao mar. Na trajetória, flora e fauna foram totalmente destruídas. Apesar dos avisos para que a população não se alimentasse dos
peixes que se debatem nas águas turvas, em busca de oxigênio, os moradores de pequenos distritos, como Portela, em Itacoara, não atenderam ao pedido. “Houve quem pegasse para comer os peixes
que se contorciam nas margens do Paraíba do Sul. Diziam que água
limpa e limão seriam suficientes para descontaminar”, explicou, petrificado, o biólogo Guilherme Souza.

De manhã, em vez de ir ao trabalho ou à escola, muitos moradores das cidades no norte e noroeste do Rio de Janeiro munem-se de baldes, garrafões, jarros e caixas de isopor e se postam na fila dos caminhões-pipa da Defesa Civil para encher seus recipientes. Outros caminham até poços artesianos. Repetem a trajetória duas, cinco, dez vezes ao dia, dependendo do tamanho da família. Quem tem maior poder aquisitivo compra galões de água potável, que, além de escassos, subiram de R$ 3 para R$ 12 – o galão de 20 litros –, apesar do apelo das autoridades para que os comerciantes não elevassem os preços.

Numa expectativa otimista, serão necessários pelo menos cinco anos para que os rios sejam recuperados. Acrescente-se o tempo para repovoá-los de peixes, já que a mortandade foi grande. A empresa é reincidente em crime ambiental. Na primeira vez, há dez anos, a razão social era Indústria Matarazzo de Papel e Celulose e ela foi autuada por causar poluição e funcionar sem licença. Como muitos agora defendessem uma “punição exemplar”, a empresa foi multada em R$ 50 milhões, mas pretende recorrer da decisão. Segundo o secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas, José Carlos Carvalho, será aplicada multa baseada na lei de crimes ambientais, que calcula o valor de acordo com o dano provocado. A fabricante de papel reciclado já avisou que não tem condições de arcar com uma indenização desse montante. “Negligência houve. A empresa diz que o problema era do proprietário anterior, mas o passivo ambiental é da administração atual”, explica Carvalho. “Não podemos tergiversar, mas o fato é que o fechamento da empresa vai trazer a demissão de quase 280 pessoas em Cataguases”, preocupa-se. Eis aí uma ironia.

A Comissão de Meio Ambiente da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) quer responsabilizar os proprietários da empresa e a Fundação do Meio Ambiente de Minas (Feam), já que a fábrica funcionava sem licença ambiental. Os responsáveis pela omissão podem pegar de dois a cinco anos de detenção, além da multa. Na quinta-feira 3, o juiz Marcelo Luzio Marques, da 1ª Vara de Justiça Federal de Campos, decretou a prisão de um dos donos da Cataguazes, João Gregório do Bem, e de seu diretor administrativo, Félix Santana.

Punição – A título de compensação, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, assinou uma portaria na qual o governo se compromete a pagar um salário mínimo mensal aos pescadores da região, enquanto os rios Pomba e Paraíba do Sul estiverem interditados para pesca – a princípio, por 90 dias. “O acidente é muito grave e demonstra o quanto a empresa foi irresponsável, já que é reincidente”, defendeu o ministro das Cidades, Olívio Dutra. O secretário mineiro do Meio Ambiente encaminhou o caso para investigação no Ministério Público do Estado. Apesar disso, o Ministério Público federal chamou para si a responsabilidade. “Privar a população de água é algo grave, que deve ser atacado, investigado e punido com rigor”, diz o procurador federal Alexandre Camanho.

A catástrofe poderia ser maior se entre os poluentes houvesse metais pesados – o que, segundo técnicos dos dois Estados, ficou descartado após as primeiras análises. Foram detectados vestígios de papel, madeira e materiais como hipoclorito de cálcio, enxofre, lignina, antraquinona, sulfeto de sódio e soda caústica, que podem causar queimaduras na pele, nos olhos e nos tecidos gastrointestinais, bloqueio das vias respiratórias e até a morte. Outro reservatório da empresa, com 700 milhões de litros de lixo químico, representa um grave risco de escoar para os rios. Jerson Kelman, presidente da Agência Nacional de Água (ANA), disse, no entanto, que o dono da Cataguazes se comprometeu a reforçar o depósito, reconstruir os reservatórios e erguer uma barragem para impedir que os resíduos do ribeirão Cágado cheguem ao rio Pomba, dando continuidade à cadeia de contaminação.

Uma parceria entre a ANA e a Operadora Nacional de Sistemas (ONS) prevê ampliar a abertura de cinco barragens para liberar um volume
maior de água para “lavar os rios”. Isso aumentaria em 50% sua vazão.
A medida foi duramene criticada pelos ambientalistas. “A primeira lição que fica desse caso é que o País não está aparelhado para resolver
esse tipo de problema”, explica Leonardo Morelli, da ONG Movimento
Grito das Águas. “Acelerar o escoamento da água para o material tóxico chegar ao mar mais rápido é como varrer a sujeira para debaixo do tapete. Não resolve nada”, diz.

Outros prognósticos são igualmente pessimistas. Ou realistas? O oceanógrafo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro David Zee mostra-se cético em relação à recuperação do rio Pomba. “Há anos,
ele recebe todo tipo de toxina de cidades industriais. Já estava debilitado. Essa última contaminação foi o soco final do nocaute”,
afirma Zee. Na prática, esse é mais um caso a engrossar as estatísticas de acidentes ecológicos nunca solucionados no País. Mesmo quando
há condenação, os responsáveis não tomam as providências recomendadas, o que estimula a impunidade.

Já que o fato é irreversível, o jeito é cuidar do futuro. O vice-governador Luís Paulo Conde anunciou que um convênio dos dois governos estaduais com a União vai analisar todos os rios que se ligam ao Paraíba do Sul. A governadora do Rio, Rosinha Matheus, assinou acordo com o governador Aécio Neves no qual o governo de Minas se compromete a retirar todo o material tóxico que ainda ameaça o rio Pomba.

Impunidade histórica

As maiores catástrofes ambientais continuam sem solução

Local: Baía da Babitonga, em SC
O acidente: Em 1950, a água da baía foi contaminada pelo cancerígeno fenol
Providências: A fundição Tupy, as prefeituras de Joinville,
São Francisco e Garuva foram condenadas a recuperar a área,
mas nada fizeram

Local: Cidade dos Meninos, no RJ
O acidente: Em 1957, a água subterrânea e o solo foram contaminados pelo inseticida pó-de-broca (BHC).
Providências: A Funasa foi condenada a remover o lixo tóxico, mas deixou 400 toneladas no local

Local: Santo Amaro da Purificação, na BA
O acidente: Em 1960, houve contaminação do ar, do solo
e do rio Subaé por chumbo.
Providências: ação civil contra a Plumbum, grupo francês de mineração e metalurgia que encerrou as atividades no Brasil, deixando para trás 500 mil toneladas de chumbo a céu aberto

Local: São Mateus, no PR
O acidente: Em 1990, numa tentativa de produzir gás, a Petrobras contaminou o rio Iguaçu com mercúrio
Providências: A empresa foi condenada, prometeu recuperar a área em seis meses, mas não iniciou as obras.

Local: Curitiba e Porto Alegre
O acidente: Em 1998, a Gerdau armazenou ilegalmente areia de fundição contaminada por fenol
Providências: O caso está sob investigação nos Ministérios
Públicos estaduais

Local: Campos do Jordão, em SP
O acidente: Desde 1998, a Nestlé superexplorou as águas minerais nas nascentes do rio Prata
Providências: A denúncia está sob investigação nos Ministérios Públicos estaduais

Local: rio Tietê, em SP
O acidente: Iniciadas em 2002, as obras de rebaixamento da calha trouxeram à tona os resíduos tóxicos depositados durante vários anos no leito do rio
Providências: O Ministério Público ainda investiga o caso