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LEMBRANÇA
O capacete sobre o túmulo relembra o sonho de Luís Henrique de comprar sua própria moto.
O rapaz (abaixo) não realizou o desejo. Foi morto por PMs em setembro de 2011

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Luís Henrique Casteluche andava feliz com o novo emprego, em uma empresa de reciclagem, e com a convocação para o Exército. O jovem franzino e brincalhão, de 17 anos, morador da Vila Maggi, zona norte de São Paulo, ia finalmente realizar dois sonhos: juntar dinheiro para comprar uma moto e seguir carreira militar. Às vésperas de se apresentar no batalhão, porém, morreu com oito tiros, um deles no peito. No boletim de ocorrência, consta que o jovem foi morto por resistir à prisão após participar do furto de um Vectra, com um colega. No entanto, o rapaz que acompanhava Henrique, e que também foi baleado, sobreviveu após 15 dias em coma para contar à Justiça uma versão bem diferente da oficial. De acordo com o jovem, nenhum dos dois estava armado e os guardas chegaram atirando com a clara intenção de matar. “Meu filho disse que eles não tiveram tempo nem de sair do carro”, conta a mãe do outro rapaz, que, por medo de represálias, pediu para não ser identificada. É nesse testemunho e em outros fatos por eles levantados que os pais de Luís Henrique depositam agora suas esperanças. “Não faz sentido o que estava no boletim de ocorrência. Se foi troca de tiro, por que não tem policial ferido? Nem marcas de bala na viatura?”, indigna-se o pai, o segurança escolar Enrique Casteluche. Ele e sua mulher, a professora Rosana Simone, recorreram à defensoria pública do Estado para tentar provar que o filho morto nunca foi criminoso e que houve abuso dos policiais. “O Luís Henrique não tinha passagem pela polícia, não tinha envolvimento com o tráfico e nunca andou armado”, afirma Rosana.

Luís Henrique faz parte de uma estatística preocupante: a de mortos pela polícia em São Paulo. Só no primeiro semestre, foram 154 pessoas, 16% a mais do que no mesmo período do ano passado. Esse número pode esconder outro problema: as verdadeiras causas dessas mortes. Assim como no caso de Luís Henrique e dos outros jovens desta reportagem, é comum encontrar nos boletins de ocorrência o termo “resistência seguida de morte”, sem que haja, todavia, a comprovação de que houve confronto. “Quando se faz esse registro, parte-se do princípio de que o policial agiu em legítima defesa e não se apura o ato”, diz Marivaldo Pereira, secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. Sem investigação, torna-se impossível saber se o que houve foi realmente um confronto ou se o PM realizou uma execução sumária. Com dois casos de falsos autos de resistência desmascarados nas últimas semanas, acendeu-se o sinal amarelo para a atuação da polícia paulista nos casos descritos como resistência seguida de morte. Tanto que o Ministério da Justiça, a pedido de organizações da sociedade civil, está elaborando uma proposta a ser enviada para o Congresso Nacional que extingue a declaração de “auto de resistência” – crime que, aliás, nem sequer consta do Código Penal.

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DESCASO
Há quatro anos Eliana Nascimento tenta sem sucesso saber se é do filho
Yan (abaixo) o corpo enterrado no cemitério Dom Bosco, em São Paulo

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Impunidade
A medida é vista como uma forma de acabar com a sensação de impunidade dominante nas corporações. Se o termo desaparecer dos boletins de ocorrência, toda morte cometida pela polícia será investigada para saber se houve abuso no uso da força, com a posterior punição daqueles que forem além de suas funções. Hoje, somente na capital paulista, a PM é responsável por uma a cada cinco mortes cometidas intencionalmente. No Estado de São Paulo, entre 2006 e 2010, 2.262 pessoas morreram em confronto com a polícia, mais do que o registrado, nas mesmas circunstâncias, em todos os Estados Unidos no mesmo período. A gravidade da situação motivou uma reunião a portas fechadas na Secretaria de Direitos Humanos, em Brasília, na terça-feira 21. O próprio comando-geral da corporação já havia reconhecido o problema ao anunciar, neste mês, a intenção de pagar bônus salarial aos oficiais que matarem menos. Procurada por ISTOÉ, a Polícia Militar paulista não quis comentar o assunto.

É necessário que os policiais pensem duas vezes antes de puxar o gatilho, o que certamente ocorrerá se toda morte por PM passar a ser investigada. Caso isso já ocorresse, outro Henrique, morador do bairro Cantinho do Céu, na zona sul de São Paulo, ainda estaria vivo. Trata-se de Henrique Barbosa da Silva, 18 anos, que trabalhava em uma lanchonete e queria ser professor de educação física. Com o salário, ajudava nas despesas de casa e reunia dinheiro para ir ao litoral no fim do ano, ver o mar pela primeira vez. Morreu sem pôr os pés na areia, no dia 18 de março, baleado nas costas e na cabeça. Os autores dos disparos: os policiais militares Luiz Vianna Labella e Cássio Andrade Bigas. Os guardas buscavam os autores de um furto em um mercado na rua Francisco Inácio Solano, no Cantinho do Céu. Labella estava de folga e é marido da dona do estabelecimento comercial. Os policiais afirmaram em depoimento que o garoto levava um revólver calibre 38 com a numeração raspada e que teria reagido à ação policial. Os amigos que estavam com o rapaz e voltavam de uma festa contam uma versão bem diferente. Ao dobrar a esquina do mercado e já distantes do local do crime, os jovens foram surpreendidos por gritos e disparos. Todos conseguiram correr, menos Henrique. Os responsáveis pelos tiros foram presos no dia seguinte à morte do rapaz. “Mesmo se meu filho fosse um bandido. Eles deviam levar para a Justiça e julgar, e não atirar nele para matar”, desabafa a mãe, Gisélia Barbosa de Lima, 37 anos.

Eleger a violência como estratégia de ação, para a defensora pública Daniela Albuquerque, explica o número abusivo de mortes por PMs. Na capital paulista, a cada policial morto, 4,2 pessoas são mortas ou feridas pela polícia, número que é quase o dobro do registrado no interior. “Um policial nunca pode agir como um bandido”, diz ela. “A violência do bandido se justifica porque ele é fora da lei. Se o policial faz o mesmo, ele também vira um fora da lei.” Daniela está habituada a ver casos como os de Luís Henrique Casteluche e Henrique Barbosa. No seu escritório, no centro de São Paulo, ela e mais um defensor sempre recebem familiares desesperados. Muda-se o nome da vítima, mas repete-se o script. São jovens de periferia mortos por “resistir à prisão”, invariavelmente atingidos por disparos dos policiais em regiões vitais, como cabeça e peito. As cenas do crime nunca são preservadas, os laudos periciais trazem poucos detalhes, as testemunhas são sempre os próprios PMs e nunca há policial ferido ou tiro nas viaturas, o que seria natural no caso de confronto armado. “As ações da PM devem ser transparentes porque ela representa o Estado e as pessoas não podem duvidar do Estado”, argumenta Luiz Gonzaga Dantas, ouvidor da Polícia Militar de São Paulo. Reconstruir a morte desses rapazes é como resolver um quebra-cabeça sem peças. “Uma boa perícia seria fundamental para desvendar esses casos em que há abuso”, comenta a advogada criminalista especialista em perícia Roselle Soglio. “O próprio policial às vezes altera a cena do crime. O perito é preparado para registrar se isso ocorreu, mas ele não o faz”, diz.

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JUSTIÇA
A família de Paulo Roberto (abaixo aguarda o julgamento do PM
acusado por sua morte. Por duas vezes, a defesa conseguiu adiar a audiência

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Paradeiro do corpo
Em alguns casos, chega-se ao extremo de haver dúvida sobre o próprio paradeiro do corpo da vítima. “Tudo o que eu quero é saber se quem está enterrado no cemitério Dom Bosco, em Perus, é o meu filho”, lamenta-se a professora Eliana Nascimento de Freitas, 47 anos, moradora de Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo. Faz quatro anos que ela tenta insistentemente saber se o cadáver da sepultura 251 é do filho Yan Soares dos Santos, morto aos 19 anos em 2 de junho de 2008. De acordo com as informações do boletim de ocorrência, Yan morreu durante uma troca de tiros com a polícia, após assalto a um posto de gasolina na Vila Pirajuçara, em São Paulo. Eliana só soube do boletim e do enterro de Yan 26 dias após sua morte. Identificou o filho por fotos, no IML, e só teve certeza de que era ele por causa do brinco do Bob Esponja na orelha esquerda – que, por sorte, não foi retirado no hospital. Quando pediu a certidão de óbito do cadáver enterrado em Perus, porém, viu com surpresa a descrição de um corpo masculino de 40 anos de idade, cuja morte acontecera dois dias depois da de seu filho. “As informações não batem, então eu pedi a exumação e o exame de DNA do corpo”, diz a mãe. O pedido foi negado no dia 20 de janeiro sob a justificativa de que deveria ser julgado em São Paulo, local onde ocorreu a morte, e não em Embu das Artes, onde a mãe vive e onde entrou com a ação.

A única certeza sobre a morte de Yan é de que ele é o retrato das vítimas fatais das ações da PM. Uma análise de dez anos feita pelo Instituto Sou da Paz com dados do Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade do município de São Paulo mostrou que, em sua grande maioria, são jovens entre 15 e 24 anos, negros ou pardos e moradores da periferia (leia quadro na pág. 71). “O que mais chama a atenção é que o perfil de quem morre e de quem vai preso é diferente. O percentual de homens e de jovens é bem maior entre os mortos”, analisa Ligia Rechenberg, pesquisadora do instituto.

Milícia
Além dos crimes de farda, outro tipo de violência que tem ganhado corpo é a protagonizada por policiais sem uniforme. “Fala-se muito das milícias do Rio, mas estamos vendo a mesma coisa aqui”, queixa-se Débora Silva Maria, uma das fundadoras do Mães de Maio, movimento contra a violência policial surgido em 2006. Um dos casos mais emblemáticos de assassinato cometido por policial não fardado no Estado é a morte do técnico de enfermagem Paulo Roberto Barnabé, aos 34 anos, no dia 10 de abril de 2011, dois dias após seu aniversário. Na mesma noite, outras oito pessoas foram atingidas, do mesmo modo que Paulo, por disparos desferidos de dentro do mesmo carro preto com vidros fumê. O acusado de estar ao volante é o PM André Aparecido dos Santos. Pelas imagens, vê-se Paulo e seu amigo, Arsênio de Oliveira Júnior, andando pela rua Pindorama, a meia quadra da praia do Boqueirão, em Santos, quando o carro preto se aproxima e para. Quando os amigos chegam perto do veículo, são recebidos a tiros. Apesar de graves ferimentos, que o deixaram paraplégico, Arsênio sobreviveu e, em depoimento à polícia, reconheceu Aparecido como condutor do veículo e autor dos disparos. Detido desde a época do crime, Aparecido aguarda agora pelo julgamento, adiado já por duas vezes e atualmente marcado para o dia 16 de outubro. O pai de Paulo, o portuário Florisval Silva, 57 anos, resume em poucas palavras a expectativa da família: “Só a condenação do culpado pela morte do meu filho dará um alívio ao coração.”

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Fotos: João Castellano/Ag.Istoé; Reprodução; Shutterstock



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