Pode parecer inacreditável, mas
os nossos genes têm muito mais a contar além das características e
do funcionamento de cada organismo.
Nos últimos anos, o estudo do
DNA de seres humanos foi vital
para esclarecer algo que até poucas décadas atrás era trabalho de antropólogos e arqueólogos: a história do ser humano, do seu surgimento
até os dias de hoje. Pela análise
de pequenas porções escondidas entre
os genes, é possível desvendarpistas das andanças da espécie pelo
planeta nos últimos 60 mil anos.

Agora, um estudo de proporções gigantescas, que coletou milhares de amostras genéticas ao redor do globo, promete deixar ainda mais claros alguns aspectos dessas migrações. O trabalho coordenado pelo americano Spencer Wells, ex-pesquisador da Universidade de Oxford, no Reino Unido, coletou cerca de 20 mil amostras de sangue de diferentes populações da Terra, de esquimós a tribos africanas isoladas, passando por europeus e aborígines australianos. Com a ajuda de uma equipe internacional, ele comparou seus dados a outras pesquisas, para descobrir os rastros dos ancestrais na população atual.

Os bastidores da pesquisa, que levou cinco anos, serão mostrados no programa A jornada do homem, do canal pago National Geographic, que estréia no domingo 15. O estudo de Wells reforça diversos aspectos da história humana. O mais importante, segundo o pesquisador, é que os dados confirmam que o ser humano apareceu num só lugar no planeta, na África, e de lá se espalhou pelo mundo em diversas migrações.

Os estudos indicam ainda que, quando o homem atingiu a Europa
e a Ásia, ele não se misturou às populações locais, como o neandertal
e o homem de Java. Ambas as espécies são consideradas primos distantes dos seres humanos, e não seus ancestrais diretos. “Pela análise do nosso material genético, não há sinal de que os humanos
se reproduziram com essas espécies”, explica Wells.

Sua pesquisa mostra como a genética é importante para desvendar os mistérios humanos. A análise se baseia no estudo do cromossomo Y, presente apenas em pessoas do sexo masculino. Um recém-nascido recebe do pai o cromossomo Y inalterado. O pai, por sua vez, o recebeu de seu avô, que o herdou do bisavô, e assim por diante. Em milhares de anos, no entanto, o cromossomo Y sofre mutações mínimas. É daí que partem os pesquisadores. Ao mapear essas mutações, eles podem rastrear os ancestrais de cada pessoa até a sua origem africana. “Podemos comparar isso aos dados arqueológicos e linguísticos para obter um quadro coerente de como nos movemos no planeta”, conta Wells.

Uma outra abordagem genética consiste em recolher as pistas
em pequenas estruturas celulares chamadas mitocôndrias, que
são transmitidas pelas mães. Assim, a história que elas contam
se referem à linhagem materna das pessoas. Um estudo recente
sobre a origem genética dos brasileiros investigou tanto o
cromossomo Y quanto as mitocôndrias.

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Sérgio Danilo Pena e sua equipe da Universidade Federal de Minas
Gerais divulgaram em 2000 uma pesquisa que levantou as origens genéticas da população branca brasileira. Seus resultados foram surpreendentes. Ao estudar as linhagens do cromossomo Y, eles descobriram que a quase totalidade dos genes provém de europeus. Pelas linhagens maternas, no entanto, dois terços do material
genético são de índias e negras. “Isso mostra que a cor no Brasil
é um péssimo indicador de ancestralidade”, brinca Pena.

Os resultados se explicam pelas primeiras levas de portugueses
no Brasil, entre o século XVI e o início do XIX. “Poucas mulheres
vieram da Europa nesse período”, comenta o pesquisador. “O Brasil
era um país mestiço, e somos a prova viva disso.”

Incerteza – A pesquisa genética, porém, tem seus limites. Para Pena, que estudou a história das primeiras migrações à América, as datações sobre as andanças humanas ainda são imprecisas e variam muito, dependendo da abordagem que se escolhe. Peter Underhill, pesquisador da Universidade de Stanford, nos EUA, e um dos maiores especialistas do assunto, concorda. “A data dos fósseis muitas vezes não bate com as análises genéticas, já que esse método só registra as mutações no DNA, e não os períodos em que elas ocorreram”, diz ele.

E, é claro, há um problema adicional. Coletar as amostras de sangue em tribos distantes nem sempre é um trabalho fácil. Em suas viagens pelo planeta, Spencer Wells sentiu isso na pele. “Algumas pessoas não querem ouvir o que temos a dizer”, conta. Na Austrália, um artista aborígine disse que não confiava em suas pesquisas. “Ele acreditava nas histórias de seus ancestrais e dizia que nós, os europeus, havíamos perdido nossas histórias, e criamos a ciência para inventar algumas delas.” Para o aborígine, a narração dos fatos científicos é pura invenção. Ele tem que concordar com pelo menos uma coisa: é uma invenção plausível e, no mínimo, criativa.


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