Numa sala dos fundos da joalheria Oriental, no centro do município de Juína, no Mato Grosso, o comerciante Rogério de Souza desdobra uma folha de veludo preto e espalha sobre a mesa centenas de pequenas pedras brilhantes. Depois de separar com uma pinça um lote de diamantes maiores, o comerciante anuncia o preço do produto: R$ 150 por quilate (1/5 de grama). “Veio de longe. Mas se você quiser as pedras boas e grandes dos índios tem de avisar antes. Na semana passada, um garimpeiro de Rondônia estava pedindo US$ 6 milhões por uma raridade de mais de 100 quilates”, disse Rogério à reportagem de ISTOÉ.

A exemplo dos demais escritórios
de diamantes do município, a Oriental fica na avenida 9 de Maio,
o local preferido dos garimpeiros
e dos compradores da Bélgica, de Israel e de vários outros países.
O comércio de pedras também
é intenso nos principais hotéis
da cidade. “IMG Comércio de Diamantes”, anuncia uma placa colocada no apartamento 202
do Hotel Caiabi. Era nesse escritório improvisado que despachava o contrabandista de Tel-Aviv Israel Mattiyahu Garby, preso em março
do ano passado pela Polícia Federal no Aeroporto Internacional Marechal Rondon, em Várzea Grande (MT), quando tentava contrabandear dois quilos de diamantes. Uma carga avaliada em R$ 1,5 milhão ao preço
do mercado de hoje. A prisão de Garby, no entanto, não foi suficiente para afugentar os compradores estrangeiros. No mesmo hotel, o belga Luix Uícus, não hesitou em dizer a ISTOÉ por meio do amigo Talai Did
o que procurava na cidade: “Diamantes grandes e bonitos.” Did e Uícus somente perderam a calma e encerraram a conversa quando
foram perguntados sobre a legalidade da transação.

Esse cenário explica por que Juína, município cercado por várias reservas indígenas, na divisa de Mato Grosso com Rondônia, é conhecido por manter em funcionamento a bolsa de diamantes do País. Na década de 90, esse título, escrito em duas torres erguidas na avenida 9 de Maio
pelo israelense Izac Ben David,
se devia à grande produção de diamante industrial no município. Minúsculo, escuro e vendido a preços bem inferiores para indústrias
de ponta, esse tipo de diamante anda em queda, mas é o único
produzido nos garimpos do município. A Polícia Federal, o Ministério Público Federal, e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) sabem
que as pedras preciosas que atraem compradores e contrabandistas
para Mato Grosso têm outra procedência: a reserva Roosevelt dos
índios cinta larga. Ocupando uma área de 2,6 milhões de hectares nos Estados de Rondônia e do Mato Grosso, a reserva foi presenteada com um raro kimberlito (rocha vulcânica onde é encontrado diamante).

Segundo estudo da Companhia de Pesquisa e Recursos Minerais (CPRM), órgão do Ministério das Minas e Energia, o kimberlito, o único do País que pode gerar uma mina industrial de diamante de gema, tem capacidade para produzir no mínimo um milhão
de quilates de pedras preciosas por ano, o que representa uma receita anual de US$ 200 milhões. A extração de mineral em terra indígena é ilegal
e depende de regulamentação do Congresso. Mesmo assim, a Abin
e o serviço de inteligência da PF estimam que US$ 20 milhões de diamantes do Roosevelt saem ilegalmente do País todos os meses.

Para a PF e o Ministério Público, o contrabando explica a enorme discrepância entre a exportação legal
de diamantes de gemas, que segundo o Serviço de Comércio Exterior (Secex) no ano passado foi de apenas 9.096 quilates, e o destaque
que as pedras brasileiras começam a ganhar no mercado externo.
De acordo com o Mining Journal, publicação especializada da Inglaterra
que mede a comercialização de pedras preciosas na Europa, a produção de diamantes de gema do País foi de 900 mil quilates, no mesmo
período, comercializados a US$ 41 milhões. Esse número colocou o
Brasil como o 10º maior produtor de diamantes do mundo. Basta fazer
a conta – 900 mil quilates menos nove mil – para concluir que 890 mil quilates saíram ilegalmente do País em 2001. Cerca de 98% da
produção nacional. “Está claro que a maior parte desses diamantes
sai do País contrabandeada”, afirma o procurador da República Pedro Taques, que coordena uma força tarefa do MP que investiga o contrabando de diamantes em terras indígenas.

“Lá está a riqueza que os estrangeiros e os políticos querem tirar do meu povo. Tudo o que saiu é pouco. Os garimpeiros estão somente arranhando a rocha maior (kimberlito), abaixo do igarapé, onde está o grosso do diamante”, mostra o cacique Tataré Cinta Larga, enquanto a aeronave sobrevoa o garimpo do Roosevelt. Visto do alto, o cenário apontado por Tataré é assustador. Em meio à floresta devastada, dezenas de tratores e escavadeiras abrem crateras no Igarapé do Lajes, que numa extensão de 40 quilômetros se transformou num gigantesco lamaceiro. Os problemas do garimpo do rio Roosevelt não se resumem, no entanto, ao campo ambiental. A quantidade de pedras preciosas, grandes e de várias cores, atraiu, além dos garimpeiros e mineradoras do Brasil e do Exterior, todo tipo de criminoso e forasteiro para a região. Nos últimos dois anos, a PF retirou cinco mil garimpeiros do local. Centenas de carros e 200 toneladas de maquinário de garimpo foram apreendidos.

A presença de policiais federais não conseguiu, no entanto, acabar com a atividade ilegal. Contrabandistas do Mato Grosso e de Minas Gerais e até mesmo políticos da região assumiram o controle do garimpo. Cooptados pelos grupos organizados, os caciques, iludidos pelos contrabandistas com carros importados e outros presentes caros, além da porcentagem na venda das pedras, passaram a exigir um pedágio de R$ 30 mil pela entrada de cada máquina no garimpo. Um amontoado de quase mil fotos apreendidas no mês passado pela PF, ao qual ISTOÉ teve acesso, mostra cenas assustadoras. Armados com escopetas e armas de repetição, policiais e contrabandistas desfilam com celulares ligados a satélites e em aviões que descem em pistas clandestinas para buscar as pedras valiosas.

A PF chegou a montar dois postos de fiscalização na reserva para combater
o crime organizado, mas, revoltados
com a apreensão de maquinários e camionetes do garimpo, os guerreiros cinta larga, acionados pelos caciques, expulsaram os federais de sua reserva
no mês passado. Em protesto contra
a apreensão, os caciques assumiram
o comando do escritório da Funai
em Cacoal, que permaneceu fechado durante 15 dias em outubro. O administrador do escritório, Laerte Ferraz, em conflito com os Cinta Larga, se licenciou do cargo. Os índios, que exigem a exoneração de Laerte, se aliaram aos técnicos indigenistas José Nazareno de Mares e Valdir Gonçalves, que estão sendo investigados pela PF pelo envolvimento com o contrabando de pedras. As investigações atingem também Vladimir Manqueiro, fiscal do Ibama de Cacoal.

A vida dos contrabandistas tem sido facilitada ainda pela concessão
de licenças de pesquisas minerais em áreas próximas à reserva pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), órgão do
Ministério das Minas e Energia que regulamenta a atividade mineral
no País. Nem mesmo os parques federais são poupados pelo DNPM.
A PF acredita que licenças como essas são utilizadas pelos contrabandistas para regularizar as pedras retiradas ilegalmente da reserva. “Essa mina é amaldiçoada, é a mina da morte. Estou cansado
de tanta violência. Já pedi minha transferência para outro local”,
afirmou o delegado Raimundo de Souza Filho, de Espigão D´Oeste, assustado com a onda de crimes e violência no local.

Pelos cálculos do delegado, o garimpo do Roosevelt, que atraiu ladrões de pedras, prostitutas e traficantes para a região, provocou a morte de pelo menos 100 garimpeiros, índios e contrabandistas nos últimos dois anos. Normalmente, as vítimas são garimpeiros que não trabalham para os grupos organizados. Sem dinheiro para pagar o pedágio, eles se arriscam a entrar clandestinos na reserva, onde acabam sendo mortos por índios guerreiros e jagunços contratados pelos contrabandistas. Nos últimos dois anos, 11 ossadas foram encontradas por agentes federais.

Reação – Mas nem tudo está perdido. Uma operação conjunta de vários órgãos federais vem dando resultado. O Ministério Público e a PF comemoram a prisão do advogado Avelino Tavares Jr. e dos empresários de Juína Laudelino Alves Queiroz e Renato Marine, do piloto Eliano Antônio Correia e de um grupo de compradores do Paraná. Mas o policial militar mato-grossense Carlos Santana e o comprador Nilmo Pires dos Santos conseguiram fugir. Depoimentos sigilosos apontam que o grupo de Juína é controlado pelo ex-garimpeiro Hermes Bergamini, proprietário da Diajamur, uma das principais lojas de compras e exportação de pedras da avenida Nove de Maio. A Diajamur reserva uma sala especial para um comprador indiano, que se identifica apenas como Zavarello, principal contato de Bergamini com a Bélgica. Está sob investigação também a prefeita de Espigão D’Oeste, Lúcia Teresa Rodriguez dos Santos (PDT), acusada
em vários depoimentos de manter máquinas dentro do garimpo, que funcionariam com combustível desviado da prefeitura. As investigações atingem até mesmo assessores de políticos de Rondônia e uma quadrilha de Minas Gerais liderada pelo comprador de pedras e empresário Gilmar Alves Campos. Segundo os índios e os garimpeiros, Gilmar teria
assumido o controle do contrabando no Roosevelt logo após a prisão
de alguns integrantes da quadrilha mato-grossense. Curiosamente,
o empresário ganhou notoriedade ao aparecer no mercado de
diamantes há dois anos com uma pedra rosa de 75 quilates.

A luta dos Cintalarga

A invasão na reserva dos cinta larga começou na década de 60. Os seringueiros foram os primeiros a chegar. Logo depois, os garimpeiros passaram a rondar as terras indígenas à procura de diamantes, que já brotavam às margens do rio Roosevelt. Muito antes de o sertanista Apoena Meirelles manter contato amistoso com os cinta
larga na década de 70, os índios
que moram há pelo menos 500 anos nos cerca de três milhões de hectares nos Estados do Mato Grosso e de Rondônia já eram atormentados por invasores. “Eu era criança quando numa emboscada vi meu tio ser morto pelos garimpeiros”, recorda o cacique Tataré Cinta Larga. Naquela época, na avaliação do cacique Nacoça Piu,
os cinta larga eram uma nação composta por seis mil pessoas. Atingidos por constantes conflitos e doenças trazidas pelo homem branco, a reserva está reduzida hoje a 1.200 índios.

Mas, para antropólogos, procuradores e autoridades os estragos provocados pelo novo garimpo à beira do Igarapé Lajes conseguiram, em menos de três anos, superar os muitos anos de invasão. Embora
a maioria dos cinta larga ainda não tenha aprendido o português
e o estado de miséria seja uma realidade na reserva, os caciques
e os índios mais jovens começam a tomar gosto por carros importados, bebidas, óculos escuros, drogas, frete de avião e outros hábitos
da cidade. Na maioria das vezes, o luxo da cidade é trocado por pedras que os contrabandistas recebem por um preço infinitamente abaixo do preço do mercado. Histórias como a do índio que trocou
uma pedra preciosa por dois carrinhos de supermercado cheios de
leite Moça são contadas nas esquinas e nos bares da cidade. “Tentaram eleger o índio como o grande culpado pelo contrabando. Essa visão é simplista e atende aos grandes interesses que a
mina desperta. Os índios são as principais vítimas de tudo o que
está acontecendo”, afirma o procurador Guilherme Schelb, que
integra a força-tarefa que investiga o contrabando.

A Constituição de 1998 passou para o Congresso a responsabilidade
de regulamentar a extração mineral em terras indígenas. Um projeto
de lei, do senador Romero Jucá (PSDB-RO), que permite a entrada
das mineradoras nas reservas, tramita desde 1996. Mesmo antes
de a atividade ter sido regularizada, as mineradoras do País e os grandes produtores do mundo já demonstram cobiça pelos diamantes dos índios. De acordo com levantamento da ISTOÉ, foram registrados no DNPM mais de 400 pedidos de licença de pesquisa na reserva Roosevelt. As mineradoras esperam a aprovação da lei para disputar
o direito de extrair os diamantes da reserva.

Os maiores

 

Um estudo inédito que mapeou
as reservas minerais do Brasil apontou que o garimpo do Roosevelt abriga um kimberlito mineralizado (rocha de origem vulcânica que dá diamante) com idade, estrutura geológica e capacidade de produção de pedras preciosas semelhantes
às da mina de diamantes do Guaniano, na Venezuela.

Elaborado pela Companhia de Pesquisa e Recursos Minerais (CPRM), o levantamento apontou que o kimberlito tem 1,8 bilhão de anos e uma capacidade de produção de no mínimo um milhão de quilates por ano. Esse número subestimado coloca a Roosevelt, no mínimo, entre as cinco maiores minas de diamantes do mundo. A capacidade real somente poderá ser verificada com uma análise mais detalhada, o que ainda não foi feito, pois o garimpo está localizado em área indígena. Para especialistas, a sondagem poderá indicar a Roosevelt como a maior mina do mundo, superando a atual campeã, localizada em Botsuana, que produz nove milhões de quilates por ano.

Segundo o diretor de geologia e recursos minerais do CPRM,
Luiz Augusto Bizzi, o levantamento foi feito com base na análise
de imagens de satélite, cedidas pelo Japão e pela Nasa, e de
ondas magnéticas captadas por avião. Bizzi lembra que a mina Guaniano já está operando industrialmente com uma produção
de 350 mil quilates por ano. Nos próximos cinco anos, atingirá
a marca de um milhão de quilates. Os maiores produtores
são Austrália, Botsuana, Rússia, Congo e África do Sul.